"Ciente do poder transformador da multidão, da ameaça que ela significa; o estado capitalista trata de trabalhar para dissolvê-la, desarticulando os nós de organização, interditando os terrenos e suas novas coordenadas, onde agora o conflito social se torna mais visível, e onde as alternativas de democracia real começam a ser reconhecidas e ganharem adesão", escreve Bruno Cava.
Segundo ele, "é preciso cuidar em não transferir a luta do terreno da invenção democrática, para o terreno de um conflito contra o estado, que venha a ser realizado nos termos que o próprio estado determina. Termos aliás onde ele é mais forte, mais preparado para reagir e dissolver a multidão, e assim a força inovadora e que nutre de vitalidade o próprio movimento".
Bruno Cava é graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica e em Direito, possui mestrado em Direito na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e é editor do blog quadradodosloucos.com.br. É autor de A vida dos direitos: ensaio sobre violência e modernidade (Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2008) e publica contos, crônicas, resenhas e críticas em diversos sítios. Recentemente publicou o livro A multidão foi ao deserto. As manifestações no Brasil em 2013 (Jun/Out), pela Editora Anablume.
Eis o artigo.
O movimento de junho de 2013 abriu um terreno de contestação, formulação e produção de alternativas. A inclusão social e a conquista de direitos durante os governos Lula/Dilma não foram acompanhadas de uma abertura democrática dos modelos de gestão da cidade, do desenvolvimento e de inserção no trabalho. Em vez de renovar os mecanismos do sistema representativo brasileiro, aconteceu um fechamento progressivo, em nome de um sistema de alianças conservador e de grandes consórcios público-privados, com uma surdez crescente diante de movimentos sociais, das lutas contra o racismo, o preconceito e a desigualdade, bem como diante de formas de comunicação e organização de novo tipo. Esse fechamento está chegando ao impermeável completo, no momento da realização de megaeventos em regime de exceção econômica e policial, que não só têm sido geridos pela esquerda no poder, como comemorados ufanisticamente, reativando memórias amargas de um passado de chumbo, pelo visto, inconcluso.
Apesar dos altos e baixos, as manifestações proliferantes dos últimos nove meses conseguiram reunir um conjunto de insatisfações e indignações, assentadas numa sociedade em franca mutação, que deseja mais e melhor, e que deseja também participar diretamente, fazer a própria democracia, a democracia real. Nesse sentido, as manifestações exprimem uma resposta constituinte, num tempo de abrangentes e impermeáveis consensos construídos desde “cima”, segundo uma síntese escandalosa entre projetos de direita e gestores de esquerda.
Talvez não seja correto falar em “o movimento de junho de 2013″, pois se corre o risco de parecer um personagem unitário, com um rosto só, ao modo do formato tradicional de um movimento social. Porque são muitos movimentos, coletivos, agregados sociais e políticos, muitas franjas de transformação que ora se agrupam, segundo bases materiais de demandas (a mobilidade urbana, a moradia, a reforma das polícias, a defesa das minorias etc), ora se dispersam em redes preexistentes. Novos grupos surgem e se destacam, outros perdem fôlego, e se dissolvem. O processo é dinâmico e muito flexível, o que não significa desorganizado.
O conceito de multidão, como rede de singularidades que, na luta e pela luta, afirmam suas diferenças constitutivas em relação aos modelos majoritários e consensos homogeneizadores, parece ser uma boa aposta política. Não só para explicar o movimento, mas também para tomá-lo como hipótese de ação e reforçar o caráter democrático e constituinte. Na medida em que, enquanto multidão, as diferenças não são niveladas, reduzidas ao Uno, fazendo-se em vez disso que funcionem sem precisar de unificação numa liderança pessoal, bandeira ou ideologia. Ou seja, a verdadeira força do movimento (sua capacidade de renovação, autocrítica, decisão democrática) decorre acima de tudo de sua multiplicidade de táticas, pautas, composições sociais, formas de organização e comunicação — uma força na diferenciação, na capacidade de reunir pessoas e grupos muito diferentes. O que significa uma força qualitativa, capaz de realizar o conflito além do mero choque de energias, como um conflito criativo, de dribles, reaparições, espertezas.
Isto não significa, no entanto, defender alguma diversidade em si, algum “multiculturalismo de lutas”, uma vez que a base material do movimento continua sendo um dissenso qualificado em relação ao projeto do poder constituído para a cidade, o desenvolvimento e a manutenção de uma ordem racista, desigual e policialesca. As bases materiais é que sustentam o movimento mesmo sob o bombardeio político-midiático das forças da ordem, porque atravessam as pessoas como sua condição própria, além de qualquer necessidade de compromisso ideológico ou adesão organizacional. É compondo-se nesse processo de dissenso real que a multidão pode funcionar sem perder-se em si mesma — e é aí também que reside o seu caráter de classe, como luta contra um presente intolerável e institucionalizado.
Ciente do poder transformador da multidão, da ameaça que ela significa; o estado capitalista trata de trabalhar para dissolvê-la, desarticulando os nós de organização, interditando os terrenos e suas novas coordenadas, onde agora o conflito social se torna mais visível, e onde as alternativas de democracia real começam a ser reconhecidas e ganharem adesão; em suma, onde a emergência de uma subjetividade antagonista se torna sujeito político. Segundo a estratégia do estado, a decomposição do movimento passa a acontecer, nesse propósito de retomada do controle, mediante as tentativas de desafetar os corpos do gosto pela ação política (o programa de volta à “normalidade”), e de desligar os lugares de encontro e enredamento que permitem que a multidão funcione junta (o programa de criminalização). Isto sucede com vários tipos de ação, em distintas gradações: disseminando o medo, numa pedagogia ora condescendente (seriam ingênuos, alienados, aliciados), ora brutal (vândalos, terroristas). Às formas autônomas da multidão, exigem as formas tradicionais e pacificadas de dissenso: nos partidos, nas eleições, no sindicato, ou na disputa pela “opinião pública”, e sempre segundo as coordenadas pré-definidas e intocáveis dadas pela atual grande mídia corporativa, uma ditadura midiática que ela apresenta como “liberdade de imprensa” ou “liberdade de expressão”. Isto é, querem um falso dissenso, uma discordância de mentirinha que não mexe no pressuposto de funcionamento da própria linha que divide situação e oposição, concordância e discordância.
Mas não só. É preciso aprofundar a análise, além de qualquer dicotomia entre multidão e estado, como se fossem entes perfeitamente delineados. A dissolução da multidão também pode suceder quando o estado aproveita as contradições no interior do próprio movimento, entrando em relação com tendências internas, que possam conduzir à redução da multiplicidade, para romper a capacidade de renovação, recomposição e abertura para outros sujeitos sociais e políticos aderirem. Essa relação entre o estado e tendências que transitam pela multidão aparece inclusive em escala micro, em diálogos de linha de frente, em olhares e fetiches pelo poder transcendente, e num ódio cuja falsa radicalidade por vezes esconde certo estranho amor pelo próprio estado e seus agentes armados. Isto explica, talvez, uma grande armadilha que o movimento de junho no Brasil, expressão de lutas globais, tenha de contornar para seguir na sua trajetória democrática e constituinte.
É fato que uma tendência vanguardista tenha aflorado, quase no mesmo compasso em que as manifestações se tornaram objeto da brutalidade policial-midiática. Presente desde junho em maior ou menor grau, essa tendência aparentemente funciona em dialética com a ação do estado. Ela não só é consequência da ação do estado, como precisa dela, alimenta-se dela, e a usa para forjar consensos e dobrar resistências quanto à sua pertinência e validade. Quanto mais a brutalidade se abate sobre a multidão, mais o erro vanguardista reforça o discurso da reação segundo os mesmíssimos termos, enquanto violência no sentido contrário.
Neste ponto, como o debate está tão saturado, é preciso fazer vários considerandos. Obviamente, isto não significa aderir ao discurso de quem atribui a esses grupos (os “grupelhos raciais” ou “minorias vândalas”) a culpa pela violência nas manifestações. Só não veem os inúmeros exemplos da responsabilidade estatal aqueles que, por conveniência ou preguiça, se informam pelo noticiário. O noticiário da mesma grande mídia corporativa perante a qual as manifestações também exprimem dissenso e produzem alternativas de mídia.
A violência nunca foi simétrica, numa ordem estatal que traz no DNA a chacina cotidiana de pobres e negros, moradores em situação de rua ou com sofrimento mental, em números industriais, e quando, questionado por mobilizações populares, o poder constituído responde com tortura, prisão e lei antiterrorismo. De qualquer modo, pretendendo formar uma frente única para lutar contra a repressão de maneira direta, essa tendência vanguardista promove no interior do movimento táticas, formas de organização e comunicação que são incompatíveis com a multiplicidade.
Porque multiplicidade não é diversidade. A multiplicidade é um processo expansivo e diversificador. Uma vez que trabalham para dissolvê-la, para reduzi-la numa resposta que reproduz os velhos terrenos de disputa, essa tendência vanguardista trabalha também para reduzir o caráter de multiplicidade, interrompendo o movimento diversificador. O resultado disso só pode ser a interrupção dos fluxos, a demarcação de uma linha dentro/fora do movimento e, finalmente, a paralisia quantitativa e qualitativa. Essa será a hora perfeita para a repressão. Por isso, é preciso cuidar para que a autodefesa não ultrapassar os propósitos contingentes de defesa, que é legítima. É preciso cuidar em não transferir a luta do terreno da invenção democrática, para o terreno de um conflito contra o estado, que venha a ser realizado nos termos que o próprio estado determina. Termos aliás onde ele é mais forte, mais preparado para reagir e dissolver a multidão, e assim a força inovadora e que nutre de vitalidade o próprio movimento.
Nesse sentido, não é caso de levantar ainda outra posição intermédia a título de moderação, que oponha duas forças igualmente condenáveis, por ambas assumirem a violência como meio. Essa é uma posição idealista, quando não totalmente cínica. O “extremismo de centro” brasileiro sempre foi o esporte predileto dos conservadores e “progressistas” de sofá, onde a “radicalização” e o “radical” são figuras prontas para não se fazer nada de concreto e que tudo permaneça igual, cada um na sua zona de conforto (só que não). Desconfie sempre dos moderados, daqueles que proponham lucidez e maturidade “em tempos de radicalismo”. Eles não estão no meio dos lados.
O caso, aqui, bem diferente, é propor algumas hipóteses como apostas políticas:
1) A tendência vanguardista é apenas uma entre muitas de uma multiplicidade de movimentos que, desde junho, se converteu num movimento da multiplicidade: um movimento de autoprodução e autotransformação, de proliferação de diferenças, táticas e alternativas, com muitas tendências positivas, que não podem ser promovidas pela ordem vigente e, por isso mesmo, nunca aparecem no noticiário nem são elogiadas.
2) O problema da tendência vanguardista não é a radicalização, é justamente o fato de não ser radical o suficiente. A radicalidade do movimento desde junho consiste na sua grande abertura às diferenças, compondo-as num dissenso muito qualificado em relação aos projetos de cidade, desenvolvimento e representação (partidária, eleitoral, sindical, jornalística), isto é, seu caráter duplo de multiplicidade e luta antagonista: multidão.
3) O problema da tendência vanguardista não pode ser enfrentado eficazmente de fora do movimento, criticando-o como se fosse um comentador de futebol, sem entender as circunstâncias e o funcionamento complexo dos sistemas-redes e nós de comunicação que coexistem na multiplicidade, o que depende de co-pesquisa, instâncias coletivas de discussão e capacidade de autocrítica.
4) A melhor maneira de endereçar o problema da tendência vanguardista talvez seja tomá-lo como um problema de organização. Ou seja, aqueles grupos e pessoas afetados por essa tendência terminam por reproduzir métodos de fechamento, sensos de pertencimento e identidade, e círculos de segredo e acesso, que comprometem as leituras de conjuntura, a tomada de decisão e a relação com o movimento como um todo. O que hoje tem se refletido na ideia de uma frente unificada contra a repressão, numa leitura cada vez mais distante das bases materiais, e que pode terminar sucumbindo à dialética com o estado. O sujeito antagonista não se deve deixar capturar por essa dialética.
5) Unificar o movimento como um enfrentamento antiestatal direto e aberto, geralmente enfrentando-se suas forças mais visíveis (não por acaso, mais violentas e armadas) é, novamente, uma radicalização falsa e insuficiente. Isto significa, na verdade, uma capitulação aos termos da luta dados pelo próprio estado. A luta precisa multiplicar coordenadas e não se deixar cercar. A alternativa a isso, portanto, consiste em apostar no fortalecimento das organizações abertas, diversificadas, e sobretudo apoiadas nas bases materiais dos protestos (o direito à cidade, alternativas de desenvolvimento, propostas de reforma/desconstituição das polícias).
6) Importante: nada do que aqui foi escrito deve levar ao nivelamento entre “tendência vanguardista” e táticas de autodefesa em geral. A defesa direta do movimento é sempre legítima enquanto uma das muitas táticas, formas de organização e ação direta, dentre a multiplicidade do movimento, em função de circunstâncias específicas. Essas táticas não podem ser condenadas em si mesmas, abstratamente, porque o plano abstrato é o plano onde o estado se auto-legítima. A legitimidade dessa defesa pode ser comprovada em qualquer manifestação que seja reprimida, e decorre da própria ilegitimidade de como o estado tem lidado com os protestos desde junho, sem falar em sua atuação normal nas favelas, bairros de periferia, contra sem teto, ou nas prisões. O direito de resistência à tirania é teorizado e reconhecido desde pelo menos o século XVIII. O que não significa, vale deixar bem claro, que o fato da legítima defesa, reconhecido até mesmo pelos liberais, possa ser usado como pretexto automático para a tendência vanguardista, que vai além para deliberar e premeditar a violência contra agentes do estado (quase nunca, com isso, atingindo o estado), em vez de apelar a ela como último recurso e a contragosto, em momentos críticos de brutalidade, e onde ela favoreça, por exemplo, a saída em segurança de manifestantes das nuvens de gás, bombas e projéteis.
Em conclusão, dentro da amálgama de sujeitos sociais e políticos, de grupos, assembleias, coletivos, mediativismos e redes, trata-se de fortalecer politicamente aqueles grumos de organização que permitam agregar conversas amplas, horizontais, compartilhamentos de experiências, sobretudo entre grupos heterogêneos, que adotem linguagens diferentes, e sem perder de vista as bases materiais e sociais dos protestos em que todos estão implicados. Um exemplo embrionário disso, no Rio de Janeiro, é a Assembleia do Largo. O caso é fortalecer a multidão neste vórtex de forças e tendências, fortalecê-la numa tendência afirmativa e democrática, uma tendência radicalmente democrática.
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos
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