O dia em que o mundo explodiu em Krakatoa, Java.
Em 27 de agosto de 1883, a erupção do vulcão Krakatoa, em Java, destruiu 165 cidades, matou mais de 30 mil pessoas e espalhou pelo mundo todo a notícia de que o fim dos tempos havia chegado
Carla Aranha e Pedro Kastro | 01/01/2004 00h00
Um sofisticado prato de porcelana da senhora Van der Stok, uma holandesa de meia-idade da elegante sociedade de Batavia, capital da ilha de Java, caiu da mesa e se espatifou no chão. Foi o primeiro sinal do que estava por vir. Nos quatro meses seguintes, ela e todos os moradores do arquipélago de Java sentiriam tantos tremores vindos das profundezas da Terra que o fato virou rotina. E quando começou o mês de agosto de 1883 ninguém mais se importava com aqueles pequenos terremotos cotidianos. Isto é, a não ser os próprios javaneses, que alertavam seus patrões europeus sobre a catástrofe que se anunciava. Mas os colonizadores desse pedaço do mundo, situado entre a Tailândia e a Austrália, atribuíam o pânico dos nativos à ignorância, um corpo estranho no mundo perfeitamente ordenado pelos ocidentais em Java. Em 1883, a ilha já tinha bondes, jornais e até um correspondente da agência de notícias Reuters, fundada poucos anos antes.
Por isso, às vésperas da catástrofe, quando oito pescadores entraram esbaforidos na casa de outra respeitada senhora holandesa, esposa de um certo Willem Beyerinck, relatando o que haviam visto na vizinha ilhota de Krakatoa, ela tampouco acreditou. “Imagine, jatos de cinza preta e pedras vermelhas voando pelo ar. Esses javaneses enlouqueceram”, contou horas mais tarde ao marido. Ao perceber, porém, que a fumaça que saía do vulcão aumentava a cada dia, a senhora Beyerinck, em um surto de realidade, implorou a seu marido para que a família deixasse a casa e fosse para o sítio no alto de uma colina. O marido recusou o pedido. Foi um engano fatal.
Os sinais tão insistentemente ignorados por ele e toda a minoria européia eram o ensaio de um dos maiores cataclismos que até hoje se abateram sobre a humanidade. No dia 27 de agosto de 1883, a explosão do vulcão de Krakatoa matou 36 417 pessoas (número recorde de vítimas desse tipo de catástrofe até hoje registrado) e devastou 165 cidades e vilarejos das ilhas vizinhas, provocando ondas que se propagaram até a Inglaterra.
Às 14 horas, quando essas ondas gigantes começaram a destruir as paredes da casa da senhora Beyerinck, ela e toda sua família saíram correndo morro acima. Tiveram que vencer uma chuva de pedras e cinzas enquanto a imensa parede de água os perseguia. No caminho, pessoas pisoteadas, outras desesperadas e a parede de água em sua perseguição sem trégua. Para completar, estava tudo escuro. Partículas suspensas na atmosfera, oriundas da explosão, impediam a passagem dos raios solares. Feridos, os Beyerinck chegaram ao sítio dez horas depois (o percurso era normalmente feito em três). “Pensei que era o fim do mundo, e que todos fôssemos morrer”, deixou registrado em seu diário Willem Beyrinck, cujos relatos são uma das principais fontes do livro Krakatoa – The Day the World Exploded (“Krakatoa – O Dia em que o Mundo Explodiu”), do geógrafo britânico Simon Winchester. A obra reúne depoimentos feitos à época, a repercussão em todo o mundo e as explicações científicas modernas para o cataclismo.
Sabe-se hoje que a explosão que fez em pedaços a ilha de Krakatoa tinha hora e lugar certo para acontecer. Durante milênios duas grandes placas tectônicas vinham se aproximando lentamente na região de Java e Sumatra. Hoje os geólogos sabem que o encontro dessas duas placas, uma oceânica, mais pesada, outra continental, mais leve, só poderia provocar uma destruição como aquela. A colisão de placas dessa natureza é rara, para sorte dos habitantes do planeta.
E a conseqüência desse tipo de encontro é uma só: a placa mais pesada escorrega para debaixo da borda da mais leve. Em seu mergulho para as profundezas do magma terrestre, incandescente, a placa oceânica leva junto com ela água do mar, areia, rochas e outros elementos. Tudo começa a ferver e a derreter, formando um composto viscoso e quentíssimo. Quando a pressão aumenta, esse imenso volume de gás e magma é expelido de uma vez só pela panela de pressão ideal, o vulcão mais próximo.
Foi o que aconteceu em Java em agosto de 1883. As pequenas erupções observadas pelos pescadores desde maio aumentaram de repente, e o vulcão de Krakatoa começou a expelir cinzas em tão grande quantidade que o dia virou noite. Todos os navios que transitavam pelo estreito de Sunda, entre Java e Sumatra, se perderam na escuridão. Meio mundo – 3 mil quilômetros ao redor da ilha, incluindo locais como Nova Guiné e a Austrália – sentiu o barulho considerado o mais estrondoso já produzido pela natureza.
Antes tivesse sido só um estrondo. Enormes nuvens de gás, pedra-pome em alta temperatura (naturalmente produzida em explosões vulcânicas), fogo e fumaça subiram aos céus. E o pior ainda estava por vir nas horas seguintes. Após a mais potente das quatro explosões de Krakatoa que haviam se sucedido durante o dia, a montanha cambaleou para um lado, cambaleou para outro e ruiu de vez. Ao contrário do que geralmente acontece em grandes erupções vulcânicas, a maioria das vítimas não morreu por efeito dos gases nem das gigantescas ondas de lava que cobriram a ilha. Apenas as primeiras mil estavam na área do arquipélago por onde sopravam os ventos vindos de Krakatoa, a sudeste de Sumatra, cheios de gases letais. O responsável pela morte de outras 35 500 pessoas foi a água. Ao balançar de um lado para outro, o vulcão provocou movimentos semelhantes no mar, formando uma onda de mais de 30 metros de altura.
Uma hora mais tarde, outra enorme onda, ainda maior e mais devastadora que a primeira, destruiu cidades inteiras nas ilhas do arquipélago de Java e matou milhares de pessoas de uma só vez. Para os poucos sobreviventes, não havia dúvidas. Era chegada a hora do juízo final.
Fora da compreensão dos homens, o fenômeno de Krakatoa estava estampado em todos os jornais do mundo apenas um ou dois dias depois da explosão. No final do século 19, as agências de notícias já levavam os fatos para os quatro cantos do planeta, através de uma complexa rede de cabos submarinos. Mas, se a tecnologia avançava a passos largos, a ciência apenas começava a caminhar. E, sem um respaldo de explicações científicas para a catástrofe, manchetes de jornais anunciavam o fim dos tempos. Foram necessários mais de 80 anos para que a humanidade pudesse finalmente compreender os acontecimentos daquela ilha vulcânica com nome de caranguejo – aliás, a espécie foi extinta naquele dia. Os cientistas nunca desistiram. E o nome da ilhota ficou para sempre registrado na memória humana.
A violência do mar em Java inflacionou as estatísticas de pessoas mortas por tsunamis, que é o nome japonês para aquelas ondas espetaculares. Mais da metade das vítimas de tsunamis dos últimos 250 anos morreu em 27 de agosto de 1883, em Java e Sumatra. As cidades de Anjer, Ketimbang, Telok, Merak e Tyringin foram varridas pela parede de água, assim como centenas de vilarejos. Batavia, a capital, sobreviveu por pura sorte, graças à proteção natural contra ondas oferecida pelas barreiras de coral e pequenas ilhas que a circundam. Mesmo assim, as centenas de canais que, bem ao gosto holandês, faziam parte da arquitetura da cidade transbordaram rapidamente, inundando as ruas.
Fragmentos do vulcão de Krakatoa atingiram alturas tão dramáticas na atmosfera que ficaram suspensos por quase cinco anos, modificando as cores do pôr-do-sol durante esse período na Europa, Estados Unidos, Ásia, África e América. Vermelhos intensos se transformavam em rosas vibrantes conforme a luz era refletida e filtrada pelas partículas. Em uma área rural do centro-sul dos Estados Unidos, os fazendeiros pensaram se tratar de fogo a primeira vez que viram o pôr-do-sol psicodélico, e reportaram a experiência ao jornal local. Outra conseqüência da explosão de Krakatoa foi uma sensível diminuição na temperatura global, de cerca de 1 ºC, que durou enquanto as partículas permaneceram em suspensão, dificultando a passagem dos raios solares. Esse efeito no clima fez com que se começasse a debater fenômenos como o aquecimento global, a emissão de gases na atmosfera, chuva ácida e protecão ambiental.
Os relatos deixados por aqueles que viveram o fenômeno, somados a medições feitas pelos instrumentos da época, foram de fundamental importância para a compreensão, décadas mais tarde, dos movimentos das placas tectônicas – que serve, entre outras coisas, para prever terremotos e erupções vulcânicas. A meteorologia, por sua vez, foi elevada ao status de ciência definitivamente depois dos eventos em Java, ao mesmo tempo em que algumas das mentes mais brilhantes do mundo começaram a se interessar pela geologia, então uma ciência incipiente.
A biologia também se beneficia até hoje da explosão da ilha. O que restou dela e a vida que passou a surgir ali é o maior laboratório ao ar livre do mundo. No início do século 20, várias minúsculas ilhas se formaram e foram tragadas em seguida pelo mar na região de Java. Até que uma delas, formada por pequenas erupções de dois vulcões adjacentes, conseguiu sobreviver. Batizada de Annak Krakatoa (filho de Krakatoa), ela tem o seu próprio vulcão ativo. Hoje, de um lado há o que restou do local da explosão. De outro, a nova ilha. Para os biólogos, é uma chance inestimável de assistir ao aparecimento da vida, em terra virgem, e ao ressurgimento dela na terra morta. Mas pouco a pouco a vida retornou aos restos de Krakatoa. Primeiro a relva, arbustos e palmeiras. Depois insetos e pássaros. Os répteis são os mais recentes moradores da ilha, um verdadeiro Jardim do Éden terreno, que já não inspira tanto medo quando o que assolou a pobre senhora Beyerinck.
Fonte : Guia do Estudante
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