quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

ROLEZINHO : MOVIMENTO SOCIAL

A fala de Haddad e o silêncio de Dilma

Omissão do governo federal diante da brutalidade de PMs estaduais expõe erro trágico em relação a mobilizações sociais. O tempo para corrigi-lo é curto. O comentário é de Antonio Martins, jornalista, em artigo publicado pelo sítio Outras Palavras, 14-01-2014.

Eis o artigo.

Desta vez o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad foi preciso e veloz. Diante da atitude da PM paulista, que reprimiu com truculência um rolezinho de jovens periféricos num shopping da cidade, ele relacionou o movimento à segregação social brasileira. Lembrou que faltam, à maior parte da juventude, até mesmo “espaços para usufruir a cidade”. E, ao invés de mobilizar a Guarda Civil Metropolitana contra os que buscam tais espaços, preferiu orientar as secretarias de Cultura e Igualdade Racial a dialogar com eles.

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Além de não tratar a questão social como caso de polícia, o gesto de Haddad tem uma segunda vantagem. Ele contrasta com o silêncio do governo federal – em especial do ministério da Justiça – diante de ilegalidades e atos de selvageria e provocação praticados em série pelas polícias estaduais. Como também a omissão federal arrasta-se há meses, tudo indica que é consciente.

Uma retrospectiva permite rastrear sua origem. A partir de outubro do ano passado, o Palácio do Planalto adotou uma sequência de decisões que revela tendência a usar a repressão policial contra mobilizações e protestos – especialmente relacionados à Copa do Mundo. Esta postura é ainda mais chocante porque cessaram os diálogos abertos com movimentos sociais, após as manifestações de junho. E além de antidemocrática, do ponto de vista político, é extremamente temerária no que diz respeito à popularidade da presidente, a suas perspectivas eleitorais e à própria segurança pública. Porque torna o governo Dilma refém de polícias estaduais que já demonstraram, além de desrespeito aos direitos humanos, partidarismo e despreparo, capacidade de converter movimentos pacíficos em atos explosivos.

O primeiro marco visível da ênfase preferencial por reprimir é a reunião que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo realizou em Brasília, em 31 de outubro, com os secretários de Segurança de São Paulo e Rio de Janeiro. Os dois estados estavam sob impacto das manifestações black-blocs, uma das quais resultou na agressão (nunca suficientemente esclarecida) a um coronel da PM paulista. A mídia pressionava por uma resposta dura. Mas ao se reunir com os secretários, e ao definir com eles um conjunto de ações comuns, Cardozo passou por cima de um fato óbvio, já então. Nos dois Estados, a polícia era parte do problema, não da solução. Primeiro, por sua brutalidade, registrada, por exemplo, na repressão à manifestação de 13 de junho contra o aumento das passagens do transporte, em São Paulo. Segundo porque, em diversos episódios, a ação policial havia revelado não apenas despreparo, mas intenção de provocar; de levar os manifestantes a agir violentamente.

Ao ignorar este aspecto, o ministro transmitia, aos manifestantes, uma clara atitude de cumplicidade do governo federal. Algumas das medidas anunciadas sugeriam repressão mais aguda (a criação de um banco de dados sobre manifestantes, compartilhado entre os governos). Outras, positivas, jamais foram efetivadas (a criação de fóruns de diálogo entre manifestantes e autoridades, para relato de abusos). Falou-se na adoção de um “protocolo comum” para orientar a ação policial perante as manifestações, mas nada se informou, desde então, que tipo de comportamentos ele estimulará ou proibirá. A julgar pelo comportamento da PM paulista diante do “rolezinho” de sábado, ou o protocolo não existe, ou é indesejável.

No início do ano, o governo voltou à carga. Em entrevista a O Globo, o secretário nacional de segurança para grandes eventos, delegado (PF) Andrei Augusto Passos Rodrigues, anunciou que a Força Nacional de Segurança criaria uma tropa de choque de dez mil homens, para intervir durante a Copa do Mundo. Mais uma vez, falou-se na definição de protocolos de ação – e de novo eles não foram revelados. A notícia, aliás, foi redigida de forma imprecisa. Na verdade a Força Nacional não tem, nem terá, efetivos próprios: ela convoca e comanda, em ocasiões especiais, os soldados das próprias PMs. Mas nas redes sociais, a mensagem foi, evidentemente, interpretada como uma preparação do governo federal para o confronto com os manifestantes.

Por fim, o Portal Brasil divulgou, há uma semana, um documento ainda mais amedrontador: um manual produzido pelo Estado Maior das Forças Armadas para orientar a atuação de militares em operações de “garantia da lei e da ordem”. Aprovado no final do ano passado, e só agora revelado, o documento é redigido em linguagem que lembra a antiga Doutrina de Segurança Nacional. Fala em “forças oponentes” e “ameaças” (pág. 15), “emprego de inteligência e contra-inteligência” (p.26), “uso progressivo de força” (p.26). Inclui, entre as “principais ameaças” (p.29), itens como “bloqueio de vias públicas”, “distúrbios urbanos”, “invasão de propriedades e instalações rurais e urbanas” e até mesmo “paralisação das atividades produtivas”. Merece análise detalhada, em outro texto.

Esta escalada, que teve início em outubro, está em clara oposição com as primeiras atitudes da presidente da República diante dos protestos, em junho. À época, ela saudou a “mensagem direta das ruas é por mais cidadania, por melhores escolas, melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito à participação”. Iniciou série de reuniões com movimentos sociais novos e históricos. Acenou com reforma política e plebiscito.

Estas duas propostas, que seriam um enorme passo adiante, foram enterradas, em poucos dias, pelo Congresso Nacional. Mas ao invés de ter persistido numa postura de diálogos com os portadores da “mensagem direta das ruas”, o Palácio do Planalto parece ter se acomodado. A presidente confiante em suas chances vastas de vitória eleitoral, evita qualquer atitude de ousadia, rejeita qualquer atrito com um sistema político cada vez mais retrógrado.

A possibilidade real de manifestações ao longo do ano parece levá-la, desta vez, a buscar coesão com este sistema. Mas esta atitude modorrenta talvez implique risco maior. Tanto em São Paulo quanto no Rio – os estados onde as manifestações podem repercutir mais – há uma combinação explosiva. Por um lado, PMs repressoras e despreparadas. Por outro, governadores que terão (certamente em SP, provavelmente no Rio) interesses eleitorais contrários aos de Dilma e que são suficientemente irresponsáveis para colocar tais ambições acima dos direitos democráticos da sociedade.

Três episódios recentes permitem enxergar a armadilha: no Rio, o desalojamento de moradores do morro da Mangueira, com selvageria policial; em São Paulo, a repressão bruta e discriminatória da PM ao rolezinho da periferia. Em Campinas-SP, o assassinato de doze pessoas, em circunstâncias que sugerem claramente autoria da polícia (seguido do incêndio de ônibus pela população revoltada). Todos ampliam o ódio de parcelas da população à violência estatal. Mas quem será o alvo principal deste ódio? Os dois governadores, sistematicamente blindados pela mídia? Ou o governo federal, que além de ser o símbolo maior do poder do Estado parece esmerar-se em adotar atitudes que o fazem vestir a carapuça de repressor? E que ocorrerá se o mesmo padrão se repetir diante das manifestações que podem ser muito mais numerosas e capazes de repercutir que um rolezinho?

Diante de tantos sinais negativos, a fala de Haddad, mesmo que discreta, merece ser saudada. Ela sugere que ainda há governantes capazes de destoar da mesmice conservadora a que a política institucional brasileira vai se reduzindo rapidamente. Ela abre alguma esperança de que a “voz das ruas” volte a encontrar, no Estado, interlocução real.
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos

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