País não sabe como e quanto suas jazidas de ouro produzem porque legislação desconsidera existência de extração em larga escala
O Brasil estabelece procedimentos simplificados para a emissão de licenças para garimpos, tendo em vista que a atividade garimpeira é historicamente caracterizada por ser um trabalho de baixo impacto ambiental realizado de forma artesanal por pessoas pobres. No entanto, as leis não definem quem pode ter acesso a essa permissão simplificada.
Essa falta de clareza da legislação vem possibilitando que projetos de mineração de escala empresarial deixem de apresentar pesquisa prévia sobre os projetos, impedindo o país de saber como e quanto do seu ouro está sendo extraído e quais os resultados financeiros e os impactos socioambientais da atividade.
Além disso, o descontrole do Brasil sobre o quanto suas jazidas de ouro produzem é mais uma brecha para fraudes em uma cadeia econômica rica em oportunidades para o crime. Como o país não sabe o potencial produtivo de uma jazida explorada sem pesquisa prévia, os criminosos podem registrar essa lavra legalizada como sendo a origem do ouro extraído ilegalmente em qualquer outra área.
Um exemplo: no maior polo da mineração ilegal no Brasil, a bacia do Tapajós, no sudoeste do Pará, investigação do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF) detectou que os principais fornecedores ilegais de ouro a um dos postos de compra da Ourominas não tinham nada de garimpeiros: eram empresários capitalizados, detentores de diversas permissões simplificadas, as Permissões de Lavra Garimpeiras (PLGs), em diversos municípios. Só um desses empresários tinha 66 PLGs.
Entre 2015 e 2018, o posto fraudou a compra de 610 quilos do minério, causando um prejuízo de R$ 70 milhões à União. E esse prejuízo pode ser muito maior, tendo em vista que o valor foi calculado com base nas indicações das notas fiscais, que são preenchidas apenas pelos criminosos, com indicações bem inferiores ao valor de mercado.
Pedidos do MPF à Justiça – O MPF pediu à Justiça Federal em Santarém (PA) que seja declarada a omissão ilegal e inconstitucional da Agência Nacional de Mineração (ANM) em adotar ato administrativo normativo que defina a atividade garimpeira de modo claro e objetivo, e que a agência seja obrigada a publicar regulamentação com critérios técnicos sobre quais atividades podem ser autorizadas por meio de PLGs e, portanto, se enquadram no conceito constitucional e legal de atividade garimpeira.
Essa regulamentação, segundo o pedido do MPF, deve estar em conformidade com a Constituição, no que se refere à pobreza do garimpeiro e à utilização de instrumentos rudimentares, aparelhos manuais ou máquinas simples e portáveis. Deve excluir, do enquadramento legal de garimpo, atividades empresariais e/ou capitalizadas, que utilizem maquinários de alto valor, tendo em vista a incompatibilidade desse perfil com os conceitos constitucional e legal de garimpo. E também deve, segundo o pedido do MPF, proibir que uma mesma pessoa ou cooperativa seja detentora de mais de uma PLG.
Também foi pedido pelo MPF que, enquanto esse ato normativo não for adotado, a ANM seja impedida de emitir novas PLGs e que, quando a nova regulamentação estiver valendo, não seja mais permitida a expedição de PLGs em desacordo com ela, e ainda, que sejam feitas a revisão e a fiscalização de todas as PLGs já emitidas, e que sejam canceladas as permissões incompatíveis com as novas regras.
Detalhamentos – Além das provas obtidas durante três anos de investigações, o MPF cita nas ações, pela primeira vez, trechos de um manual de atuação da instituição para o combate à mineração ilegal. O documento foi elaborado pela força-tarefa (FT) Amazônia do MPF, integrada por procuradores da República de todos os estados da região, que fizeram um diagnóstico aprofundado sobre os problemas, indicando soluções para a questão.
O estudo da FT detalha as consequências das incoerências legislativas atuais em torno do conceito de garimpagem e as mudanças necessárias na legislação. Segundo o documento, as regras atuais resultam “na desproteção da figura do garimpeiro tradicional em prol de empresários capitalizados do garimpo e, por outro lado, no afrouxamento de normas protetivas ao meio ambiente e reguladoras do mercado e do patrimônio nacional em favor de empreendimentos não caracterizados por sua simplicidade e rudimentaridade”.
Nesse contexto, a força-tarefa do MPF entende não ser possível qualificar como garimpagem atividades que pressuponham a utilização de maquinário de alto valor agregado, com utilização em larga escala de mão de obra assalariada, e que não se caracterizem pelo manejo de tecnologias simplificadas e portáteis.
“Ainda, sugere-se vedação à acumulação de permissões de lavra garimpeira por parte de cooperativas e pessoas físicas, em fraude aos limites máximos de dez mil e cinquenta hectares já estabelecidos em lei, respectivamente, bem como a criação de normas que passem a exigir, a depender do maquinário utilizado para a atividade, prévia realização de pesquisa mineral. Em qualquer hipótese, em se tratando de mineração propriamente dita, compreende-se ser necessária a elaboração de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA)”.
A força-tarefa recomenda, ainda, a proibição à acumulação de PLGs por parte de cooperativas e pessoas físicas, em fraude aos limites máximos de dez mil e de 50 hectares já estabelecidos em lei, respectivamente, bem como a criação de normas que passem a exigir, a depender do maquinário utilizado para a atividade, prévia realização de pesquisa mineral. “Em qualquer hipótese, em se tratando de mineração propriamente dita, compreende-se ser necessária a elaboração de EIA/RIMA”, registra o documento.
Série – Desde o final de julho o MPF está publicando uma série de notícias para resumir como as várias fragilidades do sistema de controle da cadeia do ouro possibilitam a atuação de organizações criminosas como a denunciada pela instituição e geram prejuízos financeiros, sociais e ambientais de proporções devastadoras.
Também estão sendo descritos os pedidos feitos pelo MPF à Justiça relativos às instituições públicas e às empresas processadas.
Este é o quarto texto da série. O primeiro apresenta um panorama dos problemas, o segundo detalha as facilidades às fraudes e dificuldades à investigação resultantes da falta de um sistema informatizado de controle, e o terceiro aponta os problemas resultantes da negligência do país em fiscalizar o uso das permissões de lavras garimpeiras e a produtividade dessas lavras.
O conteúdo integral das ações, com todos os detalhes disponíveis, já pode ser acessado nos links abaixo.
Ação cível: processo nº 1003404-44.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)
Ação criminal: processo nº 0000244-28.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)
Fonte: Ministério Público Federal no Pará
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 22/08/2019
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