O risco populista: o Brasil pode eleger um presidente como Trump?
Eles desprezam as instituições democráticas, nem pensam em conciliar interesses contrários aos seus e se apresentam como únicos representantes do “povo real”. Como os populistas conseguiram tanto poder no mundo ocidental? Quais as chances de o Brasil eleger um político desse tipo em uma corrida presidencial? A primeira lição para enfrentar essa onda vem dos EUA: por mais disparates que digam, eles não são piada.
A reportagem é de Rodrigo Burgarelli, publicada por O Estado de S. Paulo, 08-01-2017.
É 2017, mas o ano já começa sob a ressaca forte dos doze meses passados. Se no Brasil o que preocupa é a crise econômica e a instabilidade política, analistas dos Estados Unidos e de boa parte da Europa ainda tentam entender e medir os efeitos do que vem sendo chamado de uma nova onda de populismo que, em 2016, atingiu em cheio o mundo ocidental. Como consequência, Donald Trump assumirá a cadeira de presidente ainda em janeiro, o Reino Unido deverá iniciar sua saída da União Europeia em março e a extrema-direita francesa, impulsionada pelo medo de novos ataques terroristas como os do ano passado, terá sua melhor chance de ganhar as eleições presidenciais de abril.
Não parece haver muita dúvida entre os principais meios de comunicação estrangeiros de que os fenômenos descritos acima não só estão interligados, mas são também manifestações desse conceito meio confuso chamado populismo. “A vitória de Trump pode ser apenas o começo de uma nova onda global de populismo”, escreveu o Washington Post. O New York Times, por sua vez, recomendou o livro “The Populist Explosion”, do jornalista americano John B. Judis, como uma das principais leituras para se entender o ano de 2016. E a Economist ressaltou que, enquanto o populismo está em remissão na América Latina, ele cresce como nunca em tempos modernos nos Estados Unidos e Europa.
Mas do que exatamente se está falando? O que é, de fato, “populismo”? Em contraste com os diagnósticos quase consensuais dos analistas, essa pergunta está longe de ter uma resposta simples. “Por ser polissêmico, o léxico populismo me parece muito ambíguo e impreciso. Tem sido utilizado para designar situações históricas muito díspares, como o populismo agrário americano do século 19, o populismo europeu ou ainda as democracias de massa latino-americanas”, explica o professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, Marcus Melo.
Por isso, antes de tudo, é preciso entender de qual populismo se está falando. Na tradição histórica latino-americana, o termo foi bastante usado para designar os primeiros políticos de massa a se dirigirem ao novo proletariado urbano que largava o campo para procurar emprego nas indústrias das grandes cidades. Sua conotação era na maioria das vezes pejorativa, mas uma corrente importante de pensadores vieram a usar a palavra em tom quase elogioso, por ver certo sentido político e social nos novos políticos que falavam diretamente aos pobres das novas metrópoles. Exemplos de “populistas clássicos” desse tipo podem ser o brasileiro Getúlio Vargas e seu contemporâneo argentino Juan Domingo Perón.
Quando falamos de populismo hoje, porém, estamos usando – mesmo sem saber – uma concepção mais específica para as questões do nosso tempo. Com o objetivo de traçar contornos mais bem definidos a esse conceito, o professor de política da Universidade de Princeton Jan-Werner Mueller se debruçou sobre o tema e acabou de lançar nos Estados Unidos o livro “What is populism”. Para ele, não basta apenas se dirigir diretamente às classes mais baixas ou adotar uma postura “antielite” (econômica ou política) para que um político se caracterize como populista. Também é necessário um certo desprezo pelas instituições democráticas e, principalmente, sua insistência em tratar “o povo” ao qual ele se dirige como se fosse os 100% da população – ou seja, sem tentar administrar os interesses de quem contraria sua agenda.
“Vários pesquisadores tentaram ligar o populismo a um grupo socioeconômico particular – trabalhadores rurais, a pequena burguesia, e agora os supostos ‘perdedores da globalização’ – ou a algum estado psicológico específico, como ressentimento ou raiva. Mas creio que podemos ter um conceito mais geral, que pode ser resumido à reivindicação de algum tipo de monopólio moral de representação do povo real”, afirma Mueller ao Aliás. Seguindo essa definição, de acordo com ele, os populistas podem surgir tanto da direita quanto da esquerda, pois não é o conteúdo que define o populismo, mas sim a forma como o discurso pretende se tornar realidade – ou seja, pelo cerceamento do pluralismo e pela intolerância ao contraditório.
E essa forma é, por definição, perigosa. Segundo Mueller, o populismo é inerente à democracia, mas pode ser extremamente danoso à sociedade quando chegar ao poder, por causa do seu desprezo às minorias e do incentivo ao desrespeito às instituições. Assim como os governos autoritários, os líderes populistas que chegam ao poder tentam sequestrar o aparelho estatal, montar esquemas de corrupção e de clientelismo em massa e realizar esforços sistemáticos de suprimir a sociedade civil. “A diferença do populista para o autoritário é que o primeiro faz essas coisas abertamente, sem precisar esconder, sob o pretexto de estar atuando ‘em nome do povo’”, explica o professor.
Medos como esse vêm aterrorizando liberais norte-americanos em relação ao início do governo Trump. “Nós o vemos como um desafio a um sistema democrático que manteve o país unido desde a Guerra Civil”, escreveu nesta semana o Washington Post, em editorial. “Trump tem um instinto demagogo para encontrar inimigos. Não se interessa por políticas públicas, não é limitado por vergonha nem se comporta de acordo com as regras”, disse o editor-chefe do Vox, Ezra Klein, após a vitória do empresário.
Mas boa parte da preocupação mais imediata com a nova onda global de populismo vem justamente das minorias que foram alvo das propostas vencedoras nas urnas. Nos EUA, Trump foi eleito prometendo construir um muro para impedir que o México“envie seus piores” e barrar a entrada de muçulmanos em solo americano – o que primeiramente alienou, mas agora aterroriza as comunidades latina e islâmica em um dos países com maior diversidade do mundo. Relatos de intolerância contra imigrantes impulsionados pela vitória de Trump inundaram as redes sociais nos últimos meses. Em um deles, a editora da sucursal do New York Times no Arizona, a brasileira Fernanda Santos, contou ter sido repreendida e xingada por um americano ao falar espanhol no telefone em uma cafeteria. “Como imigrante, nunca havia me sentido indesejada no Arizona. Hoje eu me senti”, escreveu no Twitter.
Como o populismo pode ser prejudicial ao pluralismo e às regras da democracia, é compreensível que analistas políticos no Brasil estejam atentos à possibilidade de que essa onda chegue até aqui. Afinal, as crises política e econômica que parecem infindáveis poderiam, em tese, fomentar o apoio a candidatos antiestablishment como os que ganham espaço nas economias mais frágeis da Europa. Para avaliar se é esse realmente o caso, no entanto, é preciso entender melhor os fatores relacionados ao surgimento de populistas com viabilidade eleitoral.
Primeiramente, Werner diz que o populismo está ligado às “promessas quebradas da democracia”, conceito originalmente desenvolvido pelo filósofo italiano Norberto Bobbio. Essas promessas nunca foram feitas formalmente, por escrito, fazem parte da chamada “teoria popular da democracia”. A principal delas é a que “as pessoas podem governar”. “Essa é uma promessa inatingível, mas populistas falam como se ela pudesse ser cumprida de algum modo”, diz Werner. Um dos alvos desse tipo de proposta são os partidos políticos. Sua função em uma sociedade pluralista é óbvia: negociar e mediar por meio de mandatos representativos para garantir direitos das minorias em uma democracia.
Mas esse tipo de narrativa não soa bem em um contexto favorável ao populismo – e, segundo Werner, é por isso que candidatos populistas tendem a florescer em países com sistemas partidários fracos. Um exemplo, segundo ele, é a implosão dos partidos na Itália após a operação Mãos Limpas, no início dos anos 1990, que acabou gerando o fenômeno Silvio Berlusconi. Para o professor da UFPE Marcus Melo, sistemas partidários fracos não é condição necessária para o populismo, pois essa descrição não seria apta para caracterizar os casos americano, francês ou austríaco. “Mas ele está florescendo em um contexto de enfraquecimento histórico dos partidos social-democráticos e liberais”, diz ele.
De fato, o cenário no Brasil não parece otimista. O derretimento do sistema partidário causado pela corrupção exposta na Lava Jato e pela profusão de siglas nos últimos anos, aliados à indignação pública ante os supersalários de funcionários públicos e à crise econômica parecem criar terreno fértil para propostas antiestablishment. Pode não ser coincidência, por exemplo, que a hashtag #Bolsonaro2018 tenha ficado entre as mais populares no Twitter em todo o mundo logo no dia seguinte à eleição americana – nem que o deputado federal do PSC-RJ esteja em segundo lugar nas menções espontâneas entre possíveis candidatos a presidente segundo a pesquisa mais recente da CNT/MDA.
Se o populismo pode florescer onde a confiança nas instituições é baixo, os índices brasileiros medidos pelo Latinobarômetro nunca estiveram piores – três em cada quatro brasileiros, por exemplo, dizem confiar pouco ou nada no Congresso, o maior índice desde 1995. Ainda assim, Melo diz acreditar que candidatos com agenda abertamente populista terão pouca viabilidade eleitoral nas eleições presidenciais. “O liberalismo esteve à prova na década de 1920 e 1930, e novamente agora. Mas, como princípio organizador das democracias históricas, terá enorme resiliência.” Ele admite, no entanto, que fatores como a existência de dois turnos nas eleições majoritárias podem eventualmente produzir paradoxos, como ocorreu com as vitórias de Marcelo Crivella (PRB) no Rio e de Alexandre Kalil (PHS) em Belo Horizonte.
Saber lidar com candidatos ou propostas populistas em um ambiente democrático parece cada vez mais essencial aos defensores do liberalismo democrático. Segundo Mueller, há uma série de pressupostos básicos a seguir para conter a ameaça que discursos populistas e antipolíticos podem causar à democracia. O principal é exatamente não agir como os populistas, que excluem do debate quem não está do seu lado. Se há eleitores apoiando um Donald Trump, o melhor que um liberal pode fazer é tentar entender as motivações desse grupo, sugerir soluções alternativas para seus problemas e trazê-la para o debate dentro das regras institucionais, e não ridicularizar ou deixar de levar a sério suas preocupações. Outra lição importante vem do professor da Universidade de Chicago Luigi Zingales, que, em artigo no New York Times, sugere que temos o que aprender com a Itália que derrotou Silvio Berlusconi. “Só dois homens ganharam uma competição eleitoral contra Berlusconi, e ambos o trataram como um oponente comum. Eles focaram nos problemas, e não no seu personagem.”
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos
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