Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco: as águas não estão chegando ao seu destino final
A represa de Boqueirão de Cabaceiras, que abastece Campina Grande e mais 18 municípios de seu entorno, faz tempo que não recebe uma gota sequer das águas do Rio da Integração Nacional.
Por João Suassuna
A Transposição do Rio São Francisco foi projetada com dois eixos, o Norte (402Km) e o Leste (220Km), para conduzir as águas do rio para o atendimento das demandas hídricas da região Setentrional nordestina. Foram previstas vazões de 99 m³/s para o Eixo Norte e de 28 m³/s para o Eixo Leste, totalizando 127 m³/s para o projeto.
Cabe à Agência Nacional de Águas (ANA) estabelecer, anualmente, os quantitativos volumétricos do São Francisco, para o suprimento das demandas existentes nesses eixos, através do PGA (Plano de Gestão Anual), em cujo Anexo II estão indicados os volumes mensais (condições e padrões operacionais) para o uso das águas do rio.
Eixo Leste do projeto
O Eixo Leste, objeto das análises desse artigo, atende prioritariamente as necessidades hídricas (abastecimento) das regiões agrestes dos estados de Pernambuco (municípios da bacia do Rio Ipojuca) e da Paraíba (Campina Grande e mais 18 municípios de seu entorno), havendo, também, previsão de abastecimento da região do Brejo paraibano e do agronegócio estadual, por intermédio do projeto Acauã-Araçagi, na chamada Vertente Litorânea do estado. O canal da referida Vertente, com 112,4 km de extensão, levará águas do Açude de Acauã, no rio Paraíba, para o rio Camaratuba, na altura do município de Curral de Cima, integrando, dessa maneira, as bacias hidrográficas existentes nesse percurso.
Durante o governo Lula, quando das negociações dos destinos das águas da Transposição, o então governador de Pernambuco, Eduardo Campos, reivindicou o aproveitamento de parte dos volumes do Eixo Leste no próprio estado, alegando que “Pernambuco não iria servir, apenas, de aqueduto na passagem das águas sanfranciscanas pelo seu território, para posterior uso dos paraibanos”. A solicitação de Campos resultou na proposta do Ramal do Agreste, visando o suprimento hídrico de municípios localizados na bacia do Rio Ipojuca, que passavam, à época, por sérias dificuldades.
Com o agravamento da crise de abastecimento no país e com as negociações do Ramal do Agreste já em andamento, o governo pernambucano, em 2018, através de recursos próprios, iniciou a construção da Adutora do Moxotó, com captação das águas também no Eixo Leste da Transposição, visando antecipar o fornecimento para os municípios de Sertânia, Arcoverde, Pesqueira, Brejo da Madre de Deus, Belo Jardim, Alagoinha, Tacaimbó, São Bento do Una, Sanharó e Custódia. A referida Adutora, atualmente operando com uma média volumétrica de bombeamento de cerca de 0,45 m³/s, uma vez concluído o Ramal do Agreste (já parcialmente inaugurado pelo Governo Federal desde 19/02/2021), será interligada a este, nas imediações da Estação de Tratamento de Águas do município de Arcoverde, dando continuidade ao abastecimento dos municípios da bacia do Ipojuca, com uma vazão estabelecida de 8 m³/s,
Adutora do Cariri na Paraíba
Em junho de 2021, o governador da Paraíba, João Azevedo, anunciou que o Governo do Estado havia obtido os recursos necessários para a construção da nova Adutora do Cariri, que abastecerá quase todas as cidades localizadas naquela microrregião paraibana. O investimento, no valor de US$ 80 milhões de dólares, será financiado através de empréstimo junto ao Banco Mundial. A adutora terá uma extensão de 358 quilômetros e captará as águas das barragens de Poções (30 milhões de m³, localizada em Monteiro) e de Camalaú (48 milhões de m³, situada no município de mesmo nome). Ambas fazem parte do circuito das águas do Eixo Leste da Transposição e estão interligadas por válvulas dispersoras de volumes, com as quais se pode abastecer as regiões à jusante dos reservatórios. Segundo dados da Aesa (agosto de 2021), a represa de Poções se encontra com cerca de 69,17% de sua capacidade (aproximadamente 21 milhões de m³) e a de Camalaú com em torno de 80,66% (39 milhões de m³). A totalidade desses 60 milhões de m³ é consequência direta dos bombeamentos do Projeto da Transposição, juntamente com os volumes precipitados no período das chuvas de 2021. Uma eficiente gestão hídrica dessas águas será de grande valia para os residentes da região do Cariri, notadamente o Campinense, no enfrentamento dos dias de penúria hídrica que estão por vir, uma vez que os volumes da transposição não estão chegando à represa de Boqueirão de Cabaceiras, cuja capacidade de armazenamento vem sendo reduzida paulatinamente. Prova disso são os dados da depreciação ocorrida na referida represa no mês de julho de 2021 (cerca de 2,78%), que opera atualmente (30/07/2021), com cerca de 31,75% de seu volume útil. Em se mantendo essa taxa mensal de diminuição volumétrica, em dezembro a depreciação atingirá cerca de 14%, resultando num volume útil de apenas 17,75%.
Os volumes salvadores
O município de Campina Grande enfrentou, em 2017, um longo período de racionamento de água, causado, basicamente, pela entrada de Boqueirão de Cabaceiras no regime de volume morto.
Como já mencionado, essa represa abastece a cidade de Campina e mais 18 municípios de seu entorno. Em junho do referido ano, o Eixo Leste da Transposição foi antecipadamente inaugurado, como forma de minimizar os graves problemas sociais que atormentavam os campinenses. Naquela época, foram realizados rasgos nos paredões de duas represas (Poções e Camalaú) localizadas no percurso das águas ao longo do eixo, entre os municípios de Monteiro e Cabaceiras, visando apressar o fluxo dos volumes bombeados do São Francisco até Boqueirão. Com essa manobra, os reservatórios perderam o seu poder de acumulação. As águas passavam pelo leito do rio, como se não houvesse os paredões das represas. Posteriormente, por se tratar de uma manobra emergencial e com necessidades de futuros reparos, os bombeamentos provenientes da transposição foram interrompidos, com volta prevista para um período mais oportuno, após a colocação de válvulas dispersoras nos rasgos, as quais restabeleceriam a capacidade de armazenamento das duas represas.
É importante salientar a importância da chegada das águas da Transposição a Boqueirão de Cabaceiras, após o retorno dos bombeamentos ao Eixo Leste, em 2018, afastando a represa do volume morto e fazendo com que a sua capacidade atingisse um percentual de cerca de 17%. Com a chegada da quadra chuvosa, o reservatório chegou a acumular cerca de 35%, 18% dos quais com a contribuição das águas das chuvas caídas naquele ano.
Defluência de Boqueirão de Cabaceiras para Acauã
O projeto da Acauã-Araçagi (Vertente Litorânea) utilizará volumes de Acauã, represa com capacidade para 253 milhões de m³, localizada no município de Itatuba e que atualmente encontra-se com cerca de 4,59% de sua capacidade útil (julho de 2021). Visando a recuperação do volume do reservatório, estão sendo aportados, de Boqueirão de Cabaceiras, para aquela represa, cerca de 2,2 m³/s. A estratégia adotada parece refletir a certeza dos gestores dos recursos hídricos paraibanos, de que as águas do rio São Francisco chegarão a Boqueirão em volumes suficientes para o suprimento das demandas ali existentes. O que se percebe, no entanto, é uma realidade bem diferente, uma vez que, apesar das referidas represas continuarem como importantes fontes hídricas para a população, o armazenamento de ambas permanece em estado crítico.
Tal fato se deve à mudança de cenário ocorrida no Acauã-Araçagi, cuja proposta inicial abrangia exclusivamente o abastecimento humano. Atualmente, o projeto prevê um uso misto de suas águas, que passarão a ser utilizadas também para fins de irrigação. Essa nova versão de consumo interferiu sobremaneira na viabilidade técnico-econômica do empreendimento, uma vez que as limitações volumétricas do rio São Francisco comprometem as atuais demandas e também trarão insegurança hídrica para o futuro abastecimento da região. E possível prever, então, que as autoridades paraibanas responsáveis pela utilização das águas do estado, enfrentarão muitas dificuldades no gerenciamento hídrico desse Eixo. Com um aporte de apenas 2,2 m³/s, o Acauã demandará um enorme período de tempo para atingir a capacidade necessária às garantias de uso misto ora apresentado pelo projeto.
A interrupção do curso das águas
Após a construção das grandes barragens no leito do São Francisco, principalmente a de Sobradinho, o rio passou a ter vazões artificiais e dependentes da abertura e do fechamento de comportas. Essa nova característica na condução das águas do Velho Chico exigiu, das autoridades responsáveis pelo setor hídrico do país, uma gestão mais equilibrada e eficiente de suas águas. Os usos descontrolados dos volumes nas pesadas irrigações praticadas, aliados à existência de prolongadas estiagens na bacia do rio, resultaram em situações críticas vexatórias, nunca antes constatadas, como os baixos volumes ocorridos em novembro de 2017. A represa de Sobradinho, por exemplo, acumulou naquele ano, apenas 1,98% de sua capacidade útil, e defluiu, para a regularização das vazões do Submédio e Baixo São Francisco, apenas 554 m³/s (volume disponível do rio para atendimento dos múltiplos e conflituosos usos das demandas hídricas das principais áreas de captação). Em 2017, as águas da transposição que livraram Campina Grande de longo racionamento hídrico, foram captadas no leito do São Francisco, nas críticas condições locais acima descritas.
Como já foi dito, as águas do Eixo Leste começaram a ser bombeadas da represa de Itaparica em 2017, em volumes estimados de cerca de 9 m³/s, não só para o abastecimento de pessoas, mas, também, para a prática da irrigação de pequenas áreas (0,5 ha), em propriedades localizadas nas margens do rio Paraíba. A continuidade dessa sangria, para usos diversos, principalmente na irrigação, juntamente com as perdas provenientes da evaporação e de infiltrações, resultaram, à época, numa vazão desse Eixo, em Monteiro, de cerca de 3 m³/s, registrando-se, em Boqueirão de Cabaceiras, apenas, 0,65 m³/s.
A referida represa, com 411,6 milhões de m³ de capacidade, é a principal fonte de abastecimento da região de Campina Grande e municípios de seu entorno. As águas da Transposição do Rio São Francisco começaram a ser bombeadas para Boqueirão, via Eixo Leste do projeto, em 2017, mas, atualmente, não estão chegando ao destino final. Na Terça do Crea realizada no dia 17/11/2020, tratando de como garantir os múltiplos usos da água diante da escassez e crescente demanda, o ex-Secretário de Recursos Hídricos do Estado de Pernambuco, Almir Cirilo, fez comentários acerca das razões pelas quais os fluxos das águas da Transposição foram interrompidos para Campina Grande. Na ótica de Cirilo, a razão disso deveu-se ao fato do escoamento das águas se dar a céu aberto na bacia do Rio Paraíba, entre os municípios de Monteiro e Campina Grande, levando ao desperdício volumétrico de grande monta, consequência direta das infiltrações, evaporação e outros aportes nas irrigações existentes naquele trecho, além do lançamento de elementos contaminantes (esgotos), o que tem levado a um desperdício de cerca de ¾ dos volumes bombeados do projeto, aos campinenses. Ainda segundo o ex-Secretário, para a solução desse problema é importante que se comece a pensar em futuras ações suplementares, com o uso de tubulações adutoras, a exemplo do que vem sendo praticado no Ramal do Agreste em Pernambuco, para o abastecimento de vários municípios da bacia do rio Ipojuca, os quais também vêm passando por sérios problemas de escassez hídrica.
Volumes insuficientes
O Eixo Leste dispõe de seis estações de bombeamentos (EBV1 a EBV6), cujos quantitativos volumétricos, para o mês de janeiro de 2021, foram os seguintes: EBV1 8,400 m³/s, EBV2 8,279 m³/s, EBV3 8,108 m³/s, EBV4 7,904 m³/s, EBV5 7,340 m³/s e BBV6 7,250 m³/s. Já para o mês de agosto, os volumes assegurados pela ANA para o atendimento das demandas hídricas previstas no projeto foram estabelecidos obedecendo a seguinte distribuição: EBV1 2,250 m³/s, EBV2 2,163 m³/s, EBV3 2,043, EBV4 1,906 m³/s, EBV5 1,281 m³/s e EBV6 1,226 m³/s (volume previsto em Monteiro, após o bombeamento a partir dessa última estação). Essa última vazão está sendo acumulada nos açudes de Poções e Camalaú, que possuem, como já mencionado, válvulas dispersoras de volumes, que vêm bloqueando o escoamento para a represa de Boqueirão de Cabaceiras.
O regime de acumulação volumétrica das represas de Poções e Camalaú pode ser semanalmente monitorado através do portal da Fundação Joaquim Nabuco. Nele, percebe-se a preocupação atual do governo da Paraíba de garantir os volumes do reservatório de Poções, para atender as demandas da nova Adutora do Cariri paraibano, pois, sem o aporte das águas provenientes do rio São Francisco em Boqueirão de Cabaceiras, ao final da quadra chuvosa de 2021, dificilmente essa represa apresentará capacidade de suprir as demandas hídricas existentes em sua bacia hidrográfica. Atualmente, Boqueirão está com cerca de 31,75% de seu volume útil, conforme notas técnicas divulgadas semanalmente nas redes sociais.
Outra fonte de preocupação para o governo paraibano é que os volumes disponibilizados pela ANA, no mês de agosto, para o Eixo Leste (1,226 m³/s) também, não são suficientes para o suprimento das demandas do projeto Acauã-Araçagi, que se utiliza das águas da represa de Acauã (atualmente, com apenas 4,74% de sua capacidade útil) juntamente com a defluência de 2,2 m³/s oriunda de Boqueirão de Cabaceiras, conforme relatado anteriormente. É pouca água para suprir uma enorme demanda.
Doravante, para o atendimento das demandas hídricas existentes no Eixo Leste na Paraíba, se faz necessário um estudo de viabilidade técnica acerca da ampliação dos bombeamentos oriundos da represa de Itaparica (projetados para até 28 m³/s), bem como da capacidade do rio São Francisco de oferta desses volumes. Outra alternativa importante seria a utilização de parte da água armazenada nas represas de Poções e Camalaú (60 milhões de m³), com vistas à garantia das vazões necessárias ao suprimento do abastecimento de Campina Grande e municípios de seu entorno.
Finalmente, fica claro que o Eixo Leste do projeto, com as limitações atuais existentes no rio São Francisco, passa por dificuldades de gestão hídrica, que poderão comprometer os usos futuros das águas da Transposição em todo o território da Paraíba. Nesse sentido, medidas urgentes para otimização desses usos precisam ser tomadas, para garantir a necessária segurança hídrica do povo paraibano. Nunca é demais lembrar que “Água” é um bem natural finito e a sua busca deve ser empreendida com muito planejamento e o seu uso, com a parcimônia devida.
João Suassuna é Engenheiro Agrônomo, Pesquisador Titular da Fundação Joaquim Nabuco e Especialista em Convivência com o Semiárido.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/08/2021
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