Biodiversidade
Mobilização contra lei que regulamenta a biopirataria
Indígenas, populações tradicionais e agricultores reuniram-se semana passada em Brasília para protestar contra projeto ruralista que ameaça a biodiversidade nacional
Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), durante ato em Brasília contra a aprovação de lei ruralista que ameaça a biodiversidade
O avanço do Congresso mais reacionário desde a redemocratização sobre direitos coletivos tem mais um capítulo em aberto: o PL n.º 7.735/2014, atual PLC n.º 02/2015. Trata-se de uma nova medida legislativa que visa privatizar o acesso e a exploração econômica da biodiversidade e da agrobiodiversidade brasileiras, bem como dos conhecimentos tradicionais associados, contra os direitos comuns de sociedades indígenas, comunidades tradicionais e os agricultores familiares.
Esse PLC soma-se a um amontoado de siglas que representam medidas extremamente violentas e contrárias aos direitos sociais e da natureza contidos na Constituição federal de 1988, tais como a PEC 215 que ameaça os direitos territoriais indígenas, o PL 37/2011 que cria um novo marco regulador para a expansão da mineração, a PEC 237/2013 que abre as terras indígenas para a invasão do agronegócio. Um rolo compressor do capital, liderado pela bancada ruralista mas que junta diversos interesses.
O PL dos recursos genéticos foi votado pela Câmara na noite do dia 10 de fevereiro, logo antes do carnaval, com emendas ao substitutivo do ruralista Alceu Moreira (PMDB-RS) do Projeto de Lei do Executivo (PL) 7.735/2014, e agora a medida está no Senado prestes a ser votada, em regime de urgência. Na Câmara a medida correu rápido como parte do acordo do presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para facilitar a aprovação de projetos de interesse dos ruralistas em troca do apoio à sua eleição.
Entre os diversos retrocessos dessa medida legislativa, o Instituto Socioambiental, uma das organizações que assina a Carta de Repúdio, indica que a redação não prevê que populações indígenas e tradicionais possam negar o acesso a seus conhecimentos e traz diversas restrições à repartição dos benefícios oriundos da exploração econômica desses conhecimentos.
O embate contra o rolo compressor de retrocessos de direitos, que parece um "correntão" social, para fazer analogia com a máquina de desmatamento, tem enfrentado forte resistência das populações atingidas. Mas, sem terem conseguido alçar representantes no Congresso, majoritariamente controlado por ruralistas, as resistências têm se constituído por ações diretas no Congresso e a união de diversas organizações e movimentos sociais para juntar forças e fazer pressão, com alguns deputados aliados.
Semana passada várias destas organizações estiveram em Brasília. Entregaram no Ministério do Meio Ambiente uma carta de repúdio à esse projeto de lei. Nesse documento, registram que estão plenamente cientes da atual ofensiva contra seus direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal, pela legislação ordinária e por Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, contexto no qual se insere o PL n.º 7.735/2014, apresentado ao Congresso Nacional pelo governo federal em regime de urgência. E informam que estão mobilizados e determinados a lutar conjuntamente.
O PL em questão favorece os setores farmacêutico, de cosméticos e do agronegócio (principalmente sementeiros), e ameaça a biodiversidade, os conhecimentos tradicionais associados e programas estruturantes para a segurança e soberania alimentares, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com a possibilidade inclusive de legalização da biopirataria.
Abaixo o inteiro teor da carta assinado por 80 organizações, entre elas, o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Instituto Socioambiental (ISA) e oMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):
POVOS INDÍGENAS, POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AGRICULTORES FAMILIARES REPUDIAM PROJETO DE LEI QUE VENDE E DESTRÓI A BIODIVERSIDADE NACIONAL
Os Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e os Agricultores Familiares do Brasil, representados por suas entidades e organizações parceiras abaixo assinadas, vêm expor o seu posicionamento sobre o Projeto de Lei n.º 7.735/2014 (atual PLC n.º 02/2015), que pretende regulamentar o acesso e a exploração econômica da biodiversidade e da agrobiodiversidade brasileiras, bem como dos conhecimentos tradicionais associados.
De início, registramos que os Povos e Comunidades acima mencionados estão plenamente cientes da atual ofensiva verificada no Brasil contra seus direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal, pela legislação ordinária e por Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, contexto no qual se insere o PL n.º 7.735/2014, apresentado ao Congresso Nacional pelo governo federal em regime de urgência. Em razão desse cenário, que ameaça a própria existência dos Povos e Comunidades Tradicionais, informamos que as entidades representativas encontram-se unidas e mobilizadas com a determinação de lutar conjuntamente na defesa de seus direitos historicamente conquistados, os quais constituem a base da soberania e democracia constitucional do País.
Especificamente em relação ao PL n.º 7.735/2014, que pretende anular e restringir nossos direitos, repudiamos a decisão deliberada do Poder Executivo de nos excluir do processo de sua elaboração, sem qualquer debate ou consulta, em violação à Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), à Convenção da Diversidade Biológica (CDB), ao Tratado Internacional dos Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura/FAO (TIRFAA) e à Constituição Federal. Em contraste a isso, denunciamos o amplo favorecimento dos setores farmacêutico, de cosméticos e do agronegócio (principalmente sementeiros), a ponto de ameaçar a biodiversidade, os conhecimentos tradicionais associados e programas estruturantes para a segurança e soberania alimentares, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com a possibilidade inclusive de legalização da biopirataria.
Tal cenário, reconhecido pelo próprio Governo, resultou em grave desequilíbrio no conteúdo do Projeto de Lei em questão. Além de anistiar as irregularidades e violações históricas e excluir qualquer fiscalização do Poder Público sobre as atividades de acesso e exploração econômica, o PL n.º 7.735/2014 viola direitos já consagrados na legislação brasileira, o que pode ser claramente verificado nos seguintes pontos principais:
(1) Em relação ao acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais:
a) Deixa de prever e inviabiliza a negativa de consentimento prévio dos povos e comunidades tradicionais;
b) Flexibiliza a comprovação do consentimento livre, prévio e informado, em detrimento da proteção de conhecimentos coletivos;
c) Dispensa o consentimento livre, prévio e informado, para o acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado relacionado à alimentação e agricultura; e
d) Permite que empresas nacionais e internacionais acessem e explorem, sem controle e fiscalização, o patrimônio genético brasileiro e os conhecimentos tradicionais associados, permitindo, por exemplo, o acesso de empresas estrangeiras a bancos de sementes.
(2) No que tange à repartição de benefícios:
a) Prevê que apenas produtos acabados serão objeto de repartição de benefícios, excluindo os produtos intermediários;
b) Restringe a repartição de benefícios aos casos em que o patrimônio genético ou conhecimento tradicional for qualificado como elemento principal de agregação de valor ao produto;
c) Isenta de repartição de benefícios todos os inúmeros casos de acessos realizados anteriormente ao ano de 2000, e mantém explorações econômicas até hoje;
d) Condiciona a repartição de benefícios apenas aos produtos previstos em Lista de Classificação a ser elaborada em ato conjunto por seis Ministérios;
e) Estabelece teto, ao invés de base, para o valor a ser pago a título de repartição de benefícios;
f) Deixa a critério exclusivo das empresas nacionais e internacionais a escolha da modalidade de repartição de benefícios nos casos de acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional de origem não identificável;
g) Isenta microempresas, empresas de pequeno porte e micro empreendedores individuais de repartir benefícios; e
h) Exclui de repartição de benefícios a exploração econômica do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado relacionado à alimentação e agricultura.
(3) No que se refere às definições:
a) Substitui o termo “povos” por “população” ao tratar de povos indígenas;
b) Substitui o termo “agricultor familiar” por “agricultor tradicional”, em afronta à Lei 11.326/2006;
c) Descaracteriza a definição de “sementes crioulas” contida na Lei n.º 10.711/2003;
d) Deixa de prever que o atestado de regularidade de acesso seja prévio e com debates participativos sobre seus termos ao início das atividades; e
e) Enfim, adotou conceitos à revelia dos detentores dos conhecimentos tradicionais.
Diante do exposto, os Povos Indígenas, os Povos e Comunidades Tradicionais e os Agricultores Familiares do Brasil exigem o comprometimento do Governo Federal com a reversão do cenário acima denunciado, mediante a correção dos graves equívocos contidos no Projeto de Lei n.º 7.735/2014, de forma a assegurar o respeito e a efetivação dos seus direitos legal e constitucionalmente garantidos.
Declaramos que não mais admitiremos a postura antidemocrática e o engajamento político do Governo Federal, associado aos interesses empresariais e outros, em direção à expropriação da biodiversidade e da agrobiodiversidade brasileiras e dos conhecimentos tradicionais associados.
Reafirmamos, por fim, a nossa determinação de continuar unidos, mobilizados e dispostos a manter-nos em permanente luta na defesa de justiça e de nossos direitos.
Fonte : CartaCapital
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