A inflexão da Antártida: aquecimento e aceleração do degelo, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
[EcoDebate] Os últimos 6 anos foram os mais quentes já registrados e a década 2011-20 é a mais quente da série histórica. O Planeta está com febre e não só está esquentando, com aquece a taxas crescentes. Por isso, o aquecimento global não é um problema como outro qualquer, mas sim o evento que engloba e potencializa todos os demais e obriga a humanidade a repensar suas prioridades diante da possibilidade de um armagedon ecológico. Indubitavelmente, uma catástrofe ambiental será o prenúncio de uma catástrofe social. Se as temperaturas continuarem subindo de forma acelerada o mundo pode chegar à situação denominada “Terra Estufa”, onde diversas áreas do Planeta se tornariam inóspitas e inabitáveis.
As consequências devastadoras do aquecimento global deixaram de ser uma agrura prevista para o futuro e se transformaram em “emergência climática”, presente no cotidiano das atuais gerações. O desequilíbrio já assola o Planeta de Leste a Oeste e de Norte a Sul – em graus diferenciados – e causa danos crescentes, embora esteja apenas em seu começo. Seguindo as tendências das últimas décadas, a Terra caminha para um “ponto de inflexão global” (alguns dizem que já ultrapassou o ponto de não retorno) que pode ser o início de um efeito dominó – capaz de gerar uma série de acontecimentos desagradáveis em cascata. A catástrofe climática está no horizonte e só será evitada se forem adotadas ações concretas para reduzir e zerar as emissões de gases de efeito estufa.
Uma das consequências inexoráveis do aquecimento global é o degelo dos polos, da Groenlândia e dos glaciares que tem o potencial, no longo prazo, de elevar o nível dos oceanos em mais de 70 metros. Mesmo algo como 10% de degelo já seria suficiente para os oceanos subirem 7 metros, o que seria devastador para as áreas costeiras e para as cidades litorâneas.
Estudo realizado por Gudmundsson et. al., publicado na revista Geophysical Research Letters (20/11/2019), mostra que a taxa atual de derretimento da camada de gelo antártico (AIS) está contribuindo para o aumento do nível do mar em nível crescente. O aumento da troca de calor oceano-gelo tem o potencial de induzir uma perda substancial de massa através do derretimento de suas prateleiras de gelo.
Os autores usaram um modelo numérico de placas de gelo em combinação com observações de satélite de afinamento das plataformas de gelo entre 1994 e 2017 para quantificar alterações instantâneas no fluxo de gelo em todas as linhas de aterramento do AIS, resultantes de alterações apenas no suporte das plataformas de gelo. As previsões baseadas em processos estão de acordo com os padrões espaciais observados de perda de gelo, fornecendo suporte para a noção de que uma parcela significativa do degelo atual do AIS é causada pelo aquecimento do oceano e por uma redução no suporte da plataforma de gelo (conforme figura acima).
Artigo de Eric Post et. al. (04/12/2019) mostra que, na última década, o Ártico aqueceu 0,75º C, superando em muito a média global, enquanto as temperaturas antárticas permaneceram comparativamente estáveis. À medida que a Terra se aproxima do aquecimento de 2 ° C, o Ártico e a Antártida podem atingir um aquecimento anual de 4º C e 2º C, mas atingindo temperaturas no inverno de 7º C e 3º C acima da média, respectivamente. As consequências incluem a perda contínua de gelo terrestre e marinho, ameaças à vida selvagem, aumento das emissões de metano, clima extremo em latitudes mais baixas e elevação rápida do nível dos oceanos.
Artigo de Claire Parkinson, publicado em Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS, 24/05/2019), mostra que após mais de 3 décadas de aumentos graduais, mas desiguais, na cobertura do gelo marinho, as extensões médias anuais na Antártica atingiram um recorde em 2014, seguido por um declínio muito acentuado, especialmente a partir de 2016. Comparando com a cobertura de gelo do Ártico, que demorou 3 décadas para registrar uma perda tão grande na extensão média anual de gelo, a situação da Antártida é realmente marcante.
O gráfico abaixo, da National Snow and Ice Data Center (NSIDC) da NASA, mostra as variações mensais da extensão mensal do gelo marinho da Antártida, para os meses de novembro entre 1978 e 2019. Nota-se que a reta de tendência era positiva, especialmente até 2015, mas com a grande redução do gelo marinho ocorrida entre 2016 e 2019, a reta de tendência passou a ser negativa, pela primeira vez em 2019.
Entre 1978 e 2016 a inclinação da reta era de 0,4 + ou – 0,8% por década. Entre 1978 e 2018 a inclinação foi 0 (zero), mostrando estabilidade total. Mas entre 1978 e 2019, pela primeira vez, a inclinação da reta ficou negativa, marcando -0,1, sendo que, nos últimos 4 anos, a extensão de gelo na Antártida ficou abaixo da média histórica. Em novembro de 2019, a extensão de gelo ficou em 14,9 milhões de km2, sendo que a média de 1981-2010 foi de 15,9 milhões de km2. Portanto, a redução foi de 1 milhão de km2.
O relatório “The Ocean and Cryosphere in a Changing Climate” do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado, no dia 25 de setembro de 2019, analisa e sintetiza as descobertas científicas mais recentes sobre a crise climática, os oceanos e a criosfera (superfície terrestre coberta permanentemente por gelo e neve). O relatório contou com a coordenação de mais de 100 especialistas de 30 países e foi estruturado para apresentar os diversos cenários sobre como o aquecimento global pode afetar os oceanos, as calotas polares e os glaciares.
Em relação ao hemisfério meridional, o IPCC mostra que o derretimento contínuo da camada de gelo da Antártica Ocidental está progredindo mais rápido do que o previsto, e o aumento resultante do nível do mar terá um impacto global. Evidências observacionais mostram que um grande setor da camada de gelo da Antártida Ocidental entrou em declínio irreversível. A causa são ventos mais fortes, possivelmente resultantes do aquecimento global, que estão alterando as correntes do Oceano Antártico e empurrando água mais quente sob as geleiras costeiras que formam o limite do manto de gelo. Desassociadas do fundo do mar, as geleiras derretem mais rapidamente, permitindo que pedaços da camada de gelo de 100.000 quilômetros quadrados caiam no mar, adicionando milhões de galões de água doce aos oceanos do mundo.
O artigo “Climate tipping points — too risky to bet against”, publicado na influente revista Nature (27/11/2019), mostra que entre os “pontos de inflexão” que estão levando a Terra a um “estado de emergência planetária”, estão os degelos dos polos e dos glaciares que vão liberar mais gases de efeito estufa e elevar o nível dos oceanos.
Os autores do artigo mostram que a estabilidade do Mar de Amundsen, na Antártida Ocidental, pode ter passado do ponto de inflexão, pois a ‘linha de aterramento’ onde o gelo, o oceano e a rocha se encontram está recuando irreversivelmente. Um estudo-modelo indica que, quando esse setor entra em colapso, pode desestabilizar o restante do manto de gelo da Antártica Ocidental. Este efeito dominó pode elevar o nível dos oceanos em até 3 metros.
Também a parte da camada de gelo da Antártica Oriental – a Bacia de Wilkes – está ficando igualmente instável. O trabalho de modelagem sugere que ela poderia adicionar outros 3 a 4 m ao nível do mar em escalas de tempo além de um século. Soma-se o fato de que a camada de gelo da Groenlândia está derretendo a uma taxa acelerada.
Isto quer dizer que as gerações futuras estão condenadas a viver com aumentos do nível do mar de cerca de 10 m ao longo dos próximos séculos. A taxa de fusão depende da magnitude do aquecimento acima do ponto de inflexão, pois quanto mais alto for a temperatura média da Terra, mais rápido será o degelo.
Os últimos 4 anos estão sendo marcados por declínios acentuados da extensão do gelo da Antártida, que, embora esteja ocorrendo mais recentemente, acontece em velocidade mais rápida do que no Ártico, como mostrou Claire Parkinson (PNAS, 24/05/2019). A Antártida perde gelo no continente e começou a perder extensão de gelo no mar. E o degelo antártico é um importante indicador das mudanças climáticas e impulsionador do aumento do nível dos oceanos.
Recentemente foi anunciado que o maior iceberg do mundo, chamado de A68, está prestes a chegar ao mar aberto. O bloco se desprendeu da Antártida em 2017, e tem a altura equivalente a um prédio de 40 andares, pesando 1 trilhão de toneladas e com área de 5,8 mil km², o equivalente ao tamanho do Distrito Federal. O A68 se aproxima do limite do Círculo Polar Antártico, de onde deve seguir para o Oceano Austral. Os dados mais recentes confirmam a gravidade da situação da Antártida. O gráfico abaixo, da NSIDC, mostra que a extensão de gelo marinho na Antártida, nos últimos 4 anos, é a menor da série histórica.
Artigo de Shepherd et. al. , E. et al., publicado na Revista Nature (24/04/2018) mostra que o balanço de massa de superfície indica uma perda de 2.720 ± 1.390 bilhões de toneladas de gelo entre 1992 e 2017, o que corresponde a um aumento no nível médio do mar de 7,6 ± 3,9 milímetros. Durante esse período, o derretimento causado pelo oceano fez com que as taxas de perda de gelo da Antártida Ocidental aumentassem de 53 ± 29 bilhões para 159 ± 26 bilhões de toneladas por ano; o colapso das prateleiras de gelo aumentou a taxa de perda de gelo da Península Antártica de 7 ± 13 bilhões para 33 ± 16 bilhões de toneladas por ano.
A figura abaixo mostra que a contribuição do degelo da Antártida para o aumento do nível dos oceanos é crescente, embora um pouco menor do que a contribuição da Groenlândia. O climatologista da Universidade de Liège, Xavier Fettweis, destacou a grande perda de gelo no dia 24 de dezembro de 2019, a maior extensão de derretimento na Antártida na era moderna.
O fato incontestável é vivemos uma emergência climática e que o degelo dos polos e dos glaciares fará o nível do mar subir vários metros, dependendo do tempo a considerar e dos níveis das emissões futuras. As gerações que ainda vão nascer vão herdar um mundo mais inóspito, podendo haver uma mobilidade social descendente em um mundo com muitas injustiças ambientais, apartheid climático e conflitos de diversas ordens. Indubitavelmente, o degelo da Antártida já começou, passou o seu ponto de inflexão e tende a se acelerar nas próximas décadas. Muitas áreas litorâneas vão ficar debaixo d’água e os danos sociais e econômicos serão de grande monta.
Artigo de Justin Rowlatt, correspondente-chefe de Meio Ambiente da BBC, mostra que a geleira Thwaites do Oeste da Antártida, do tamanho da Grã-Bretanha – e conhecida como “geleira do apocalipse” – já responde por 4% do aumento do nível do mar a cada ano – um número enorme para uma única geleira – e os dados de satélite mostram que está derretendo cada vez mais rapidamente. Ela tem água acumulada suficiente para elevar o nível do mar em mais de meio metro. Mas o pior é que ela fica como uma pedra angular no centro da camada de gelo da Antártica Ocidental – uma vasta bacia de gelo que contém água suficiente para elevar o nível do mar em mais de 3 metros.
No seu ponto mais profundo, a base da geleira fica a mais de um quilômetro abaixo do nível do mar e há outro quilômetro de gelo em cima disso. A razão pela qual os cientistas estão tão preocupados com a geleira Thwaites é por causa da água quente e profunda do oceano que está fluindo para a costa e para a frente de gelo, derretendo a geleira.
No dia 06 de fevereiro de 2020 a Antártida bateu o recorde de temperatura, registrando 18,3º C, marca superior ao recorde anterior que era de 17,5ºC, estabelecido em 2015. A Organização Meteorológica Mundial confirma que a temperatura de 18,3° é a maior já registrada, o que acende um alerta para a situação do continente meridional.
O jornalista David Wallace-Wells tem escrito sobre a possibilidade de uma catástrofe ambiental. Seu livro “The uninhabitable Earth: life after warming” (2019), começa com a frase: “É pior, muito pior do que você pensa”. Ele mostra que o aquecimento global vai ser abrangente, terá um impacto muito rápido e vai durar muito tempo. Isso quer dizer que os efeitos danosos das mudanças climáticas vão se agravar com o tempo e, embora todas as gerações já estejam sendo atingidas, são as crianças e jovens que nasceram e vão nascer no século XXI que vão sentir as maiores consequências do colapso ambiental. A degradação ambiental vai ocorrer em várias áreas, com a acidificação dos solos, águas e oceanos, a precarização dos ecossistemas e os desastres climáticos extremos (secas, chuvas, furacões e inundações de grandes proporções), tornando muitos lugares da Terra bastante inóspitos ou inabitáveis (Alves, 2020)
O tempo é curto e a humanidade já está passando do ponto para evitar os piores cenários. Em dezembro de 2020 vai ocorrer a COP26, em Glasgow. Talvez seja a última oportunidade para se adotar as medidas necessárias para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e para evitar um grande colapso ambiental. Mas antes disto vai haver uma grande mobilização global, nos dias 22 a 24 de abril de 2020, por ocasião do Dia da Terra. Só com a juventude na rua pressionando, a governança global será obrigada a começar a agir.
José Eustáquio Diniz Alves
Colunista do EcoDebate.
Doutor em demografia, link do CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Colunista do EcoDebate.
Doutor em demografia, link do CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. A dinâmica demográfica global em uma “Terra inabitável”. RELAP, Vol. 14 – Número 26, Janeiro de 2020 https://revistarelap.org/index.php/relap/article/view/239/350
IPCC. The Ocean and Cryosphere in a Changing Climate. This Summary for Policymakers was formally approved at the Second Joint Session of Working Groups I and II of the IPCC and accepted by the 51th Session of the IPCC, Principality of Monaco, 24th September 2019
G. Hilmar Gudmundsson et. al. Instantaneous Antarctic ice-sheet mass loss driven by thinning ice shelves, Geophysical Research Letters, 20/11/2019
Eric Post et. al. The polar regions in a 2°C warmer world, Science Advances, Vol. 5, no. 12, eaaw9883, 04 Dec 2019 https://advances.sciencemag.org/content/5/12/eaaw9883
Shepherd, A., Ivins, E., Rignot, E. et al. Mass balance of the Antarctic Ice Sheet from 1992 to 2017. Nature 558, 219–222 (2018) doi:10.1038/s41586-018-0179-y, 24 April 2018
Claire L. Parkinson. A 40-y record reveals gradual Antarctic sea ice increases followed by decreases at rates far exceeding the rates seen in the Arctic, PNAS, 24/05/2019
Bethan Davies. An introduction to Glacier Mass Balance, 07/11/2018
Climainfo. O que precisa ser feito em cada setor para limitar o aquecimento global em 1,5°C? 21/10/2018 http://climainfo.org.br/2018/10/21/como-limitar-aquecimento-em-15oc/
Justin Rowlatt. Antarctica melting: Journey to the ‘doomsday glacier’, BBC, 28/01/2020
O colapso do gelo na Antártida, Climate State https://vimeo.com/climatestate
National Snow and Ice Data Center (NSIDC) https://nsidc.org/data/seaice_index/
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/02/2020
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