O mar de Aral e a transposição do Rio Piumhi, artigo de Paulo Afonso da Mata Machado
[EcoDebate] Após visitar o mar de Aral, o secretário-geral da ONU, ao ser entrevistado em Nukus, capital da região autônoma de Karakalpak, assim se manifestou:
“No cais, eu não estava enxergando nada, eu podia ver apenas um cemitério de navios. É claramente um dos piores desastres ambientais do mundo”.1
Que terá acontecido para motivar tão grave acontecimento?
Recebendo água de dois rios, o Amu-Daria e o Syr-Daria, o mar de Aral tem secado progressivamente nos últimos 30 anos. As nascentes dos dois rios ficam nas altas montanhas que fazem parte do sistema do Himalaia e se distanciam cerca de 1.000 km da foz. Durante toda essa extensão, sucessivas retiradas de água dos rios, feitas pelo antigo governo soviético nas repúblicas da Ásia Central, a partir de 1920, fizeram com que o fluxo para o mar diminuísse consideravelmente (houve redução de 90% na vazão do Rio Syr-Daria).2
Com a diminuição do suprimento de água, rompeu-se o equilíbrio, pois as perdas por evaporação no Aral ultrapassaram o volume de água recebido da chuva e dos rios. Para haver a restauração do equilíbrio, o mar perdeu metade de sua superfície, reduzindo, em consequência, as perdas por evaporação.
Para que o mar recupere a superfície perdida, é necessário um aporte contínuo de água que supere as perdas por evaporação. A solução encontrada foi uma transposição de águas dos rios Ob e Volga para reforçarem o volume do mar de Aral. Os canais de transposição terão um comprimento de 3.300 km e, atualmente, o alto custo do projeto é o principal empecilho à realização da obra.
Surpreende que, nos debates em torno do PISF, bem como nos textos escritos sobre a transposição, o desastre do mar de Aral seja sempre citado pelos críticos do projeto.3 Entretanto, nunca é dito que esse desastre não foi causado por uma transposição entre bacias e muito menos que a solução encontrada envolve uma grande transposição entre bacias.
Cabe notar que, para haver simetria entre o desastre do mar de Aral e o PISF4, seria necessário que algo semelhante ocorresse não com o Rio São Francisco, mas com o Oceano Atlântico, onde se encontra a foz do Velho Chico.
O grande argumento contrário à transposição é de que o uso de água na própria bacia é menos danoso que uma transposição porque parte da água retirada percola de volta para o rio. O desastre do mar de Aral reforça a tese de que a retirada de água do rio para a agricultura seja para ser usada na bacia, seja para ser usada fora da bacia, produz efeito semelhante sobre a vazão do rio, visto que é insignificante a água usada em atividades agrícolas que retorna para o rio.5
No Brasil, temos um caso muito mais radical sem consequências drásticas. Trata-se do Rio Piumhi, antes pertencente à bacia do Rio Grande, afluente do Rio Paraná, e que foi remanejado para a bacia do Rio São Francisco.
Por que isso terá ocorrido?
Entre o final da década de 1950 e o início dos anos 1960, estava sendo construída a Represa de Furnas sobre o Rio Grande, afluente do Rio Paraná. Quando as comportas da usina hidrelétrica fossem fechadas, o nível da água da represa ultrapassaria o topo do divisor de águas com a bacia do rio São Francisco, conectando as duas bacias hidrográficas, inundando a cidade de Capitólio e jamais enchendo o reservatório de Furnas. Para solucionar esses problemas, foi projetada a construção de um dique nas imediações do município de Capitólio para conter as águas da represa de Furnas, dique esse que passaria a funcionar como divisor de águas entre as duas bacias.
Ocorre que as cabeceiras do Rio Piumhi ficariam a montante do dique. Impedidas de continuar seu trajeto em direção ao Rio Grande, as águas do Rio Piumhi formariam uma represa, alagando uma enorme área, incluindo a cidade de Capitólio. Para solucionar esse novo problema, foi construído um canal com aproximadamente 18 km de extensão até alcançar o Córrego Água Limpa, que desemboca no Ribeirão Sujo, afluente da margem direita do Rio São Francisco. Dessa forma, o Rio Piumhi, com todos os seus 22 afluentes perenes, passou a pertencer à bacia do Rio São Francisco. 6 No antigo leito do Rio Piumhi, formou-se um conjunto de lagos, que hoje é atração turística do município de Capitólio.7
A mudança de bacia do Rio Piumhi foi algo muito mais radical que uma simples transferência de água de uma bacia para outra. O canal de comunicação com o Córrego Água Limpa drenou um enorme pantanal que existia na região. Uma equipe da UFSCar está estudando os efeitos sobre a ictiofauna, tendo constatado, na bacia do São Francisco, a presença do peixe conhecido como “Ferreirinha”, originariamente da bacia do Rio Grande.
O estudo da influência da transposição do Rio Piumhi sobre a fauna da bacia do Rio São Francisco será um laboratório importante para se avaliarem possíveis efeitos na ictiofauna das bacias do Nordeste, que têm biodiversidade muito mais pobre que a bacia do Velho Chico.
Um simples dique de separação entre as bacias do Rio São Francisco e do Rio Grande propicia uma grande facilidade para transferência de água de uma para outra bacia. Assim, aqueles que temem que o São Francisco possa morrer 8por causa da transposição ou que a combatem sob a alegação de que esta possa antecipar conflitos por água na bacia do Velho Chico de 2035 para 2030,9 podem ficar sossegados: bastará a construção de uma comporta no dique para, havendo necessidade de mais água no Rio São Francisco e havendo disponibilidade na Represa de Furnas, águas possam ser transferidas para o Rio Piumhi e, por ele, levadas ao São Francisco. 10
Aqueles que temem um “apagão” de energia elétrica no Nordeste por causa da transposição também podem ficar sossegados. Mais fácil que transferir água de Furnas para o Velho Chico é fazer a transferência de energia elétrica dessa usina para o Nordeste. O Rio São Francisco já foi responsável por 90% da energia consumida na região,11 mas hoje, para acontecer um “apagão” seja no Nordeste, seja em qualquer outro ponto do país abastecido pelo sistema nacional de distribuição de energia, há necessidade de que a demanda por energia elétrica no país supere a oferta em Itaipu, em Furnas, em Três Marias e nas outras usinas de produção de energia interligadas ao sistema.
Paulo Afonso da Mata Machado é Engenheiro Civil e Sanitarista
1 O Estado de São Paulo – edição de 4.10.2010 – http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,morte-do-mar-de-aral-e-desastre-chocante-diz-secretario-geral-da-onu,533577,0.htm – consulta feita em 16.4.2010
2 Mar de Aral – http://www.tiosam.net/enciclopedia/?q=Mar_de_Aral – consulta feita em 16.4.2010
3 Toda a verdade sobre a transposição do Rio São Francisco – pag. 23
4 Toda a verdade sobre a transposição do Rio São Francisco – pag. 213
5 Recebi do Prof. Eloi, da UnB, a seguinte mensagem:
Caro Paulo Afonso,
Na irrigação moderna não se usa um volume de água maior que a demanda das plantas. Quando isso é feito se tem um consumo demasiado de energia (para bombear a água) e o risco de se desenvolver erosão.
Assim, de toda a água que é retirada do aquífero nada retorna. É perdida por evapotranspiração ou utilizada no metabolismo das plantas.
6 Em resposta a e-mail que enviei ao Prof. Orlando, da UFSCar, recebi o seguinte:
Caro Paulo, o divisor de águas era muito tênue, foi feito um canal de refluxo com aproximadamente 3 metros de fundura. Como o rio Piumhi foi barrado, o lago formado pelo rio Piumhi ficou com oito metros de altura, essa altura já foi suficiente para mudar o sentido do rio. Esse desnível foi suficiente para mudar o curso d’água por gravidade, não precisando nenhum tipo de bombeamento.
Paulo, me envia seu endereço postal para que eu possa enviar de presente um DVD de um programa da TV Globo (Terra da Gente). Este programa foi feito lá onde estou trabalhando no Piumhi. No programa colocamos os depoimentos das pessoas que trabalharam com as dragas na abertura do canal. Você vai ver o depoimento do Sr. Vilar ele que trabalhou com uma das dragas. Acho que depois que você assistir o vídeo essas dúvidas serão sanadas. Fiquei contente com seu interesse por esse assunto. Mesmo assim, estou a sua disposição para qualquer dúvida. Aguardo seu endereço. Orlando
7 Transposição do Rio Piumhi – http://www.transpiumhi.ufscar.br/historico.htm – consulta feita em 15.4.2010
8 Toda a verdade sobre a transposição do Rio São Francisco – pags. 14 e 252
9 Toda a verdade sobre a transposição do Rio São Francisco – pag. 227
10 Toda a verdade sobre a transposição do Rio São Francisco – pag. 139
11 Toda a verdade sobre a transposição do Rio São Francisco – pag. 133
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 24/04/2017
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