O efeito da covid-19 na natalidade brasileira, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
[EcoDebate] No começo do ano passado, quando as primeiras medidas de isolamento social e de quarentena foram decretadas, teve analistas dizendo que haveria um baby boom em decorrência dos casais ficarem presos dentro de casa. Fariam mais sexo e teriam mais filhos. Contudo, este tipo de visão desconsidera que existe uma separação entre sexo e reprodução e, em geral, as pessoas usam métodos contraceptivos para desfrutar livremente da sexualidade. No dia 16/03/2020 dei uma entrevista ao jornal Valor, que saiu com o seguinte título: “Demógrafo descarta ‘baby boom’ provocado pelo coronavírus”. Quase um ano depois, mesmo sem ter ainda os dados definitivos, já podemos dizer que o efeito da covid-19 sobre a taxa de natalidade no Brasil foi de reduzir o número de nascimentos e não de aumentar (também reduziu o número de casamentos legais).
O número de nascimentos cresceu ano a ano na maior parte da história brasileira. Em 1822, ano da Independência do Brasil, a população brasileira era de aproximadamente 4 milhões de habitantes e o número de nascimentos estava abaixo de 200 mil por ano. No quinquênio 1950-55 o número médio anual de nascimento ficou em 2,6 milhões de bebês. Este número continuou crescendo até o pico de quase 4 milhões de nascimentos anuais no quinquênio 1980-85. Estes cinco anos foram um “divisor de águas”, pois nunca (nem no passado e nem no futuro) teve ou haverá tantos nascimentos em um só quinquênio. A taxa de fecundidade no Brasil começou a cair na segunda metade da década de 1960. Mas o número de nascimentos continuou a aumentar até 1985 porque aumentou o número de mulheres em idade reprodutiva. Ou seja, as mulheres estavam tendo menos filhos, mas havia mais mulheres prolíferas. A partir deste cume (1985) os números começaram a cair continuamente até ficarem abaixo de 3 milhões anuais a partir do quinquênio 2010-15, conforme mostra o gráfico abaixo (o número de 2020-25 é uma projeção).
Os dados anuais do SINASC, do Ministério da saúde, que registram o número de crianças nascidas no sistema hospitalar, mostram que o número de nascimentos estava em 3,2 milhões no ano 2000, ficou pouco abaixo de 3 milhões entre 2006 e 2014, voltou para a casa dos 3 milhões em 2015, teve uma queda em 2016 em função da epidemia da Zika, recuperou um pouco em 2017 e 2018 e voltou a cair em 2019, conforme mostra o gráfico abaixo. A despeito das variações anuais, a tendência de mais longo prazo é de queda do número de nascimentos. Os últimos dados anuais disponíveis são para 2019 (os dados de 2020 vão apenas até setembro).
A mesma tendência de queda pode ser observada no gráfico abaixo, com base nos dados do registro civil do IBGE, que representam os números coletados pelos cartórios e consolidados e padronizados pelo IBGE. No começo da série, os dados do IBGE são um pouco mais elevados entre 2003 e 2014, mas, entre 2015 e 2019, os números dos dois gráficos são muito semelhantes, inclusive a queda ocorrida em 2016. Os últimos dados anuais disponíveis também são para 2019.
O Portal da Transparência é uma iniciativa dos cartórios e também mostra os dados anuais de nascimentos com a vantagem de ter registros mais recentes (embora não definitivos). O gráfico abaixo mostra que o número de nascimentos para os anos de 2015 a 2017 estava bem abaixo dos dados do SINASC e do registro civil do IBGE, mas para 2018 e 2019 os números já são mais parecidos. O Portal da Transparência já apresenta os dados para 2020 e mostra que o número de nascimentos é menor do que os números de 2018 e 2019.
Sem dúvida, isto reflete a não inclusão dos registros tardios que ainda devem ser incorporados na série. A hipótese de já refletir uma queda da natalidade em função da pandemia é pouco provável pois a primeira quarentena no Brasil começou em meados de março e decisões reprodutivas para ter efeito na natalidade em 2020 teriam que ser tomadas 9 meses antes do fim do ano. Uma possibilidade de queda da natalidade ainda em 2020 poderia ocorrer se houvesse uma aumento do número de abortos durante o período da pandemia, mas não há dados para verificar esta hipótese. Estudos mostram que a pandemia já impactou a natalidade na China e nos EUA, mas em ambos os países os primeiros casos começaram mais cedo e há a possibilidade legal de interrupção da gravidez.
O gráfico abaixo compara as 3 fontes de dados para o período 2015 a 2019 e o registro do Portal da Transparência para o ano 2020. Nota-se que em 2019 as três fontes apresentam valores bem semelhantes. Para 2020, os dados definitivos ainda não estão disponíveis e isto já reflete uma fraqueza do sistema estatístico nacional que não tem agilidade o suficiente para apresentar os dados mais atualizados em um momento tão grave. Além do mais, a pandemia exigiria um aprofundamento da discussão sobre os direitos sexuais e reprodutivos e a disponibilidade de métodos de regulação da fecundidade para que as mulheres e os casais pudessem tomar decisões livres e conscientes, fortalecendo a capacidade de autodeterminação reprodutiva. Isto quer dizer que a população brasileira não teve apoio da política nacional de saúde reprodutiva para tomar as decisões sobre ter ou não ter filhos durante a pandemia. Principalmente, a população mais pobre ficou “ao deus-dará”.
A tabela abaixo mostra o número de nascimentos para os meses de janeiro entre 2015 e 2020 para o SINASC e de 2015 a 2021 no Portal da Transparência. Nota-se que os números do SINASC eram maiores no início da série, mas em 2019 o número foi maior no Portal da Transparência. O que chama a atenção é o dado de janeiro de 2021 que apresenta uma queda que pode ser considerada significativa no número de nascimentos. De fato, esta queda já pode indicar o efeito da pandemia no sentido de reduzir a natalidade. Evidentemente, este dado deve ser visto com cuidado, pois existem registros tardios que ainda não foram incorporados no sistema. Mas também esta queda pode refletir a tendência de longo prazo apresenta no primeiro gráfico.
Indubitavelmente, os dados acima confirmam uma tendência bem conhecida dos demógrafos brasileiros que estudam as complexas causas da queda do número absoluto de nascimentos desde o segundo quinquênio da década de 1980. O movimento de queda da fecundidade (filhos por mulher) e da natalidade (nascimentos em relação à população) é evidente e consistente e deve continuar durante todo o restante do século como mostram as projeções do IBGE e da Divisão de População da ONU.
Conhecer a dinâmica demográfica brasileira é fundamental para evitar posturas catastrofistas quer seja quando se trata de “explosão populacional” ou “implosão populacional” (Alves, 2000). Acima de tudo é preciso garantir o direito à livre escolha e garantir que as pessoas possam ter as informações e os meios para efetivar suas decisões reprodutivas. Oscilações conjunturais não devem ofuscar as transformações estruturais de longo prazo.
O fato da natalidade cair durante a pandemia não é motivo de preocupação, pois trata-se de uma resposta racional e multifásica diante da conjuntura economia global e da emergência sanitária.
Como dizia o grande matemático e filósofo, Marquês de Condorcet, em 1794, não é racional colocar filhos no mundo para sofrer. Quando o contexto exige, a redução da fecundidade é uma postura de precaução diante das condições adversas.
A covid-19 gerou um pandemônio econômico global e uma emergência sanitária internacional e não faria sentido esperar o mesmo comportamento reprodutivo de outras conjunturas mais favoráveis. Desta forma, pequenas variações na natalidade são normais. O máximo que a covid-19 pode fazer nesta área é antecipar um pouco uma tendência de redução do número de nascimentos no Brasil que já começou em 1985 e vai continuar durante todo o século XXI. Não há motivos para alarmismos!
A população brasileira cresceu mais de 50 vezes nos últimos dois séculos. Agora estamos em fase de transição e no futuro (segunda metade do século XXI) haverá um momento novo, quando o decrescimento demográfico será a tendência predominante no país. Não cabe demonizar a redução do tamanho da população e sim adaptar as políticas públicas para a nova dinâmica demográfica.
Existem desafios tanto no crescimento, quanto no decrescimento populacional, a questão é ter inteligência e sensatez para lidar com as diversas realidades em constante transformação.
José Eustáquio Diniz Alves
Colunista do EcoDebate.
Doutor em demografia, link do CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, J. E. D. Transição da fecundidade e relações de gênero no Brasil. 1994. 152f. Tese (Doutorado) – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de Minas Gerais, BH, 1994. https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/MCCR-7UWH66
ALVES, J. E. D. Mitos e realidade da dinâmica populacional. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 12, Caxambu, MG, 2000
https://pt.scribd.com/document/493115086/MITOS-E-REALIDADE-DA-DINAMICA-POPULACIONAL
ALVES, JED. Bônus demográfico no Brasil: do nascimento tardio à morte precoce pela Covid-19, R. bras. Est. Pop., v.37, 1-18, e0120, 2020
https://www.scielo.br/pdf/rbepop/v37/0102-3098-rbepop-37-e0120.pdf
ALVES, JED. Cai a natalidade e a fecundidade nos EUA depois da pandemia da covid-19, Ecodebate, 07/12/2020 https://www.ecodebate.com.br/2020/12/07/cai-a-natalidade-e-a-fecundidade-nos-eua-depois-da-pandemia-da-covid-19/
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/02/2021
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