A contaminação do meio ambiente por agrotóxicos e a mortandade das abelhas no RS
A contaminação do meio ambiente e a mortandade das abelhas no RS. Entrevista especial com José Renato de Oliveira Barcelos
IHU
“Há uma disputa de narrativas, há várias opiniões no sentido contrário, ou seja, o problema está colocado e precisa ser resolvido de alguma maneira”, resume José Renato de Oliveira Barcelos, especialista em direito ambiental, ao comentar os discursos de apicultores e agricultores que divergem sobre as implicações do uso de agrotóxico nas lavouras gaúchas.
“A questão é que os sojicultores e os agricultores que se dedicam à lavoura onde o consumo de agrotóxico é mais elevado pensam que o uso do agrotóxico é necessário para viabilizar a produção e, portanto, é um produto indispensável para a produção agrícola. Mas os apicultores sustentam que as abelhas estão morrendo e afirmam que o veneno é um dos grandes responsáveis por isso”, explica. Apesar da disputa, frisa, no estado do Rio Grande do Sul, onde foram registrados novos casos de mortandade de abelhas em janeiro deste ano, “as colmeias mais atingidas são aquelas próximas às lavouras de soja”.
De acordo com Barcelos, nos últimos anos os pesquisadores têm reunido mais evidências de que as abelhas estão sendo contaminadas pelos agrotóxicos e que a mortandade registrada nos últimos anos está relacionada ao desequilíbrio e à contaminação do meio ambiente. “Uma pesquisa produzida pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido – Ufersa, lançada no dia 7 de janeiro deste ano, trata do desaparecimento e morte das abelhas no Brasil. Esse estudo aponta, de uma forma segura do ponto de vista científico, que a mortandade das abelhas está sendo causada pelos agrotóxicos, e que o fipronil é a substância que tem sido a causa dessa mortandade”, informa.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Barcelos ressalta também que o Brasil vive um “impasse no sentido de tentar frear o uso de agrotóxicos nas commodities que usam esses produtos” e que o “tema é muito mais amplo e profundo do que essa alarmante mortandade registrada recentemente”. A mortandade registrada no estado, diz, “é a consequência, mas nós temos de nos preocupar com a causa, que tem que ser analisada e contornada”. A solução desse problema, pondera, “está muito além de uma simples crítica a um modelo de agricultura que se pratica. (…) No pacote de sustentação da matriz industrial que dá viabilidade a esse modelo há uma relação de dependência dos agrotóxicos: não há como ter convivência entre um biocida, produto que foi criado para eliminar a vida, e a preservação da vida”.
José Renato de Oliveira Barcelos é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rios dos Sinos – UNISINOS, especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É membro fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD-Núcleo/RS, da Associação Brasileira de Agroecologia – ABA, do Conselho Superior da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – AGAPAN e do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos – FGCIA.
Confira a entrevista.
Morte das abelhas no RS é registrada pelos apicultores
Foto: Arquivo Pessoal
Foto: Arquivo Pessoal
IHU On-Line – Nos últimos anos, pesquisadores têm alertado para o desaparecimento das abelhas no RS. No entanto, neste ano, noticiou-se a mortandade desses animais em algumas regiões do estado, como em Alegrete, na fronteira oeste, e em São José das Missões, na região norte. O que explica esses dois fenômenos? Há uma correlação entre eles?
José Renato de Oliveira Barcelos – Acredito que essa correlação existe e está cada vez mais evidente. Há muitos anos nos EUA começou um fenômeno chamado “colapso das colmeias”: as colmeias desapareciam e ninguém sabia explicar por que isso acontecia. Embora várias teses tenham surgido para explicar o fenômeno, não se especificou ainda claramente o que ocasionava esse colapso e com qual periodicidade ele acontecia.
No Brasil ainda não se verificou esse fenômeno de colapso das colmeias, mas se verifica uma mortandade de abelhas acima do normal. A morte de abelhas pode ocorrer por vários fatores: por causa de parasitas, de doenças, de fatores ambientais e, inclusive, por conta da contaminação por agrotóxicos.
O que está acontecendo no Brasil e no mundo é algo que aponta na direção de uma mortandade extraordinária e fora de qualquer tipo de parâmetro natural. Ou seja, há um fator que explica esse fenômeno e nós sustentamos que é o uso dos agrotóxicos que está causando essa mortandade. Não se pode deixar de considerar que há uma correlação entre esses fenômenos no estado inteiro.
IHU On-Line – Notícias da imprensa informam que colmeias em áreas próximas ao plantio de soja estão desaparecendo. O senhor tem informações sobre se é mais frequente o desaparecimento ou a mortandade de abelhas em regiões onde há lavouras de monocultivos?
José Renato de Oliveira Barcelos – O que chegou ao nosso conhecimento é que as colmeias mais atingidas são aquelas próximas às lavouras de soja. No entanto acreditamos que pela difusão dos agrotóxicos e pelo modelo de agricultura que se pratica hoje, aliado ao agronegócio, onde há agrotóxico há mortandade.
IHU On-Line – Em quais regiões do estado havia mais presença de abelhas anos atrás e hoje se constata uma diminuição da presença desses animais?
José Renato de Oliveira Barcelos – Há um relatório da Câmara Setorial do RS que identificou as cinco regiões mais afetadas do estado. É interessante acompanhar essas ocorrências com o perfil geográfico da plantação de soja, o que é mais uma evidência de que esses fatores estão ligados.
Nos últimos meses, nove municípios registraram aumento da mortandade de abelhas, entre eles, Alegrete, Bagé, Caçapava do Sul, Frederico Westphalen, Santana do Livramento, Santiago, São José das Missões e Ijuí. Somente no município de Santiago foram perdidas 200 colmeias e alguns apicultores falam na perda de mil colmeias, com um prejuízo de quase um milhão de reais.
Vídeo gravado por produtor de São José das Missões mostra a morte das abelhas:
IHU On-Line – Como tem se dado a discussão entre aqueles que defendem o uso de agrotóxicos e aqueles que denunciam que a mortandade das abelhas no estado tem ocorrido por conta do uso dessas substâncias?
José Renato de Oliveira Barcelos – O problema é tão grave que ainda não há um consenso na sociedade sobre essa questão que, na nossa avaliação, pode ser um prenúncio de uma catástrofe ambiental. A questão é que os sojicultores e os agricultores que se dedicam à lavoura onde o consumo de agrotóxico é mais elevado pensam que o uso do agrotóxico é necessário para viabilizar a produção e, portanto, é um produto indispensável para a produção agrícola. Mas os apicultores sustentam que as abelhas estão morrendo e afirmam que o veneno é um dos grandes responsáveis por isso. Há uma disputa de narrativas, há várias opiniões no sentido contrário, ou seja, o problema está colocado e precisa ser resolvido de alguma maneira.
Do ponto de vista científico, há um consenso de que as abelhas são indicadores de qualidade ambiental e esse é um ponto importantíssimo. A mortandade das abelhas é um problema complexo e está diretamente relacionada ao desequilíbrio e à contaminação do meio ambiente. Portanto, a discussão tem que partir de um pressuposto importante de que a abelha é um inseto essencial do ponto de vista da polinização e dos serviços ambientais que ela presta, como o de regulador da biodiversidade. Além disso, há que se considerar que as abelhas são fundamentais na produção da cadeia do mel, que é um produto importante para a economia do RS. Mas há indicativos de que o mel já está contaminado.
O tema é muito mais amplo e profundo do que essa alarmante mortandade registrada recentemente. A mortandade é a consequência, mas nós temos de nos preocupar com a causa, que tem que ser analisada e contornada. A solução desse problema está muito além de uma simples crítica a um modelo de agricultura que se pratica. Nós entendemos que esse modelo de agricultura que usa o agronegócio está destruindo o planeta. No pacote de sustentação da matriz industrial que dá viabilidade a esse modelo há uma relação de dependência dos agrotóxicos: não há como ter convivência entre um biocida, produto que foi criado para eliminar a vida, e a preservação da vida.
Praticamente todos aqueles que são favoráveis aos agrotóxicos dizem que o problema não é o produto em si, mas sim a sua aplicação, a falta de cuidado ao colocar o produto, praticamente transferindo a responsabilidade quase que unicamente para o agricultor. Mas sabemos que não é esse o problema; o problema é exatamente que esses sistemas são incompatíveis, e não há compatibilidade possível entre insetos de controle biológico e inseticidas. Então, precisamos nos dar conta de que o que está em discussão é o modelo de agricultura que se pratica.
Por isso acreditamos que a agroecologia é não somente a alternativa para esse problema, como a salvação do planeta do ponto de vista ambiental. A agroecologia propõe um sistema diferente do da economia em grande escala, um modelo no qual é possível questionar o modo de produção de alimentos em larga escala e discutir a questão de fundo, que é a salvação do planeta.
IHU On-Line – No modelo agroecológico é possível dispensar o uso de agrotóxicos, ou seria preciso usar algum tipo de controle biológico?
José Renato de Oliveira Barcelos – Não sou a pessoa mais adequada para falar sobre o tema, porque não sou especialista na área. Mas o conhecimento que tenho me permite dizer algumas coisas. Primeiro, temos que compreender que estamos numa fase de transição e que o uso desses produtos está inviabilizando o nosso planeta. Uma pesquisa produzida pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido – Ufersa, lançada no dia 7 de janeiro deste ano, trata do desaparecimento e morte de abelhas no Brasil. Esse estudo aponta, de uma forma segura do ponto de vista científico, que a mortandade das abelhas está sendo causada pelos agrotóxicos, e que o fipronil é a substância que tem sido a causa dessa mortandade. Com isso quero dizer que existem elementos científicos e pesquisas apontando que o veneno é um dos elementos centrais na problemática da mortandade das abelhas e é para ele que temos que nos voltar.
A tendência, com as mudanças legislativas aprovadas recentemente, inclusive com o pacote do veneno que vai entrar em vigor, tende a agravar ainda mais essa situação, porque fragilizará o Ibama, que é um órgão federal importante na fiscalização, no controle e na avaliação de riscos dos agrotóxicos. Esse trabalho que é feito pelo Ibama possivelmente será realizado pelo Ministério da Agricultura, que não está preparado para fazer esse tipo de análise. Assim, vai aumentar o problema da contaminação, e aumentando a contaminação, aumenta-se também a mortandade das abelhas.
Precisamos, então, de um período de transição para uma nova realidade na qual os processos ecológicos essenciais sejam respeitados, que é o que a Constituição assegura. A responsabilidade disso é do Estado e da sociedade, mas para isso precisamos avançar, dar um passo à frente na concepção de que a responsabilidade pela configuração do planeta é nossa. Temos que parar de tratar a natureza como um objeto e passar a concebê-la como algo que gera ativos. Isso também passa pela discussão sobre a importância das sementes como unidades geradoras de vida, de comunidades biológicas. É evidente que precisamos de alternativas econômicas para suportar o desenvolvimento, mas é perfeitamente possível produzir alimentos sem utilizar agrotóxicos, e isso já está comprovado. Um exemplo é o Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, que é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.
É evidente que ao afirmar que é possível produzir sem nenhuma gota de veneno, estou indo de encontro a uma série de interesses que questionam esse tipo de modelo. Há pouco tempo houve uma suspensão do uso do glifosato através de uma liminar da Vara Federal de Brasília, que causou um problema no país inteiro. Os produtores de soja se organizaram, a liminar foi derrubada e o uso do glifosato passou a ser autorizado para comercialização. Mas diante da denúncia de contaminação, de problemas de câncer e endócrinos e do problema com as abelhas, é preciso adotar o princípio da precaução como um fator importante para examinar, a partir dele, as relações desse tipo de produto com a natureza. A sociedade e as organizações ambientalistas estão se organizando e os pesquisadores também estão comprometidos com isso, porque queremos chegar à raiz do problema.
IHU On-Line – Juridicamente, que disputas têm ocorrido no Brasil por causa do uso de agrotóxicos?
José Renato de Oliveira Barcelos – A lei federal de agrotóxicos nasceu no RS, no movimento ambientalista gaúcho dos anos 1970, junto com o Lutzenberger. Houve uma discussão importante à época, que construiu uma regulação para conter os impactos da ação dos agrotóxicos. Hoje temos vários fóruns nacionais contra o uso de agrotóxicos e uma campanha permanente para conscientizar a sociedade sobre o uso de agrotóxicos, porque desde 2008 o Brasil é o país que mais consome esses produtos no mundo: são consumidos mais de nove litros de veneno por habitante/ano. Alguns pesquisadores sustentam que se trata quase de uma nova onda colonial, porque esses produtos são produzidos por empresas europeias e americanas e aplicados no terceiro mundo, enquanto nos países de origem esses produtos são proibidos.
Vivemos um impasse no país hoje no sentido de tentar frear o uso de agrotóxicos nas commodities que usam esses produtos. Mas o uso de agrotóxico está ligado ao uso de sementes transgênicas que, por sua vez, está ligado ao modelo de agricultura que mencionei antes, que é um modelo excludente e que termina com a biodiversidade, mas que é colocado hoje como o modelo hegemônico, embora não seja sustentável. Diante desse problema, o pacote do veneno está sendo objeto de alteração no Congresso Nacional, que propõe desregulações e flexibilização da lei ambiental e federal dos agrotóxicos. Entre as propostas de mudanças, destaca-se a de substituir o termo agrotóxico por pesticida.
Os grandes conglomerados que produzem e comercializam agrotóxicos estão enfrentando bastante resistência em relação aos seus produtos, e faz parte da estratégia política deles flexibilizar as legislações na América Latina, na África, na Índia, para que se introduzam nesses países produtos que são banidos nos países de origem.
Ocorreu recentemente um encontro em Goiás, no qual especialistas discutiram os problemas ambientais na bacia hidrográfica do Rio da Prata, na Argentina, que está recebendo toda a poluição da agroquímica que vem do Norte do Brasil, do Peru e da Venezuela.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
José Renato de Oliveira Barcelos – Há uns dois anos um grupo de pesquisadores independentes do qual eu faço parte começou a discutir o problema da contaminação. E, como todos nós somos ligados a movimentos sociais e a movimentos da sociedade civil, criamos uma articulação chamada “Articulação para a Preservação da Integridade dos Seres e da Biodiversidade”, que se propõe a abordar o problema da contaminação nesse viés que mencionei anteriormente, para chegar à raiz do problema e enfrentar aquelas questões mais espinhosas, sobretudo para dar ao apicultor informações mais seguras e apresentar alternativas para o enfrentamento desse problema.
No mês de março vamos lançar essa articulação para poder pensar de uma forma crítica e estratégica. Uma das medidas que estamos preparando é uma integração judicial, ou seja, queremos judicializar esse problema e chamar o Ministério Público para que ele também ajude nessas questões ambientais.
(EcoDebate, 11/02/2019) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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