A Operação Carne Fraca expôs uma rede de corrupção envolvendo frigoríficos e fiscais agropecuários para liberar produtos sem verificação, incluindo até carnes impróprias ao consumo.
O comentário é de Leonardo Sakamoto, jornalista, publicado no seu blog, 19-03-2017.
Para além das críticas ao comportamento de grandes empresas do setor, como JBS (donas da Friboi e Seara) e BRF (donas da Perdigão e Sadia), da indignação coletiva e das piadas e memes gerados, há quem denuncie supostos interesses econômicos internacionais e políticos nacionais por trás da operação. Alertam que isso pode enfraquecer o setor de frigoríficos brasileiro e sua projeção internacional.
Entendo o incômodo deles e respeito o ponto de vista. E se houver distorções na operação, os responsáveis devem ser punidos. Mas permitam-me educadamente discordar. Pois a questão da soberania não envolve apenas o interesse de industriais e de grandes produtores rurais, mas do conjunto dos trabalhadores e da sociedade.
Não é de hoje que o setor de produção de proteína animal, por sua natureza, influência política e forma de atuação, tem causado trabalho análogo ao de escravo, superexploração e morte de operários em unidades de processamentos, violência contra populações tradicionais, crimes ambientais, roubo de terras públicas, contaminação de reservas de água, sofrimento desnecessário de animais.
Nos últimos 20 anos, estive em mais ações de resgate de pessoas escravizadas em fazendas de gado do que gostaria, vi trabalhadores que perderam partes do corpo em frigoríficos que nunca vou esquecer, presenciei a realidade de indígenas vítimas de violência por parte de produtores que fornecem a grandes grupos. Ao mesmo tempo, tenho dialogado com grandes empresas do setor, verificando que melhorias têm acontecido – mas não no ritmo necessário para garantir que dignidade não seja algo do qual apenas a próxima geração irá se beneficiar.
Tenho rodado o país para cobrir o desrespeito aos direitos fundamentais causados por um modelo de desenvolvimento que, sob a justificativa da soberania nacional, a mesma usada pela ditadura civil-militar, passou o rolo compressor por cima de famílias do campo. Que não só impossibilitou uma reforma agrária ampla, mas levou a mais concentração fundiária, financiando tudo isso com dinheiro público – basta ver o quanto o setor de frigoríficos recebeu. Modelo que foi aplicado pelo PSDB/DEM e PT/PMDB sem nenhuma cerimônia.
Por que um grupo inteligente e esclarecido de formadores de opinião, de esquerda ou direita, considera que o capital nacional explorar as comunidades no campo é muito diferente do Centro mundial explorar a Periferia? Os resultados são iguais e a história está aí para mostrar, aliás, que o capitalismo na Periferia, por ignorar regras do jogo e as reclamações da sociedade, é mais truculento que o capitalismo no Centro. É inocência pensar que empresas brasileiras atuam, necessariamente, em nome de um ''interesse nacional''.
O desenvolvimento em curso na Amazônia, no Cerrado e o no Pantanal, por exemplo, privilegia apenas uma camada pequena da população. Os lucros advindos da implantação de grandes empreendimentos agropecuários, extrativistas e industriais permanece concentrado na mão de poucos, enquanto o prejuízo social e ambiental é dividido por todos. Esse pragmatismo exacerbado, de que é necessários perder peões para se ganhar uma partida de xadrez, é muito triste. Ainda mais quando vêm de políticos que, desde a ditadura, lutaram e foram torturados pela liberdade e pela efetivação de direitos.
Quando assumiu o poder, parte do PT parece ter se esquecido que os que ficaram pelo caminho na luta pela redemocratização não morreram apenas por direitos civis e políticos – mas também pelos sociais, econômicos, culturais e ambientais, ou seja, por uma outra forma de ver e fazer o Brasil. Não era apenas para poder se expressar e votar, mas para que aqueles que eram vítimas de arbitrariedades e tinham sua terra, seu trabalho e sua dignidade roubadas em nome do desenvolvimento e da independência econômica, desse que é “um país que vai pra frente”, pudessem ter uma alternativa além do “ame-o ou deixe-o”.
Desse ponto de vista, como justificar diferenças entre o discurso de uma época em que usávamos trabalho escravo para produzir carne na ditadura para o momento em que usamos trabalho escravo para produzir carne na democracia? Xingando – em ambos os casos – os opositores de “arautos do atraso” ou acusando-os de fazer o jogo do ''inimigo externo''?
Muita coisa mudou desde que os verde-oliva deixaram o poder, naquela abertura “lenta, gradual e segura”, mas mantivemos modelos de desenvolvimento que dariam orgulho aos maiores planejadores daquele período: de que, para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa, passando por cima de qualquer um.
A verdade é que o ''inimigo externo'' também somos nós.
Tudo isso com o silêncio anuente de boa parte da sociedade. E com o silêncio produzido à força da outra parte.
Desenvolvimento a todo o custo para produzir e, assim, exportar, gerar divisas, pagar juros de empréstimos, e assim poder contrair mais empréstimos e investir na produção. Não sem antes destruir outro lugar e outra comunidade. Que pode ser indígena, mas também ribeirinha, camponesa, quilombola, caiçara ou mesmo moradores pobres das periferias das cidades. Ou vender carne ruim.
Não estamos garantindo a soberania alimentar de nosso povo ou da independência econômica de nosso país. Pelo contrário, estamos rifando o seu futuro.
Não estamos garantindo a soberania alimentar de nosso povo ou da independência econômica de nosso país. Pelo contrário, estamos rifando o seu futuro.
Quantas vezes não fomos alvos de xingamentos e difamações por pessoas e grupos que se consideram progressistas por criticar a forma pela qual o governo brasileiro, sob as administrações tucana e petista, acelerava a marcha de um projeto de produção de energia hidrelétrica que atacou os direitos de comunidades ribeirinhas e indígenas? Quantas vezes, nós jornalistas, não fomos acusados de traidores da pátria por mostrar o custo social e humano das usinas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio?
Muito tempo antes de toda essa polêmica em torno da censura imposta pelo governo Temer à ''lista suja'' do trabalho escravo, quando ela era atualizada periodicamente pelo governo federal, lideranças sindicais bateram à porta do Ministério do Trabalho para pedir que empresas flagradas com trabalho análogo ao de escravo na construção civil fossem retiradas da ''lista suja''. Afinal, segundo elas, isso puniria quem contratava trabalhadores. E sabe o melhor? As lideranças, pelo que contam pessoas que participaram dessas reuniões, nem exigiam que isso fosse feito com contrapartida por parte dessas empresas quanto à questão do trabalho escravo. Era a defesa nua e crua. Achavam que estavam fazendo o bem para os trabalhadores ao garantir que as construtoras não ficassem sem financiamento público. Na verdade, haviam se tornado lobistas delas.
Não sou maluco de defender o fechamento de setores importantes da economia. Sei que essa é a estrutura que temos e vamos ter que trabalhar com ela, quer gostemos ou não, para evitar mais desemprego e problemas sociais.
Mas já passou da hora de nosso capitalismo seguir um mínimo de regras para a compra e venda da força de trabalho, para o respeito ao meio ambiente, para a garantia de direitos a comunidades tradicionais e, claro, na qualidade do produto que ele entrega ao consumidor final.
E passou da hora de colocar setores contra a parede. Foi através da denúncia e da pressão, interna e externa, que o Brasil começou a desenvolver um sistema de combate à escravidão que, até agora, foi um exemplo de acordo com as Nações Unidas. A pressão externa, através da solidariedade dos trabalhadores de outros países, foi fundamental para a redemocratização no Brasil. Então, essa seletividade no tipo de pressão não é aplicável. Não estamos falando aqui de desvios no comportamento do setor, mas de situações encontradas sistematicamente ao longo de suas cadeias.
Momentos como este não são para contemporização, mas para colocar sobre a mesa demandas da sociedade. Que não podem ser apenas a certeza de que ninguém vá comprar comida imprópria para consumo, mas também que o seu próprio consumo não vá financiar crimes e irregularidades detectados na cadeia produtiva da carne, como já citado aqui. O bife de carne à sua frente não é apenas o seu almoço. Nele, reside uma das maiores contradições de nosso tempo: como crescer de forma sustentável e não pisar nos mais pobres no meio do caminho?
Entendo que muita gente boa veja os números de tudo isso e esteja preocupada com a judicialização da política e com o futuro do país. Mas as leis, a política e o país só fazem sentido se tiverem como fim garantir um mínimo de dignidade à vida. E, por enquanto, estamos falhando retumbantemente nessa missão.
Esse debate envolve muita gente que quer um futuro melhor para o país. Mas o resultado, ao meu ver, mostra que a esquerda segue sem um projeto claro de país. Porque, quando adota ações, sistematicamente pega emprestado o comportamento e o discurso de quem esteve desde sempre no poder.
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos
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