“A metrópole venceu: ela implodiu-explodiu todos os muros disciplinares que pretenderiam governar o espaço e irrompeu como um fenômeno global”, afirma o pesquisador.
Foto: Blog adcidade |
Recentemente, Mendes participou do Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, que está sendo promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, abordando a relação entre metrópole e multidão e as políticas públicas do comum.
Na avaliação dele, a metrópole é hoje uma “verdadeira ‘fábrica social e difusa’, uma nova usina produtiva que opera, não por linhas, moldes e rígidas topologias, mas por redes, modulações e apreensões intensivas do fluxo social”. Ele explica que essas “apreensões buscam, justamente, a apropriação de tudo que é produzido em comum através das relações e cooperações que entram em ebulição no movimentado caldeirão das metrópoles”.
Na entrevista a seguir, Mendes traça ainda uma distinção entre o que vem a ser a cidadania concebida a partir da ideia de “comum” e as formas keynesianas ou neoliberais que propõem a gestão do espaço urbano, sinalizando que o conceito de comum “nos ajuda a pensar também nas formas atuais de fazer política e luta na metrópole”. As políticas do comum, diferente das demais, pontua, “assumem o desafio de caminhar para além do bem-estar e da dívida (do público e do privado), buscando potencializar formas de conduta e de subjetivação que deslizam dos mecanismos disciplinares-fabris e do biopoder das finanças (...). Elas assumem o terreno biopolítico e produtivo da metrópole garantindo e proliferando espaços de cooperação, encontro de singularidades, mobilização e constituição relativamente autônoma da vida. Elas miram naquilo que Lefebvre e Bachelard definiam como uma poética do espaço: o habitar como poeta, a vida como obra de arte”.
Alexandre F. Mendes (foto abaixo) é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Criminologia e Direito Penal pela Universidade Cândido Mendes – UCAM. Foi Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2011, tendo coordenado o Núcleo de Terras e Habitação (2010).
Atualmente pesquisa Teoria Política e Teoria do Direito e realiza investigações em Sociologia Jurídica e Sociologia Urbana. É pesquisador associado do Laboratório Território e Comunicação – LABTEC da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e participa da rede Universidade Nômade e dos Círculos de cidadania – Rio de Janeiro, Publicou, com Bruno Cava, o livro A vida dos direitos. Violência e Modernidade em Foucault e Agamben (2006). É coeditor da Revista Lugar Comum: Estudos de Mídia, Cultura e Democracia, da UFRJ.
Confira a entrevista.
Foto: Cristina Guerini |
Alexandre F. Mendes - Há muito tempo se percebe um sonho disciplinar com relação à cidade. Do acampamento romano ao planejamento moderno, trata-se de esquadrinhar o espaço a partir de uma lógica hierárquica, geométrica e funcional, que busca organizar os fluxos da cidade através de fronteiras bem determinadas. Le Corbusier, o famoso arquiteto suíço, abre o seu livro L’Urbanisme invocando o caminhar do homens, aquele que avança em linha reta, com postura altiva, sendo coberto de racionalidade, contra o caminhar das mulas, andar torto, em curvas, direcionado ao chão, que gera confusão e produz uma mistura perigosa para os homens. No mesmo livro, a metrópole de Nova York aparece como o contraexemplo ruidoso de todo urbanismo possível: amálgama pernicioso, espaço dissonante, usina tóxica de homens perdidos. No entanto, no confronto com a utopia da cidade-racional, talvez seja o caso de afirmar que a metrópole venceu: ela implodiu-explodiu todos os muros disciplinares que pretenderiam governar o espaço e irrompeu como um fenômeno global. Não por acaso, em seus breves comentários sobre o urbano, Foucault notou que a escola americana (os urbanistas de Chicago) tinha captado a tendência biopolítica das cidades: não esquadrinhar o espaço a partir de um marco zero, mas compreender e estar inserido nos fluxos produzidos pelo próprio urbano.
A metrópole, então, é este híbrido biopolítico, espaço da desmedida, território mil-folhas, terreno da proliferação. Se, para Foucault, o controle da peste reclama uma solução disciplinar, a metrópole deve ser pensada através do contágio e da proliferação. É evidente que nos deparamos, portanto, com novas e sofisticadas formas de controle (a normalização cujo modelo, para o filósofo, é o controle da varíola), mas também com extraordinárias possibilidades de disseminação de novas resistências.
IHU On-Line – Nesse sentido, como as concepções da Metrópole e da Multidão inauguram categorias sociológicas e filosóficas com potência para o surgimento de novas construções democráticas e de direitos em nossas sociedades?
Alexandre F. Mendes - É interessante notar que vários autores, de diferentes matrizes, perceberam que na virada política dos anos 1970 residia uma nova forma de abordar o urbano. Henri Lefebvre, no livro A revolução urbana, recusou ver o espaço como um meio indiferente, como aquela “soma dos lugares onde a mais valia se forma e se distribui” (Lefebvre, H. 1970), para reconhecer que, cada vez mais, o espaço era produzido por um trabalho social de caráter global. O urbano irrompe, portanto, como um conjunto de relações que penetra e constitui o espaço como um campo de interações e atividades sociais, afastando o papel central do mapa físico e da utopia do plano (Simoni de S., 2013). Na mesma década, o filósofo Antonio Negri provocou uma interessante polêmica em torno da passagem do conceito de operário-massa para o operário-social. Tratava-se de constituir o urbano como o território das lutas e da produção de uma nova subjetividade, aquela correlata às modificações da relação entre produção e espaço. Recentemente, a metrópole é percebida como uma verdadeira “fábrica social e difusa”, uma nova usina produtiva que opera, não por linhas, moldes e rígidas topologias, mas por redes, modulações e apreensões intensivas do fluxo social. Essas apreensões buscam, justamente, a apropriação de tudo que é produzido em comum através das relações e cooperações que entram em ebulição no movimentado caldeirão das metrópoles. Por isso podemos facilmente tecer uma relação entre metrópole, neoliberalismo e biopolítica. O neoliberalismo, segundo Foucault, seria justamente uma arte de governar que busca um governo da sociedade, uma política da vida, isto é, ele não se caracteriza por um governo econômico das trocas, mas da condução e constituição das próprias relações sociais, do “ambiente social” e das subjetividades a partir da forma-empresa.
É possível provocar um novo tipo de “greve” (ou seja, de luta social e por direitos), no horizonte móvel das metrópoles biopolíticas? A resposta é, sem dúvida, afirmativa e poderia ser desdobrada em inúmeros exemplos. Para mencionar um deles, é curioso perceber que, a partir da década de 1990, iniciou-se uma reflexão sobre a governança global das metrópoles, convertidas não apenas em verdadeiros players, mas em máquinas de produção de novas hierarquias. É a figura simbólica do “arranha-céu” de Saskia Sassen (o comando está no topo), mas também dos “territórios de fragmentação e dinheiro” de Milton Santos (as solidariedades verticais cujo epicentro são as empresas hegemônicas). Por outro lado, não poderíamos afirmar que, a partir da crise de 2008 e do ciclo de lutas da primavera árabe, não se formou uma cooperação, desde baixo, entre várias metrópoles insurgentes: Cairo, Madrid, Atenas, Nova York,Istambul, São Paulo, Rio de Janeiro etc., renovando e requalificando as lutas anteriores por outra globalização(Seattle, Gênova, Bangalore, Cochabamba etc.)?
Centralidade do comum
É a partir de ambos os ciclos que podemos enxergar um amplo e intenso trabalho de reflexão e construção de uma nova linguagem e composição de direitos que têm como fio condutor a centralidade do comum: direitos relacionados à proteção e ao compartilhamento autônomo de saberes, informações e linguagens; direitos voltados para o acesso e organização democrática dos serviços relacionados diretamente à vida (energia, água, tecnologia etc.), direitos relacionados ao bem viver (no vocabulário restrito do Fórum Social Mundial V: “os bens comuns da Terra e dos povos”), direito de auto-organização de territórios indígenas, direito a viver e se expressar a partir de diferentes culturas e cosmovisões, direitos relacionados a uma cidadania global etc. Além disso, recentemente, os direitos relacionados à mobilidade urbana, à preservação dos espaços comuns da metrópole (parques, áreas de uso comum etc.) e, fundamentalmente, os direitos clássicos (políticos e sociais) requalificados como direitos à produção da própria metrópole, marco que está para além da ideia municipalista e cívico-republicana de participação. É talvez nesse último ponto também que reside a dupla distância entre uma cidadania concebida a partir do comum e as formas keynesianas ou neoliberais de gestão da vida e do urbano.
"A metrópole é este híbrido biopolítico, espaço da desmedida, território mil-folhas, terreno da proliferação" |
IHU On-Line – Como podemos caracterizar as políticas públicas e as políticas do comum?
Alexandre F. Mendes - Poderíamos afirmar, de forma bem sumária, que o século XX, especialmente no período entre guerras e após a Segunda Guerra Mundial, conviveu, em grande parte, com políticas de distribuição cuja referência é o bem-estar (New Deal, keynesianismo, Plano Beveridge etc.) e o terreno de sustentação era a regulação salarial fordista (Cocco, 1999). A política social era pensada ou como contrapeso às características selvagens da acumulação capitalista, ou como resultado positivo e generoso de uma política econômica bem-sucedida. A repartição dos recursos deveria ocorrer por uma permanente regulação pública que buscava efeitos de igualdade material e socialização do consumo. No campo político, a negociação da distribuição se dava através de uma representatividade garantida por processos de homogeneização produtiva e social (partidos, sindicatos e movimentos sociais setorizados). Sabemos que as lutas em torno de uma distribuição sempre mais vantajosa, associadas às revoltas contra os processos de disciplinamento do operário-massa, produziram uma reviravolta cuja reposta são as políticas neoliberais que já tinham sido concebidas contra os primeiros movimentos de socialização e planificação da economia do início do século.
Financeirização da vida
Tendo a desigualdade como regulador geral da sociedade, o neoliberalismo propõe que cada indivíduo-empresa possa, ele próprio, se garantir contra os riscos inerentes à existência humana, através de contratos de seguro, da financeirização e da privatização dos serviços (moradia, saúde, educação etc.), da propriedade individual como instrumento de alavancagem e de um permanente esforço de aprimoramento do “capital humano” para fazer frente ao nível estrutural de desemprego. A homogeneização fordista se dilui em um sem-número de formas de contratação, realocação produtiva, arranjos organizativos móveis e flexíveis, transformação da forma-empresa e modulação do salário na direção de rendas sempre variáveis. As finanças se transformam no dispositivo de governo da nova força de trabalho através da dívida e de mensuração permanente uma produção que, como vimos, é cada vez mais socializada e correlata à própria vida. Com relação à tradição do bem-estar, a passagem para uma política do indivíduo-empresa endividado (Lazzarato, 2012) gerou dois movimentos curiosos: primeiro, a adesão de uma série de partidos sociais-democratas e socialistas ao neoliberalismo, fenômeno cuja história remete ao SPD alemão nos anos 1960 e que encontra uma série de exemplos na atualidade; segundo, uma defesa cada vez mais nostálgica, pelo tradicional campo de esquerda, de políticas de bem-estar e regulação pública que não encontram mais um terreno material de sustentação no pós-fordismo.
Os dois processos podem ser explicados por uma interessante observação de Foucault em suas aulas sobre o neoliberalismo: o socialismo nunca possuiu uma “arte de governar” própria, necessitando pegar de outras governamentalidades a sua razão e os seus princípios. Isso explicaria tanto sua rápida oscilação para as políticas neoliberais de individuação, como sua total falta de imaginação para contrapor essas políticas com uma razão governamental que não seja keynesiana, planificadora e interventiva. As políticas do comum, pelo contrário,assumem o desafio de caminhar para além do bem-estar e da dívida (do público e do privado), buscando potencializar formas de conduta e de subjetivação que deslizam dos mecanismos disciplinares-fabris e do biopoder das finanças (Marrazzi, 2011). Elas assumem o terreno biopolítico e produtivo da metrópole garantindo e proliferando espaços de cooperação, encontro de singularidades, mobilização e constituição relativamente autônoma da vida. Elas miram naquilo que Lefebvre e Bachelard definiam como uma poética do espaço: o habitar como poeta, a vida como obra de arte (Naback, 2015). Seu instrumentos não se reduzem aos mapas físicos, eles priorizam uma cartografia afetiva do território; não buscam elaborar um plano, operam por intensidades já existentes nas próprias interações sociais. Como propõe o urbanista Andy Merrifield, trata-se de estender o conceito de direito à cidade para ampla política de encontros no terreno das metrópoles globais.
IHU On-Line – Como as políticas do comum se tornam alternativas? O que há de novo nesta perspectiva?
Alexandre F. Mendes - A questão é como pensar uma política da vida que deslize, ao mesmo tempo, das tradicionais perspectivas de bem-estar e também da biopolítica neoliberal do endividamento. Poderia citar dois eixos de debates interessantes sobre o assunto: na América Latina, em torno do conceito de bem viver e, na Europa, em torno do conceito de commonfare. Em ambos os casos assume-se o terreno do alterfordismo descolonial e do chamado capitalismo cognitivo para pensar políticas de renda universal, de produção do comum a partir de novas concepções de natureza e cultura, de acesso e gestão comum dos recursos naturais/artificiais, de mobilizações produtivas que não passam pelo neoextrativismo, pelo crescimentismo ou formas de acumulação que hibridizam velho desenvolvimentismo e neoliberalismo? Como pensar os direitos e a democracia como ponto de partida e não de chegada do que convencionamos chamar “desenvolvimento”?
No campo da denominada Reforma Urbana, cuja origem remonta ao desenvolvimentismo social da década de 1960, não há mais como adiar esse debate. É preciso superar o saudosismo de uma regulação estatal distributiva e assumir inflexões que são urgentes: pensar o comum para além da função social da propriedade (da regulação pública para a auto-organização dos recursos urbanos), pensar a participação social como coprodução e ocupação do urbano, para além do ideário cívico e da delegação e representação nas instâncias participativas, pensar as lutas da metrópole e as novas plataformas de mobilização, para além da forma-movimento tradicional e, fundamentalmente, ter generosidade política e intelectual para deixar-se atravessar por essas novas dinâmicas. Percebo que há uma geração de pesquisadores/ativistas que já estão inteiramente mergulhados nesses desafios.
"Como pensar os direitos e a democracia como ponto de partida e não de chegada do que convencionamos chamar 'desenvolvimento'?" |
IHU On-Line – De que maneira a viabilização de novas plataformas de mobilização estão imbrincadas com a construção das políticas do comum?
Alexandre F. Mendes - O conceito de comum nos ajuda a pensar também nas formas atuais de fazer política e luta na metrópole. Poderia destacar dois pontos importantes das experimentações realizadas nos últimos anos, cujo ponto de condensação foram as Jornadas de Junho de 2013, que no Rio se estenderam de forma potente até, pelo menos, fevereiro de 2014. Em primeiro lugar, a liberdade de constituição das mobilizações. Até 2013, as lutas da cidade eram majoritariamente protagonizadas por movimentos sociais que já estavam consolidados na cidade e que encontram seu ponto de origem, ou na década de 1980, ou na expansão do terceiro setor dos anos seguintes. Em junho, o comentário das redes tradicionais de ativismo era que finalmente tornava-se possível “participar de protestos e encontrar pessoas totalmente novas fazendo política”.
Quem eram essas pessoas? Como estavam se organizando? Por que estavam nas ruas? As incertezas geradas pela novidade produziram um efeito paradoxal: por um lado, apareceu um número de pessoas nas ruas e nas redes que realmente intimidou o poder e o fez assumir, de forma momentânea, várias demandas clássicas do movimento social; por outro, o estranhamento gerou uma série de questionamentos sobre as formas de organização, a gramática e a estética das lutas, a autonomia da mobilização, a presença ou não de uma narrativa segura ou um “projeto claro” etc. Do sindicalismo de categorias fechadas, imaginou-se um novo sindicalismo metropolitano baseado na produção social do espaço e nos trabalhadores da cidade (assembleias populares, ocupas, a luta dos garis, dos professores, tendo como ponto de conexão o bem viver na metrópole); da lógica centralizada de convocação para ações políticas e transmissão de informações, criou-se uma rede polifônica de autoconvocação, de produção de imagens, signos e novos enunciados; da forma coordenada e hierarquizada de organizar atos e protestos, testaram-se composições transversais, múltiplas e de código aberto.
Linguagem comum
Uma linguagem comum foi criada a partir de uma circulação contundente e afetiva: “Amarildo”, como sabemos, foi um dos nomes dessa linguagem. Sem dúvida, foi o momento de uma riqueza comum e infinita. Infelizmente, depois da restauração operada em 2014, através de uma mistura de repressão, chantagem interna realizada no período eleitoral e performances repetitivas no campo do ativismo, essa experiência de liberdade desapareceu. A grande vitória (de Pirro) do governismo foi ter destruído a imaginação e a liberdade de junho colocando-o novamente sob direção das organizações tradicionais enfraquecidas que negociam permanentemente com a cúpula petista. O resultado é o abandono atual, pelas chamadas “forças de esquerda”, de qualquer possibilidade de interação com a indignação social e de uma base material para a construção de sentidos radicalmente democráticos. A chamada “onda conservadora”, que domina o Congresso e parcialmente as ruas, não pode ser vista como um raio que caiu de um céu azul, ela é o resultado imediato do aniquilamento da potência criativa e rebelde da multidão de junho.
IHU On-Line – De que maneira a criação de novos dispositivos políticos de radicalização democrática são emperrados pela lógica que fez emergir um consenso autoritário?
Alexandre F. Mendes - A irrupção de 2013 significou um forte dissenso com relação à ideia de um Brasil Maior, um país de suntuosos projetos, grandes obras, agrobusiness e megaeventos alavancados sobre um terreno de desigualdade, racismo, péssimos e caros serviços urbanos, problemas estruturais nos serviços sociais, ausência de direitos básicos etc. No mesmo movimento operou-se uma dinâmica destituinte desse tipo de concepção de “desenvolvimento” e um poder constituinte que expressava outra ideia de democracia, produção do urbano e de bem viver na cidade e na floresta. É certo que, depois do susto, houve uma restauração “por cima” realizada por uma calculada reestruturação das forças de segurança em âmbito nacional e estadual e um vigilantismo que, mesmo atabalhoado, transformou as redes em territórios extremamente vigiados.
Por exemplo, a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática - DRCI, no Rio de Janeiro, funciona como um verdadeiro DOI-CODI dos novos movimentos, instaurando inquéritos que envolvem boa parte dos coletivos e redes que se propõem a prolongar democraticamente o dissenso. Mas confesso que, ultimamente, tenho refletido sobre a restauração realizada “por baixo”, aquela que parte da premissa que a Soberania, hoje, só consegue se exercer através de um biopoder capilar e insidioso. Participei recentemente de uma banca de mestrado sobre a luta das prostitutas do prédio da Caixa em Niterói (Brandão, 2015), uma luta importante que questionava a gentrificação promovida por uma operação urbana consorciada de “revitalização”. E o que é narrado no trabalho? Que uma prostituta por ter participado de uma audiência pública sobre o caso foi sequestrada e passou a ser ameaçada de morte. Que a polícia civil, sem qualquer ordem judicial, invadiu os apartamentos do prédio espalhando o pânico entre as trabalhadoras. Que em razão do ativismo as protagonistas do movimento estão sem trabalho e sobrevivendo com o apoio de ONGs. Posso dizer, a partir da minha experiência anterior de defensor público e por acompanhar vários casos parecidos até hoje, que isso se repete diariamente no Rio de Janeiro.
Que tipo de biopoder é esse?
Que tipo de biopoder é esse que encara o dissenso democrático mais elementar como uma razão para represálias brutais? Como uma pessoa pode ser ameaçada de morte por participar de uma audiência pública? E outro ponto curioso do trabalho, o prefeito que enviou os projetos legislativos da OUC e enaltece a “revitalização” desconsiderando a luta das prostitutas é do Partido dos Trabalhadores. Não digo isso para dizer que o PT responde diretamente por todas as camadas de violência que se formou no Brasil através de séculos, mas para afirmar que ele não demonstra mais qualquer incômodo de participar dos empreendimentos especulativos sustentados por uma trama urbana que é mafiosa e truculenta. Ora, e se colocamos o fato publicamente, se afirmamos a indistinção dessa forma de fazer política com relação à forma dos partidos brasileiros tradicionais e reacionários (PMDB, PSDB, DEM etc.), olhos abismados ou debochados serão direcionados para nós, como se estivéssemos anunciando um absurdo. Nesse sentido, o novo arranjo (a)político que se formou no pós-eleição, ou seja, a ideia de que vivemos uma polarização entre uma direita fascista e uma esquerda vitimada, é mantido capilarmente por um extensa rede de relações sociais e comunicacionais que tenta recuperar grandes escalas de consenso a partir da resposta a estímulos, diria “jogos de cena”, lançados nas redes.
"O desafio é constituir novamente uma multidão de mídias que afirme o dissenso com criatividade, liberdade e recupere uma comunicação viva" |
O “homem mediatizado”, figura analisada pelo filósofo Antonio Negri num livro recente, não é apenas aquele que é silenciado pela grande mídia. A subjetividade mediatizada é aquela que perde completamente a capacidade de distinguir a informação viva (a linguagem comum das lutas) da informação morta (a linguagem vazia do poder), destituindo-se de qualquer potência de criação. O fato escandaloso não é a simples utilização dos “robôs” que multiplicam a propaganda das redes sociais. O incrível é perceber a operação no campo da produção de subjetividade, que transforma sujeitos insurgentes em simples reprodutores de um marketing cada vez mais falacioso. Nesse sentido, para além do binarismo “mídia hegemônica” versus “mídia contra-hegemônica”, o desafio é constituir novamente uma multidão de mídias que afirme o dissenso com criatividade, liberdade e recupere uma comunicação viva que rompa com o atual “governo das condutas” operado nas redes.
IHU On-Line – Partindo do diagnóstico realizado, como seria possível desbloquear as plataformas de radicalização democrática para além da imposição do consenso?
Alexandre F. Mendes - Acredito que o primeiro desafio é sentir-se livre para a experimentação de muitas formas de comunicação, encontros, momentos de trocas, reflexão e ação no espaço metropolitano. É evidente que não há fórmula a ser seguida e que o fundamental é termos uma multiplicação de iniciativas diversas que retomem a abertura de espaços de ação político-afetiva no território. Pessoalmente, tenho participado dos chamados círculos de cidadania, que surgiram com o propósito bastante modesto de promover algumas ações cidadãs no urbano, a partir de dinâmicas territoriais, social-sindicais e de reflexão sobre o momento político. É interessante notar que um dos últimos textos deHenri Lefebvre discutia o papel da cidadania no horizonte globalizado e metropolitano do capitalismo contemporâneo. Para ele, uma cidadania no mundo urbanizado passava pela inflexão do cidadão formal (o citoyen de base nacional) para o citadino: aquele que é capaz de ações políticas e de construir poéticas próprias para uma vida urbana plena. Nesse sentido, como produzir uma cidadania “a quente”, que nos permita viver a metrópole como uma experiência do comum? É uma pergunta que nos permite imaginar um repertório de possíveis respostas e tentativas, e uma boa parte delas já está sendo ensaiada no terreno vibrante e, ao mesmo tempo, perigoso, das metrópoles globais.
Por Ricardo Machado e Patrícia Fachin
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos
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