Por Ewerton Martins Ribeiro, UFMG
O grande volume de notícias falsas que trafegam atualmente não deve ser creditado apenas à falta de informação ou à ignorância das pessoas. Em alguns casos, deter algum nível de informação pode ser fator determinante para cristalizar os próprios preconceitos. Essa análise foi feita pelo sociólogo Yurij Castelfranchi na palestra Ciências, crenças e boatos: como lidar com a controvérsia e sobreviver às fake news, proferida na quinta-feira, dia 8 de fevereiro, no último dia do Festival de Verão da UFMG.
O professor do Departamento de Sociologia da Fafich UFMG lembrou que esse fenômeno está associado ao chamado “efeito dunning-kruger”, no qual pessoas com menos conhecimento acreditam saber mais do que outras mais bem preparadas. “Essas são as pessoas mais perigosas. Elas se limitam a ler cinco livros sobre certo assunto e, por não terem alcançado nessa leitura a noção de tudo que ainda não sabem, acabam achando que já sabem tudo”, argumentou.
No extremo oposto, disse Castelfranchi, está a pessoa que sofre da “síndrome do impostor”, pois investe de verdade no conhecimento .“Quanto mais a competência da pessoa aumenta em determinado assunto, mais ela toma conhecimento de tudo aquilo que não sabe, de tudo aquilo que ainda não leu”, disse ele, aludindo à famosa máxima socrática.
Yurij Castelfranchi falou logo após o ativista Gael Benitez e a médica Maria da Consolação Vieira Moreira, que trataram, respectivamente em suas palestras, da experiência transmasculina na sociedade contemporânea e da realidade brasileira de transplante de órgãos. O sociólogo recorreu, inclusive, aos dois temas tratados anteriormente para enfatizar como é grave o processo de formação da opinião das pessoas.
“A falta de informação não é exclusiva daqueles que poderíamos chamar de público geral. Acabamos de ouvir um relato sobre médicos com falta de informação médica”, disse ele, repercutindo um caso de preconceito narrado por Benitez, além da observação feita pelo próprio ativista de que quase não há profissionais de medicina preparados para compreender e atender às demandas de saúde específicas das pessoas trans.
Castelfranchi acrescentou que os cientistas também contribuem para veicular desinformação e preconceito. “Na verdade, a modulação da opinião pública ocorre justamente a partir da manipulação de dados científicos”, disse. “No caso das controvérsias mais radicais, o problema nunca é apenas falta de informação, mas antes de tudo um problema de poder”, acrescentou.
Para o pesquisador, o substrato das chamadas “controvérsias sociotécnicas” são os valores, as escolhas e os preconceitos das pessoas. “Elas fingem se embasar em fundamentos científicos, em dados técnicos, para a sua tomada de posição. Quem nega a necessidade de assinar acordos internacionais para frear a mudança climática, como os EUA, tenta embasar essa alegação – que é política – com dados técnicos”, exemplifica. O mesmo ocorre quando se associa a vacinação infantil ao autismo, boato que vem sendo amplificado Brasil e em diversas partes do mundo, como a Itália, país de origem do pesquisador.
“Quase todas as guerras modernas começaram a partir de notícias falsas. No caso dos EUA, praticamente nenhuma guerra que eles realizaram deixou de se valer de uma notícia falsa como ponto de partida”, afirmou Castelfranchi, lembrando as supostas armas de destruição em massa do Iraque, nunca encontradas. “A essa notícia falsa devemos a morte de 400 mil crianças mortas”, asseverou.
Das falsas objetividades
Usando como gancho o próprio número de 400 mil crianças mortas no Iraque, o professor explicou como o uso de dados pretensamente objetivos carrega uma intenção política. “Nem todas morreram em razão dos bombardeios. O cálculo que embasa minha afirmação considera o fato de que, logo depois dos bombardeios, o Iraque foi submetido a um embargo que impediu a chegada até de remédios ao país. Missões humanitárias, como a Cruz Vermelha, não puderam levar antibióticos. Então calculamos 400 mil crianças mortas considerando as epidemias que, em razão da guerra não puderam ser curadas”, detalha. “Agora, por que fazemos a conta dessa forma? Porque é meu interesse, é minha escolha denunciar o absurdo daquela guerra. Para mim, é interessante dizer que as pessoas que morreram foram muitas e que morreram injustamente”, explicou o professor, usando o seu próprio discurso para demonstrar como ocorre o processo de manipulação da informação.
“Muitas vezes, quando as pessoas citam números em seus argumentos, elas estão fingindo ser objetivas, quando na verdade estão escondendo debaixo do tapete suas escolhas subjetivas. Nesse sentido, vocês não podem pegar os números que ofereço como simples fatos. São fatos calculados, definidos, recortados a partir de uma escolha. Citar números, dados pretensamente objetivos, é fazer uma escolha política”, alertou.
Para o sociólogo, que também é mestre em comunicação – área em que atuou por mais de dez anos –, o problema em torno da informação na contemporaneidade se torna mais grave em razão dos ambientes em que as discussões ocorrem. “Elas se dão em ambientes de mediatização extremamente forte e precisam obedecer e se submeter, antes de tudo, às regras dessas mídias”, afirmou.
Das falsas controvérsias
Para Yurij Castelfranchi, não é exatamente a falta de informação que faz que ainda hoje algumas pessoas neguem, por exemplo, que tenha havido o genocídio de Auschwitz (rede de campos de concentração do nazismo montada na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial), ou que insistam em ser racistas, homofóbicas, transfóbicas: “A [falta de] informação [correta] é parte da questão, mas outra parte fundamental é mesmo a forma como as pessoas decidem construir sua opinião”, disse. “Mudança climática, ideologia de gênero, escola sem partido; se Lula deveria ou não ser preso; se Bolsonaro deveria ou não ser cassado: todas essas controvérsias são caracterizadas por um embate político de valores: as pessoas brigam porque acreditam em ideias de justiça e embasam – e, em razão disso, acabam sendo despolitizadas – suas opiniões em aspectos técnicos e científicos”.
Apesar da energia gasta com as controvérsias contemporâneas, Castelfranchi sustenta que a maioria delas são falsas. “O truque do trabalho de desinformação é gerar falsas polêmicas”, afirmou. Nesse sentido, o professor explicou que o trabalho feito com as fake news atua menos no sentido de contra-argumentar uma ideia inequívoca, como o Holocausto, e mais para desviar o foco e criar múltiplas e contraditórias hipóteses, que poluem a esfera do debate e acabam por neutralizar a capacidade dos fatos verdadeiros de alcançar as pessoas.
O sociólogo listou ainda uma série de outros fatores que colaboram para que as pessoas sigam consumindo e reproduzindo fake news – entre eles, um relacionado à ideia de “dissonância cognitiva”, segundo a qual somos propensos a acreditar no que agrada às nossas ideias pré-estabelecidas e a não acreditar naquilo que as confronta, independentemente do que os fatos digam a respeito.
Em razão disso, o professor acredita que o trabalho das agências de checagem de informação, que têm se multiplicado mundo afora, é insuficiente para impedir o agravamento do fenômeno das fake news e da manipulação da informação e do saber técnico e científico. “Desmontar mitos não funciona. O que está na base desse processo de crença nas mentiras não é apenas a ignorância. Acreditamos no que escolhemos acreditar. Quando se constrói mentiras que agradam a um grupo, mesmo que sejam desmascaradas, elas seguem funcionando naquele grupo e usadas e reproduzidas por ele. Não raro, aquele que as desmascarou recebe de volta simplesmente o ódio”, lamentou.
Da UFMG, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 15/02/2018
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