Agropecuária brasileira precisa de mudanças estruturais
Mudanças de uso do solo, causadas principalmente por atividades rurais de forma direta e indireta, são responsáveis por mais de 70% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil
Políticas públicas mais abrangentes, assistência técnica especializada e, principalmente, mudança na cultura de parte dos produtores rurais são os caminhos para o fortalecimento do agro de baixo carbono
Um dos setores econômicos mais sensíveis às mudanças climáticas, a agropecuária é também a principal responsável pela emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) na atmosfera no Brasil, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), uma iniciativa do Observatório do Clima.
O mais recente estudo sobre as emissões brasileiras, divulgado em outubro de 2021, mostrou que a atividade rural foi responsável, de forma direta e indireta, por 73% das emissões de GEE no território brasileiro, sendo 46% dessa geração por substâncias nocivas associadas ao desmatamento de áreas naturais. Mesmo com a pandemia, o Brasil aumentou em 9,5% a emissão de gases de efeito estufa em 2020, enquanto no mundo todo houve uma queda de quase 7%.
É consenso entre cientistas e parte dos líderes do agronegócio que o setor precisa reduzir suas emissões imediatamente. O agrônomo Carlos Hugo Rocha, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, ressalta que o modelo voltado ao aumento da produtividade centrado na venda de commodities, que busca a expansão da fronteira agrícola, não pode mais ser socialmente permitido. Para ele, o ponto mais crítico é a destruição da Amazônia, que já está interferindo no regime de chuvas no Brasil e em boa parte da América do Sul.
“As florestas são responsáveis por regular o clima, esfriar o planeta e produzir chuva, entre outros benefícios. A evapotranspiração da floresta na Amazônia alimenta massas de ar quente e úmido, formando rios voadores fundamentais para as precipitações em boa parte do continente. Se o desmatamento na região não for interrompido imediatamente teremos extremos de secas mais severas e de temperaturas, causando prejuízos incalculáveis, inclusive para o próprio agronegócio. É preciso agir agora”, explica Rocha.
De acordo com o mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), publicado em agosto passado, o agronegócio brasileiro deverá sofrer cada vez mais com eventos extremos, provocando grandes estiagens no Nordeste e Centro-Oeste, enchentes no Sudeste e fortes ondas de frio no Centro-Sul do País. No Cerrado, um dos biomas com maior produtividade para o agro atualmente, a temperatura média pode subir até cinco graus Celsius até o final do século, o que inviabilizaria a agricultura em larga escala.
Além do desmatamento e dos incêndios, outro ponto crítico relacionados à atividade rural é a contribuição para a emissão de GEE do rebanho bovino, responsável por 28% da emissões do Brasil, especialmente pela fermentação entérica que libera o gás metano na atmosfera. O uso abundante de produtos químicos, especialmente fertilizantes nitrogenados; os combustíveis fósseis usados no transporte dos produtos, e a compactação e degradação do solo, que reduzem a infiltração da água na terra, são outros fatores que preocupam. “Tudo isso consolidou-se com muito incentivo público, pois, desde a década de 1970 o Brasil criou um modelo de agropecuária extensiva, com incentivos fiscais, crédito subsidiado e assistência técnica buscando aumento da rentabilidade do negócio agrícola, acima de tudo. Infelizmente, essa lógica levou a um conflito entre produção e conservação, que não faz mais sentido no século XXI”, salienta Rocha.
“É um problema muito sério, pois o Brasil depende da produção agropecuária. Entretanto, é importante ressaltar que é possível produzir de outra forma, reduzindo e, muito, a emissão de gases de efeito estufa e contribuindo para minimizar os impactos inevitáveis das mudanças do clima. O setor agropecuário pode ser um grande aliado na mitigação das emissões e no aumento da resiliência do setor e de toda a sociedade aos efeitos das mudanças climáticas”, comenta o engenheiro florestal André Ferretti, gerente sênior de Economia da Biodiversidade da Fundação Grupo Boticário e também membro da RECN.
Ferretti lembra que a agricultura de baixo carbono já é realidade – especialmente em localidades onde predomina o modelo da agricultura familiar –, mas o modelo deveria ser aplicado em grande escala. Para isso, no entanto, políticas públicas inteligentes deveriam induzir uma mudança pragmática e cultural no setor. “O Plano Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (ABC) é exemplo de uma boa ideia que ainda não decolou. Mesmo após uma década de implantação, representa menos de 2% do Plano Safra, a política pública de financiamento e fomento da agropecuária nacional”, comenta.
Composto por seis programas do Governo Federal, o Plano ABC contempla recuperação de pastagens degradadas; integração lavoura-pecuária-floresta e sistemas agroflorestais; plantio direto; fixação biológica de nitrogênio, florestas plantadas; tratamento de dejetos animais; e adaptação às mudanças climáticas.
Ferretti destaca ainda que, além de contribuir para a mitigação das mudanças do clima, a produção sustentável no campo aliada à conservação da natureza gera outros benefícios. “Considerar a natureza como parte da solução traz melhor qualidade de vida para a comunidade e gera economia para os produtores rurais. Ao manter florestas em pé; cuidar melhor do solo; proteger as nascentes dos rios; integrar lavoura, pecuária e florestas; recuperar pastagens degradadas, entre outras boas práticas, os agricultores e pecuaristas terão menos gastos com irrigação, precisarão de menos fertilizantes e poderão contribuir para o equilíbrio dos microclimas, reduzindo o impacto de eventos climáticos extremos, como as altas temperaturas, secas e grandes tempestades que devem causar mais dificuldades nos próximos anos”, explica o gerente da Fundação Grupo Boticário.
O professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa defende soluções agroecológicas para a produção de alimentos. “Quanto mais avançada for a nossa sociedade, mais devemos impulsionar a agricultura orgânica, responsável e sustentável, comprometida com a redução da emissão de GEE, com a conservação da biodiversidade, proteção de nascentes de água e dos rios, e distribuição mais justa dos recursos econômicos. Uma produção sustentável no campo, que considere a natureza como vetor estratégico, contempla isso”, salienta.
Rocha lembra que a mudança do clima do planeta, ocorrida há aproximadamente 10 mil anos, proporcionou o desenvolvimento da agricultura, lançando as bases para toda a estrutura cultural e da sociedade que conhecemos hoje. Agora, em um período em que a mudança climática novamente pode provocar grandes alterações nas paisagens da Terra, desta vez a partir das ações humanas, a produção agrícola e a pecuária devem contribuir para a adaptação e mitigação dos efeitos do aquecimento global ou então contribuirá para acelerar o processo de degradação e que vai trazer graves consequências para a biodiversidade e a própria humanidade. “É possível corrigir o rumo, mas estamos caminhando rapidamente em uma direção muito perigosa”, conclui Rocha.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 16/02/2022
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