População e mudanças climáticas, artigo de Natalia Kanem
Em artigo, a diretora-executiva em exercício do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), Natalia Kanem, menciona conexões equivocadas frequentemente feitas entre crescimento populacional e mudança climática.
Segundo ela, apesar de o crescimento populacional fazer com que mais pessoas consumam mais e, portanto, emitam mais gases do efeito estufa, essas emissões não estão distribuídas de forma igualitária entre todas as populações do mundo.
Por Natalia Kanem*
Compreender a relação entre população e mudança climática é crucial para o desenvolvimento de políticas que protejam os direitos das pessoas, particularmente a garantia de escolhas individuais reprodutivas ao mesmo tempo em que se preserva o planeta. No entanto, as consequências sociais, econômicas e ambientais resultantes do crescimento populacional têm sido tema de opiniões fortes, inclusive da mídia — e têm sido fonte de muita controvérsia ao longo dos anos.
Muitos receios a respeito do crescimento populacional não surgiram baseados em evidências, assim como a sua possível relação com as mudanças climáticas. O Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo em 1994, mudou o discurso que prevalecia sobre números e populações. No lugar, colocou em foco a conversa sobre ações para manter princípios universais dos direitos humanos e liberdade de escolha, particularmente para mulheres e meninas a respeito da autonomia sobre os próprios corpos.
Concepções erradas
Quando pensamos sobre as emissões de gases do efeito estufa (GEEs), é muito comum colocar a culpa sobre o crescimento populacional e apontá-lo como o principal ator das mudanças climáticas, ou ignorar o crescimento da população por completo, já que, historicamente, este é um tópico altamente politizado.
As abordagens contraditórias são conduzidas pelas conexões equivocadas entre população e mudança climática. Este equívoco é o de que mais pessoas correspondem automaticamente a mais emissões. De uma perspectiva a partir da mudança climática ou dos recursos naturais, há uma certa lógica intuitiva. Mais pessoas estão propensas a se alimentar e a beber mais, a dirigir mais ou consumir mais energia — todas situações que, em nosso modelo atual, aumentam as emissões de GEEs. Mas essas emissões não estão distribuídas de forma igualitária a todas as populações do mundo, assim como o consumo de alimentos, de carros ou o uso de ar condicionado.
A figura 1 mostra as emissões de GEEs per capita comparada às taxas de fecundidade — o número de filhos que uma mulher pode ter ao longo da sua vida reprodutiva — fator-chave para compreender o crescimento populacional. Os altos índices de emissão de gases per capita que acontecem nos países mais ricos estão correlacionados às baixas taxas de fecundidade apresentada nesses lugares. Os países mais pobres geram as menores taxas de emissões per capita — muitos próximos a zero. Apesar de não ser intuitivo para algumas pessoas, os países mais pobres que têm as taxas mais altas de fecundidade e os índices mais acelerados de crescimento populacional também são os que menos contribuem para o fenômeno das emissões de GEEs.
Atualmente, não é possível estabelecer uma relação linear entre o aumento populacional e o das emissões de GEEs. Ao invés disso, podemos relacionar as mudanças climáticas com o poder aquisitivo dos países. Atualmente, apenas 28% da população mundial ganha mais de 10 dólares por dia, nível de renda onde o consumo começa a contribuir significativamente para a emissão de GEEs. A realidade alarmante é que não foi preciso muitos emissores para pôr o planeta em perigo.
A alegação de que o crescimento populacional, sobretudo em países mais pobres, é um dos principais responsáveis pelas mudanças climáticas deve ser tratado com ceticismo. E deve ser notado que as pessoas que vivem nos países mais pobres, que contribuíram menos com as emissões, provavelmente serão as que irão sentir os impactos de maneira mais intensa.
Fazendo melhores escolhas
O mundo está focado em ajudar os países mais pobres a erradicar a pobreza, inclusive com a adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que possuem a ambição de acabar com a pobreza extrema até 2030. Baseado no nosso modelo atual de crescimento econômico, a redução da pobreza causaria um aumento das emissões de gases. E então, de fato, as populações dos países mais pobres serão cada vez mais importantes para as emissões e as mudanças climáticas. Assim, no longo prazo, o aumento populacional é certamente um fator importante para as mudanças climáticas.
Experiência global também nos mostra que, com melhores escolhas, podemos estruturar nossas vidas de forma a melhorar nosso bem-estar ao mesmo tempo que limitamos as emissões. Há reduções drásticas de emissões em alguns países europeus e (por um período) nos Estados Unidos, e um declínio na intensidade (ou do custo do crescimento das emissões de GEEs) na China e em outras economias emergentes.
A Figura 1 nos mostra variações consideráveis de emissão per capita entre países com alta e média renda. Isso sugere que, mesmo agora, nós não estamos presos a um cenário em que o crescimento da riqueza necessariamente implica em altas emissões.
Razões para otimismo
Conforme a tecnologia se aprimora, expande-se o desenvolvimento menos dependente de carbono, o que permite aos países e às populações a oportunidade de se desenvolverem enquanto previnem as mudanças climáticas.
Isso é absolutamente necessário. Os dados sobre população e emissões mostram que o conter o crescimento da população, mesmo que rapidamente, não é um atalho para evitar as mudanças climáticas. De fato, isso terá pouco ou nenhum efeito se não pudermos fazer a transição para longe dos combustíveis fósseis e outros causadores das mudanças climáticas e em busca de modelos de vida renováveis e sustentáveis.
É preciso que sejamos mais cautelosos sobre a relação entre populações e as mudanças climáticas para fazermos as melhores escolhas de políticas e evitarmos armadilhas passado. O Programa de Ação do CIPD avançou para proteger mulheres e homens dos abusos dos direitos reprodutivos em conseqüência de preocupações generalizadas sobre o crescimento populacional nas décadas de 1970 e 1980.
No Programa, há um consenso entre os governos do mundo de que a promoção dos direitos e do acesso à saúde reprodutiva e o empoderamento das mulheres oferecem meios mais eficientes de avançar com o desenvolvimento do que apenas manter o foco no controle da população. Com saúde, educação e oportunidades melhores, mais pessoas escolhem por famílias menores — e as taxas de crescimento da população reduzem.
A revisão dos vinte anos do Programa, completados em 2014, corroboram a verdade. Investimentos que promovem a realização do acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e aos direitos reprodutivos — incluindo a educação de mulheres e meninas e a expansão na educação sobre saúde sexual e reprodutiva, informação, serviços de saúde, entre outros — resultam em pessoas optando por famílias menores, e a fecundidade continua reduzindo.
A Agenda 2030 para Desenvolvimento Sustentável reconhece a importância dessa abordagem com a população, incluindo o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e aos direitos reprodutivos. Chegou o tempo de redobrar nossos esforços para garantir essas conquistas.
Com a implementação do Acordo de Paris, que representa uma conscientização global sobre os desafios que ainda precisam ser superados sobre as mudanças climáticas, nós temos agora muitos motivos para manter o otimismo. Podemos simultaneamente alcançar um mundo com índices menores de emissões enquanto expandimos os direitos, as escolhas e o bem-estar de mulheres e meninas.
Vamos aos fatos
A taxa global do crescimento da população está desacelerando rapidamente — de 2,05% ao ano no período de 1965-70 para 1,52% em 2015-20. Quase metade do crescimento populacional projetado de agora para até 2100 não acontecerá por altos índices de fecundidade. Ele será alimentado pelo “momentum populacional”, ou por grandes números de mulheres em idade reprodutiva (de alta fecundidade no passado) tendo filhos e filhas.
Apenas 38 países contam com taxas de fecundidade totais maiores do que quatro crianças por mulheres, o que leva a taxas mais rápidas de crescimento populacional. Juntos, esses países constituem apenas 13% da população mundial. São muitas as pessoas que querem famílias menores, mas lutam para alcançá-las. Cerca de 214 milhões das mulheres de regiões em desenvolvimento que não querem ter filhos não têm acesso a métodos modernos de contracepção.
*Diretora-executiva em exercício do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA)
Da ONU Brasil, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 25/09/2017
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