Estradas e a face oculta das ‘quedas de barreiras’, artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos
Os enormes prejuízos econômicos e patrimoniais, as perdas de vidas humanas e os incríveis transtornos na vida de milhares de cidadãos por consequência das interrupções ou estrangulamentos de tráfego resultantes de “quedas de barreiras” em nossas estradas, têm já se tornado, desgraçadamente, fatos comuns e aguardados em nossos verões chuvosos. E, como tantas outras mazelas nacionais, destinados a ser digeridos no largo estômago brasileiro do esquecimento e da impunidade. É de extrema importância nacional que todos nos preocupemos em não permitir que a história continue assim a ser contada.
A terminologia mais jornalística “quedas de barreiras” envolve uma gama extensa de fenômenos geológico-geotécnicos, como escorregamentos em encostas naturais, rupturas de taludes de corte, rupturas de taludes de aterros, rompimento de aterros/barragens, rompimentos de cabeceiras de obras de arte, etc. Enfim, sugere sempre a ideia de movimentos de grandes massas de terra e /ou rochas.
É preciso ressaltar que a Engenharia Geotécnica brasileira (aquela que trabalha com obras envolvendo intervenções em terrenos naturais de solos e rochas), apoiada pelas informações e conhecimentos da Geologia de Engenharia (a Geologia que trabalha junto a todas as formas de intervenção do Homem nos terrenos – como as estradas, por exemplo), tem pleno domínio tecnológico para evitar ou reduzir a riscos mínimos a ocorrência de toda essa gama de fenômenos. Donde se conclui que esses seguidos desastres vêm ocorrendo, e anualmente aumentando a incidência de sua ocorrência, devido exclusivamente à não aplicação dos referidos conhecimentos tecnológicos. A não ser que resolvamos todos entrar em crise de ingenuidade e passar a acreditar nas manifestações de agentes públicos e privados envolvidos em algum tipo destes acidentes que, espertamente, saem sempre a jogar sobre Deus ou sobre fatalidades da Natureza a responsabilidade pelas desgraças ocorridas.
No caso das estradas que atravessam regiões serranas tropicais, como a Serra do Mar, por exemplo, onde os escorregamentos são parte integrante de seu comportamento geológico natural, considere-se que no longo período anterior à Rodovia dos Imigrantes a engenharia viária brasileira adotou generalizadamente a temerária concepção de estrada encaixada por cortes nas encostas. Essa concepção de projeto se mostrou desastrosa e ainda por muito tempo nossas estradas assim construídas – Via Anchieta, Rio-Santos, Via Dutra, Tamoios, Mogi-Bertioga, etc., e todas as vias similares dos estados do sudeste brasileiro, vão pagar eternamente um alto preço pela imprudência tecnológica cometida.
Com a construção da Rodovia dos Imigrantes, especialmente de sua pista descendente, foi implantado no país um novo paradigma de engenharia para obras viárias em regiões serranas tropicais. O expediente técnico utilizado para não se tocar nas encostas instáveis foi o privilegiamento de túneis e viadutos. Hoje, com o sucesso desse novo paradigma não se pode aceitar que novas estradas na Serra do Mar, como as anunciadas duplicações da Via Dutra na Serra das Araras, da Rio-Santos venham a cometer os absurdos erros antigos, devendo, para tanto, também desenvolver-se basicamente em túneis e viadutos.
Depois de muita resistência de seus contratantes e contratados, e por mérito exclusivo da pressão do meio técnico, as recentes duplicações da Rodovia dos Tamoios e da Rodovia Regis Bittencourt, na Serra do Cafezal (denominação local da Serra do Mar), Estado de São Paulo, adotaram virtuosamente os novos ensinamentos, sendo implantadas com base na opção por túneis e viadutos.
Há ainda alguns outros fatores que ajudam a explicar nossas constantes “quedas de barreira”, como também outras deficiências técnicas de nosso sistema viário:
– no caso de obras novas, a busca do máximo lucro possível, quando então são dispensados, ou limitados ao máximo, os estudos e diagnósticos geológico-geotécnicos necessários ao embasamento de um bom projeto para, ou irresponsavelmente se jogar com a sorte, ou então comodamente adotar-se a solução de engenharia genérica que mais esteja em moda naquele momento, qualquer que seja o fenômeno a ser enfrentado.
– no caso de obras já antigas, o que mais comumente ocorre, geralmente por uma economia nada inteligente, é o completo abandono dos indispensáveis serviços de monitoramento e conservação das obras. Via de regra fenômenos de “quedas de barreiras” dão “avisos” e sinais de sua provável futura ocorrência. Esses sinais, trincas nos terrenos, rachaduras nos sistemas de drenagem, abatimentos na pista, alagamento a montante de aterros, etc., permitiriam aos responsáveis pela obra uma eficiente atuação preventiva sempre capaz de evitar o acidente. Como um exemplo gritante, aterros que “rodam”, levando um trecho da pista consigo, certamente têm suas galerias/bueiros de drenagem de ligação montante-jusante, ou desde o início mal dimensionadas ou mal construídas, ou progressivamente entulhadas (obstruídas) com galhos, restos vegetais, solos e pedras, perdendo então sua capacidade de vazão. Fatos perfeitamente visíveis e detectáveis pelo mais simples serviço permanente de vistorias rotineiras.
– um outro aspecto importante está em um problemático processo de perda da competência técnica por parte de nossos órgãos públicos. Quase sempre essa perda de competência está associada à questão salarial e à escassez de verbas para atividades mínimas elementares. Acrescente-se a isso um fator de enorme gravidade, qual seja, até como decorrência, o esquecimento de um sentimento que tantas glórias e êxitos trouxe à engenharia pública nacional, o “espírito de missão”. Diferentemente da dedicação e do amor com que os técnicos antigos cuidavam de suas responsabilidades, hoje, ressalvadas meritórias e heroicas exceções, predominam o desencanto, que leva ao acomodamento, o “vire-se como der”, ou até o descaso e o mais preocupar-se com atividades privadas paralelas. Acresça-se a isso a comum ocorrência de desvios funcionais associados à adoção da prática de terceirização de serviços de conservação. Obviamente, todos esses aspectos ligados direta ou indiretamente ao desmonte tecnológico e financeiro a que os órgãos públicos responsáveis por nossas obras de infraestrutura vêm sendo já há anos submetidos pelos vários governos que se sucedem.
Na área privada consolida-se a tendência das grandes e médias empresas trabalharem com a generalizada disposição de não manter em seus quadros equipes técnicas permanentes, o que implica também na perda da memória técnica e da experiência acumulada.
Enfim, em tempos onde se discute exaustivamente a necessidade do retorno dos investimentos públicos e privados em obras de infraestrutura, esses fatos todos estão a sacudir nossa racionalidade: investimentos para construção de novas obras e recuperação de obras antigas são fundamentais e indispensáveis, mas serão investimentos realizados com baixíssima inteligência se não se fizerem obrigatoriamente acompanhar de exigências explicitadas e especificadas para o emprego da melhor técnica, antes, durante e após a inauguração da obra, ou seja, no projeto, na implantação e na conservação da obra.
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
• Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas
• Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
• Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente
• Articulista do EcoDebate
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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