A "VENDA CASADA" NAS REDES SOCIAIS.

 artigo de opinião

A ‘venda casada’ nas redes sociais, artigo de Montserrat Martins

Vários autores já constataram (desde Freud em “Psicologia das Massas”) que o comportamento das pessoas em grupo tende a inibir a autocrítica individual

Venda casada” é o armazém lhe obrigar a comprar feijão junto, se você precisa de arroz, o que aconteceu durante o governo Sarney, quando produtos escasseavam, para aumentar os preços. Foi vedada a venda casada de produtos, mas ela segue existindo no campo das ideias,nas redes sociais: se você acredita em uma coisa é pressionado para “comprar” outras ideias pelos grupos que as difundem.

Se você é contra o governo da Venezuela, por exemplo, teria de ser a favor de uma ditadura militar no Brasil, sendo que, aliás, o que a Venezuela vive é uma espécie de ditadura militar. Se você é a favor das vacinas, tem de ser a favor da descriminalização da maconha? Se você defende mais policiamento nas ruas, porque temos sérios problemas de segurança, tem de negar que o racismo e a homofobia são problemas graves da nossa sociedade? Porque situações diferentes são colocadas em “pacotes ideológicos” para aderir, como uma venda casada de ideias?

As polêmicas sobre comportamento estão no auge, no Brasil, mas isso é relativamente recente aqui, cresceram nos últimos 20 anos, enquanto já são debatidas com veemência há uns 60 anos nos Estados Unidos e na Europa. Isso você pode constatar nos diálogos dos filmes, desde que eclodiram movimentos sociais como os “hippies” americanos ou o famoso “maio de 68” europeu.

Se for contra o aborto, você tem de ser a favor da pena de morte? Os debates vão às últimas consequências, você tem de ter opinião sobre tudo, tem de formar convicção não só sobre costumes, mas até situações de vida ou morte. Mas por que as pessoas teriam de “aderir em bloco” a esses conjuntos de pautas estabelecidos por ideologias políticas, porque não poderiam acreditar em algumas demandas de algum grupo e em outras de outros grupos? Por que a pressão pela adesão incondicional?

A resposta é que isso funciona, em grande parte, pela necessidade de pertencimento, já amplamente estudada por psiquiatras e psicólogos. Vários autores já constataram (desde Freud em “Psicologia das Massas”) que o comportamento das pessoas em grupo tende a inibir a autocrítica individual, o que é um perigo, por exemplo, nos estádios de futebol, ou na formação de grupos que marcam brigas pela internet.

Se cada assunto fosse debatido por si mesmo, sem a cobrança de adesão a pautas preestabelecidas, talvez fosse mais fácil evoluirmos, chegarmos a alguns consensos sociais mínimos. Mas temos de ser aceitos pelo nosso grupo, mesmo que essa necessidade seja inconsciente.

Montserrat Martins, Médico Psiquiatra

 

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

O FUTURO DA FECUNDIDADE E DA NATALIDADE NO BRASIL.

O futuro da fecundidade e da natalidade no Brasil, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

Não se deve desesperar com a baixa fecundidade. Suas consequências são menos cataclísmicas do que frequentemente se supõe

A população brasileira estava pouco acima de 50 milhões de habitantes em 1950, passou para cerca de 214 milhões em 2022, deve atingir o pico de 231 milhões em 2047 e decrescer para algo em torno de 184 milhões de habitantes em 2100.

Taxa de Fecundidade Total (TFT) se manteve alta durante os primeiros 465 anos da história brasileira, se mantendo sempre acima de 6 filhos por mulher. Esta alta taxa servia para se contrapor às altas taxas de mortalidade. Porém, o aumento da sobrevivência dos filhos possibilitou que as famílias reduzissem as taxas de fecundidade, se adaptando à nova etapa do desenvolvimento brasileiro, caracterizada pela urbanização e industrialização.

O gráfico abaixo, com dados das projeções da Divisão de População da ONU, mostra que a TFT brasileira começou a cair na segunda metade da década de 1960 e chegou abaixo do nível de reposição (2,1 filhos por mulher) no início dos anos 2000. No restante do século XXI as projeções indicam uma TFT entre 1,6 e 1,7 filhos por mulher. O número de mulheres em idade reprodutiva (15 a 49 anos) era de 13 milhões em 1950, chegou a 57,6 milhões em 2022 e deve cair para 32 milhões em 2100. Portanto, enquanto a taxa de fecundidade caia, o número de mulheres em idade reprodutiva aumentava nas últimas décadas do século XX.
mulheres em idade reprodutiva e taxa de fecundidade brasil

 

Em consequência, o número de nascimentos que estava em torno de 2,5 milhões de bebês em 1950, aumentou até o quinquênio 1981-1985 e começou a cair a partir de 1986. O gráfico abaixo, também com dados das projeções da Divisão de População da ONU, mostra que o número de nascimentos chegou a 2,7 milhões no início da década de 2020 e deve ficar abaixo de 2,5 milhões de nascimentos por volta de 2030. Desta forma, o número anual de nascimentos nas 7 últimas décadas do atual século deve ser sempre menor do que o número de bebês nascidos em 1950. O número de nascimentos deve ficar em 1,5 milhão de bebês em 2100.

número de nascimentos no Brasil

 

Durante cerca de 500 anos, o Brasil teve altas taxas de fecundidade, uma estrutura etária jovem e um elevado ritmo de crescimento populacional. Mas com a transição demográfica tudo isto mudou e, daqui para a frente, serão outros quinhentos, pois o país terá baixas taxas de fecundidade e um número de filhos cada vez menor.

O envelhecimento populacional e o decrescimento demográfico serão, inexoravelmente, as novas tendências que prevalecerão nos cenários futuros do Brasil.

Em geral, o declínio da fecundidade provoca medo entre políticos, religiosos e investidores. Eles se preocupam com sistemas de pensões, saúde e crescimento econômico. Até o Papa Francisco se pronunciou dizendo que ter animais de estimação em vez de filhos era uma atitude egoísta. No entanto, não se deve desesperar com a baixa fecundidade. Suas consequências são menos cataclísmicas do que frequentemente se supõe, como mostrou o demógrafo Vegard Skirbekk, no livro “Decline and Prosper! Changing Global Birth Rates and the Advantages of Fewer Children” (2022).

Skirbekk considera que a fecundidade muito baixa pode causar tensões fiscais e afetar negativamente o crescimento econômico. Contudo, uma taxa de fecundidade total (TFT) entre 1,5 e 2 filhos por mulher favorece a autonomia reprodutiva, a igualdade de gênero e o avanço da educação e do mercado de trabalho.

Baixa fecundidade favorece os investimentos na qualidade de vida das crianças e ajuda a minimizar o impacto humano no planeta.

Além disso, segundo o autor, é hora de aceitar que a baixa fertilidade veio para ficar. As políticas públicas é que precisam se adaptar a essa nova realidade.

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

Referências:

SKIRBEKK, Vegard. Decline and Prosper! Changing Global Birth Rates and the Advantages of Fewer Children, Palgrave Macmillan, 2022

ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI (com a colaboração de GALIZA, F), ENS, maio de 2022
https://ens.edu.br:81/arquivos/Livro%20Demografia%20e%20Economia_digital_2.pdf

 

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

sábado, 4 de março de 2023

LIGAÇÃO ENTRE MUDANÇA CLIMÁTICA E SEGURANÇA HÍDRICA É CADA VEZ MAIS CLARA.

Ligação entre mudança climática e segurança hídrica é cada vez mais clara

As mudanças climáticas já estão alterando o ciclo da água, mudando a disponibilidade, confiabilidade e qualidade da água disponível para beber, agricultura, indústria e meio ambiente

Por Claudia Caruana*, SciDev.Net

A disponibilidade e a qualidade da água serão cada vez mais afetadas pelas mudanças climáticas , colocando as comunidades vulneráveis em risco, a menos que medidas sejam tomadas agora para construir resiliência, alertam os pesquisadores.

Melhorar o acesso às informações climáticas locais e medir o impacto do clima no abastecimento de água é essencial para o avanço da segurança hídrica conforme as temperaturas globais aumentam, de acordo com o Relatório de Segurança da Água para Resiliência Climática (Water Security for Climate Resilience Report), divulgado este mês pelo programa de pesquisa REACH liderado pela Universidade de Oxford.

Diz que embora o efeito do clima nas secas e inundações seja bem conhecido, os impactos nas vidas e meios de subsistência a nível da comunidade são frequentemente contornados.

“O impacto das mudanças climáticas nos sistemas hídricos continuará a aumentar, ameaçando a vida das pessoas e sua qualidade de vida, ameaçando a produtividade econômica dos países.” Katrina Charles, codiretora do programa REACH da Universidade de Oxford

A autora principal do relatório, Katrina Charles, professora e pesquisadora sênior da Universidade de Oxford e codiretora do REACH, disse à SciDev.Net que os pesquisadores trabalharam para entender “como podemos melhorar a segurança da água para todos, incluindo os mais vulneráveis pessoas”.

“Melhorar a segurança da água ajudará a mitigar os impactos das mudanças climáticas”, disse ela, acrescentando: “Sem isso, as pessoas ficarão muito vulneráveis à escassez de água, às mudanças na qualidade da água, às inundações.

“[A pesquisa] nos ajudou a entender […] não apenas os impactos de grandes eventos como enchentes e secas, mas os impactos muito mais complexos das mudanças no clima na vida das pessoas.”

O relatório cita o exemplo de Bangladesh, onde condições climáticas mais extremas levarão à piora da qualidade da água, com impactos na saúde das pessoas à medida que chuvas intensas aumentam a contaminação da água potável. Em períodos mais secos, há menos diluição das águas residuais industriais nos rios, expondo também as pessoas a concentrações perigosas de metais pesados.

Charles diz que as mudanças climáticas já estão alterando o ciclo da água, mudando a disponibilidade, confiabilidade e qualidade da água disponível para beber, agricultura, indústria e meio ambiente.

“O impacto das mudanças climáticas nos sistemas hídricos continuará aumentando, ameaçando a vida das pessoas e sua qualidade de vida, ameaçando a produtividade econômica dos países”, acrescentou. “Precisamos agir agora para melhorar a segurança da água para ajudar a melhorar a resiliência climática.”

A pesquisa surge no momento em que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU alertou em um relatório histórico esta semana que eventos climáticos extremos, como ondas de calor, enchentes e secas estão se tornando mais frequentes e intensos.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o UNICEF também alertaram recentemente que o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável seis das Nações Unidas, para o acesso universal à água potável e saneamento até 2030, será perdido, a menos que a taxa de progresso quadruplique.

Decisões baseadas em dados

O relatório REACH enfatiza que os riscos climáticos e hídricos são experimentados de forma desigual, com complexos mecanismos físicos, políticos, sociais, comportamentais e ambientais que influenciam a segurança hídrica das comunidades urbanas e rurais.

Os pesquisadores dizem que, embora “as instituições de água estejam trabalhando em prol da resiliência climática para gerenciar os riscos dos choques e da variabilidade climática […] mais precisa ser feito para integrar a resiliência climática às políticas e práticas da água”.

Os autores recomendam que uma análise de risco climático mais granular ou local seja realizada para garantir que os dados sejam relevantes para comunidades específicas. E eles sugerem melhorar as métricas para monitorar a resiliência climática para rastrear o progresso e informar as decisões de investimento.

Novos modelos institucionais também são necessários para melhorar a segurança da água e facilitar decisões resilientes ao clima, dizem eles.

Derek Vollmer, diretor sênior de ciência de água doce da Conservation International, diz que o relatório é importante por causa de sua ênfase na natureza local das questões de segurança hídrica.

“As [três] recomendações principais do relatório são um bom começo”, disse ele. “Cada um deles implica pensamento e investimentos de longo prazo, mas com o objetivo de construir capacidade local duradoura.

“A mudança climática está introduzindo mais incerteza em nossos sistemas de água. Os tomadores de decisão locais e regionais precisarão ser equipados com as informações e as ferramentas para explorar medidas de adaptação e ter um ambiente de política de apoio que lhes dê a flexibilidade para gerenciar seus recursos para resiliência. ”

A ligação entre mudança climática e segurança hídrica está se tornando cada vez mais clara, de acordo com Vollmer. Mas ele acrescentou: “Como os autores enfatizam, esses impactos serão diferentes entre locais, estações e até mesmo subpopulações dentro de um lugar específico.

“Investir recursos em modelos climáticos regionais mais precisos é necessário para fornecer previsões robustas para precipitação e fluxo de água, que são blocos de construção no planejamento de resiliência.”

 

Henrique Cortez *, tradução e edição.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

A IMPORTÂNCIA DOS " RIOS VOADORES " PARA O CLIMA.

rios voadores
O caminho dos rios voadores. Fonte: Projeto Rios Voadores

A importância dos ‘rios voadores’ para o clima

Os “rios voadores” são correntes de vapor de água na atmosfera que se movem pela região da Amazônia e transportam grandes quantidades de água doce da bacia amazônica para outras regiões do continente sul-americano, incluindo a região sudeste e sul do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.

A Amazônia é a principal fonte dos “rios voadores“, que são correntes de vapor de água na atmosfera que se movem pela região e transportam grandes quantidades de água doce da bacia amazônica para outras regiões do continente sul-americano.

Esses rios voadores são formados a partir da evapotranspiração da floresta amazônica, que é o processo pelo qual as plantas liberam vapor de água na atmosfera através da transpiração e que é em grande parte causado pela intensa evaporação da umidade do solo e da vegetação da região amazônica. Esse vapor de água sobe para a atmosfera e é transportado pelo vento, formando as correntes que se movem pela região e que podem viajar por milhares de quilômetros.

Esses rios voadores são extremamente importantes para o clima da região, pois ajudam a regular o ciclo hidrológico, ou seja, a distribuição de água na natureza, em grande parte da América do Sul. A umidade transportada pelos rios voadores é fundamental para manter a umidade do solo, irrigar as plantações, alimentar rios e lagos, além de fornecer água para consumo humano e animal.

Além disso, os rios voadores também têm um impacto significativo no clima da região, ajudando a equilibrar as temperaturas e os níveis de umidade em diferentes áreas. A umidade fornecida pelos rios voadores ajuda a prevenir a desertificação e a manter a biodiversidade na região.

No entanto, a degradação ambiental na região amazônica, como a desflorestação e a mudança no uso da terra, podem afetar significativamente a quantidade de vapor de água transportado pelos rios voadores, causando mudanças climáticas negativas na região e em outras áreas da América do Sul.

Assim, a preservação da floresta amazônica é essencial para manter o equilíbrio ecológico e climático da região e do continente como um todo, além de ser vital para a manutenção da biodiversidade e dos recursos hídricos na região.

 

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394 

GROTAS, FEIÇÕES DE RELEVO VEDADAS À URBANIZAÇÃO.

Grotas, Feições de Relevo Vedadas à Urbanização

Geol. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

ARS Geologia Ltda – diretor-presidente; ex-pesquisador Senior V do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo – Brasil

RESUMO

As cabeceiras de drenagem tipo “grotas” devem, por seu natural dinamismo geomorfológico, sua natural instabilidade geotécnica e sua relevância hidrológica e ambiental, ser terminantemente vedadas à urbanização, do que se ressalta a importância de sua correta caracterização morfológica em campo e de seu registro cartográfico.

Introdução. A questão conceitual

Assume-se nesse artigo o entendimento empírico e popular da grota como uma cabeceira de drenagem em forma aproximada de ferradura, morfologicamente côncava, com paredes íngremes em sua parte superior e hidrogeologicamente ativa, ou seja, associada sempre a uma nascente que dá origem a um curso d’água perene ou intermitente.

Grotas como áreas de risco

A correlação de grotas com riscos geológicos é já conhecida do meio profissional que lida com áreas de risco, em especial em áreas urbanas. Entretanto, a continuidade da ocupação dessas feições geomorfológicas, com notável incidência de graves acidentes, está a exigir um posicionamento mais resolutivo e firme do meio técnico quanto ao seu destino urbano, o que significaria, no entendimento do autor, que se vá além dos cuidados e alertas sobre a suscetibilidade a deslizamentos das citadas feições, e se avance para a radical proibição de sua ocupação por edificações e infra-estruturas urbanas.

Cabeceiras de drenagem e grotas – Dinâmica evolutiva

As cabeceiras de drenagem, lato sensu, são entendidas como o segmento superior de caminhos de drenagem que escoam as águas pluviais em vertentes e encostas para seus níveis hidrológicos de base. Seu desenvolvimento dá-se normalmente por processo erosivo decorrente do escoamento de águas pluviais ao longo do tempo geológico. Trata-se de um processo progressivo de sulcamento e ravinamento que tem sua intensidade erosiva controlada pela pluviosidade/condições climáticas, pela declividade da encosta, pela resistência dos solos à erosão, pela cobertura vegetal, por suas relações com o lençol freático local. A ação humana (concentração de caminhos d’água, desmatamento, etc.) age sempre como elemento potencializador da evolução das cabeceiras de drenagem.

Do ponto de vista geomorfológico as cabeceiras de drenagem cumprem papel fundamental no processo de dissecamento erosivo de encostas e vertentes.

As cabeceiras de drenagem podem situar-se em qualquer termo da encosta, estancando seu desenvolvimento de montante em faixa topográfica próxima ao divisor de águas.

ocupação de grotas

Ocupação de grotas: inevitáveis acidentes e estúpidas perdas de vida. Notar que até conjuntos condomínios habitacionais públicos instalam-se em grotas em busca de menor preço de metro quadrado de terreno. Santo André – SP. Foto do autor.

Tipologia. Cabeceiras de drenagem secas e Grotas.

As feições de relevo associadas a drenagens de encostas podem ser classificadas de variadas maneiras, em dependência dos parâmetros físicos considerados. Para a finalidade desse artigo técnico há interesse apenas em sua classificação quanto à dinâmica de sua evolução. São então assim consideradas as Cabeceiras de Drenagem Secas, onde o processo de evolução corresponde ao simples ravinamento erosivo por águas pluviais, e as Grotas, onde o processo de evolução está também associado à surgência de água subterrânea. As cabeceiras de bossorocas constituem um tipo especial de grota.

cabeceiras de drenagem secas e grotas

As grotas são tipos especiais de cabeceiras de drenagem em que o ravinamento atingiu o lençol freático ou um lençol subterrâneo suspenso local. A partir dessa condição a evolução da cabeceira se acelera em processo semelhante ao das bossorocas, ou seja, em uma dinâmica remontante alimentada pela combinação de encharcamento e solapamentos da base da testa da cabeceira, sendo os sedimentos produzidos transportados por enxurradas pluviais para jusante. Não é rara a existência de fenômenos de piping no ponto inicial da nascente (pé da testa da grota), condição que colabora para a potencialização do solapamento da testa. As grotas são fruto, portanto, de uma combinação fenomenológica de águas de superfície e águas profundas. Ao longo desse processo a testa da grota evolui em altura, concavidade e largura, podendo conter mais de uma frente de evolução.

A grota constitui a feição mais ativa e acelerada de evolução do relevo em sua região, o que se traduz em sua alta suscetibilidade a movimentos de massa.

As grotas formam-se nos variados tipos de relevo. Nos relevos mais suaves e arenosos sua representação mais destacada é a bossoroca. Nos relevos medianamente acidentados, como os mais fortemente colinosos, mar de morros, morros e morrotes isolados, serras restritas… as grotas são conhecidas como tal, constituindo feições naturais típicas e plenamente integradas na cultura popular.

bossoroca em evolução

Bossoroca em evolução. Notar ravinamentos secundários que tendem a se transformar em novas bossorocas.

Foto Fazenda Glória, Uberlândia MG.

grota com densa urbanização

Grota com densa urbanização. Nova Friburgo RJ. Foto HCMiranda.

grota com densa urbanização

Quantos ainda precisarão morrer? Foto FAEP.

Grotas dormentes. Reativação antrópica da dinâmica evolutiva. Trabalhos de recuperação

Dois fatores especialmente contribuem para determinar a intensidade maior ou menor da dinâmica evolutiva das grotas, o domínio florestal da grota e o volume de águas pluviais que se direcionam da região a montante para o interior da grota.

O domínio florestal é o principal fator de inibição da dinâmica evolutiva das grotas. Esse domínio florestal acontece em períodos geológicos de condições climáticas favoráveis. Em períodos geológicos mais áridos com recuo florestal e chuvas torrenciais temporalmente concentradas a dinâmica evolutiva das grotas mostra-se acentuadamente acelerada. Na maior parte da extensão do território brasileiro predominam hoje condições climáticas favoráveis ao desenvolvimento de concentrações florestais nas grotas, considerando que essas feições se destacam em sua região por manter um nível maior de umidade dos solos.

É assim comum em regiões que guardam suas características naturais que as grotas encontrem-se relativamente estabilizadas, tanto pela prevalência do domínio florestal como pela dispersão das águas pluviais superficiais de montante. Pode-se considerar que nesta condição as grotas tem sua dinâmica evolutiva praticamente contida, mas em condição latente. Ou seja, na dependência de alteração dos dois fatores estabilizadores certamente essa dinâmica será reativada.

É justamente o que normalmente sucede em regiões onde a atividade humana, seja em práticas rurais de agricultura e pecuária, seja em práticas tipicamente urbanas, implica notoriamente em desmatamentos e concentração de fluxos de escoamento de águas de chuva.

Por decorrência, as medidas essenciais para a estabilização dos processos evolutivos de um grota são a imediata interrupção do acesso de escoamentos de águas de chuva em sua crista, sua limpeza e seu reflorestamento.

reativação da dinâmica evolutiva de grotas por ocupações de cabeceira

Reativação da dinâmica evolutiva de grotas por ocupações de cabeceira. Santo André SP. Foto do autor.

bossoroca

Bossoroca, que teve sua “cabeça” aterrada para receber ocupação urbana, reativada pela concentração de fluxos de água profundos e superficiais. Monte Alto SP. Foto Jornal Tempo.

As grotas como áreas de risco à urbanização

Como já referido, as grotas constituem feições de relevo extremamente susceptíveis a deslizamentos. Essa condição é sumamente agravada pelo fato das grotas se apresentarem ao moradores próximos como destino fácil para todos os tipos de resíduos urbanos: lixo doméstico, entulhos de construção civil, animais mortos, carcaças de equipamentos, etc. Ou seja, quando a própria grota recebe edificações essas se instalam em condições geológicas e geotécnicas extremamente críticas quanto a sua estabilidade. Cumpre ainda considerar a temerária cultura técnica, totalmente inadequada para terrenos declivosos, de se cortar a encosta para a obtenção de um platô plano a receber a edificação.

Com essas características as grotas, desgraçadamente, tem se oferecido à população de baixa renda como área atraente pelo baixo custo do metro quadrado e de aluguéis. Acidentes gravíssimos, com estúpidas perdas de vida, não se fazem por esperar.

Não há recomendação técnica plausível e financeiramente aceitável para operações de estabilização geotécnica que possam tornar as grotas terrenos seguros para a urbanização. A radical proibição de urbanização habitacional das grotas se impõe como a solução mais acertada para o problema. Tal decisão deve sem sombra de nenhuma dúvida ser definitiva e claramente expressa pelas Cartas Geotécnicas como áreas não ocupáveis. E na inexistência dessas cartas, pelo Plano Diretor e pelas leis municipais de uso e zoneamento do solo urbano.

conjunto residencial construído em cabeceira de grota

Conjunto Residencial da CDHU construído em cabeceira de grota contribuiu com a reativação de sua dinâmica evolutiva.

Franco da Rocha SP. Foto do autor.

As grotas no contexto ambiental

As grotas, por suas nascentes, constituem preciosos mananciais de água para consumo humano, além de suas singulares funções ecológicas como locus privilegiado de espécies botânicas de grande valor e de abrigo, alimentação e dessedentação de enorme diversidade animal. Só por esses fatos, e pela simples aplicação das disposições do Código Florestal para a delimitação de Áreas de Proteção Ambiental – APPs em torno de nascentes e olhos d’água (círculo de raio de 50m) já deveriam ser consideradas não urbanizáveis. Essa proteção, infelizmente, não tem sido adotada e esses mananciais têm sido sistematicamente engolfados pelo implacável crescimento urbano por espraiamento geográfico, típico das cidades brasileiras, e utilizados como local de disposição irregular de resíduos urbanos e/ou de implantação de precárias e arriscadas moradias populares.

 

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Constante avanço na ocupação de grotas. Cotia SP, imagens Google Earth de 2012 (acima) e 2022(abaixo).

O melhor e mais virtuoso destino urbano para as grotas

Seja no âmbito de políticas públicas de gestão do risco geológico, seja no âmbito de políticas de proteção ambiental e gestão de recursos hídricos, o melhor destino urbano para as grotas está em sua transformação em parques florestados entregues ao lazer e atividades de educação da população.

Considerando as condições de risco, a delimitação do perímetro não ocupável deverá necessariamente incluir a montante da crista frontal e das cristas laterais uma faixa de terreno de largura em torno de 40 metros, uma vez que a ocupação dessa faixa implica em decorrências negativas para a estabilidade geotécnica da testa da grota e para a boa qualidade das águas nascentes.

Para o caso de grotas já geologicamente e ambientalmente degradadas, e que venham a ser desocupadas como decorrência da aplicação de políticas públicas de gestão de riscos geológicos, faz-se imprescindível, para sua transformação em parques florestados, uma operação anterior de recuperação sanitária e geotécnica.

No âmbito desse trabalho de recuperação, destaca-se o objetivo de limpeza do material superficial solto (terra, entulho, lixo…), aplicação de medidas de inibição de deslizamentos e eventuais estabilizações geotécnicas localizadas, o que envolveria os seguintes itens:

  1. imediata interrupção do direcionamento e acesso de escoamentos de águas pluviais para o interior da cabeceira da grota. Essa medida é de caráter essencial por ser drasticamente inibidora da ativação da dinâmica evolutiva das grotas;

  2. remoção cuidadosa dos materiais soltos acumulados na grota (terra, entulho de construção civil, lixo doméstico, resíduos de toda natureza);

  3. as intervenções deverão ser executadas manualmente e/ou por equipamento leve. Não se deve abrir acesso para equipamento de maior porte. A idéia é não interferir no solo natural local, somente no material sobre ele lançado ao longo do tempo;

  4. no caso de eventual presença de vegetação de maior porte, sempre que possível evitar a remoção;

  5. especificamente junto ao local das nascentes de água, a remoção de materiais soltos é especialmente importante, de forma que esse “olho d’água” fique totalmente livre, desobstruído e descontaminado;

  6. os trabalhos devem se desenvolver de montante para jusante. Para facilitar o trabalho de limpeza e remoção sugere-se a utilização de calhas de madeira para a condução do material das cotas superiores para a base do talude;

  7. assim que os taludes naturais superiores vão sendo liberados (limpos de material solto) deve-se proceder sua proteção vegetal. Como, ao final, espera-se que essa área seja ocupada por um bosque florestado, sugere-se a utilização inicial de hidrossemeadura (no caso com predominância de espécies leguminosas locais) seguida de plantio direto de mudas de árvores e arbustos naturais da floresta original da região. Dentro desse procedimento de montante para jusante, quando a limpeza estiver sendo executada junto ao ponto mais baixo do talude, toda e extensão superior já estará razoavelmente protegida contra a erosão. Caso se veja como necessário, deve-se considerar a instalação de sistema de drenagem para águas pluviais.

Bibliografia de referência

Coelho Netto, A. L. – Evolução de Cabeceiras de Drenagem no Médio Vale do Rio Paraíba do Sul (SP/RJ): a Formação e o Crescimento da Rede de Canais sob Controle Estrutural. Revista Brasileira de Geomorfologia, Ano 4, Nº 2 (2003) 69-100.

Fruet, J. G. W. – Análise da estrutura e funcionamento de cabeceiras de drenagem : subsídios para a conservação de nascentes. Tese Doutorado Universidade Estadual de Maringá PR, 2021.

Marques de Castro, C et al – Tipologia de Processos Erosivos Canalizados e Escorregamentos – Proposta Para Avaliação de Riscos Geomorfológicos Urbanos em Barra Mansa (RJ). Anuário do Instituto de Geociências – UFRJ Volume 25 / 2002.

Moura, J. R.S. et al – Geometria do relevo e estratigrafia do quaternário como base à tipologia de cabeceiras de drenagem em anfiteatro – Médio vale do rio Paraíba do Sul. Revista Brasileira de Geociências 21 (3): 255-265, setembro de 1991.

Ridenti Júnior, J. L. et al – Cabeceiras de drenagem, uma unidade de analise na elaboracao de cartas geotecnicas. In: 2 Simposio Brasileiro de Cartografia Geotecnica, 1996, 1996. v. 1. p. 185-194.

Santos, A. R. – Manual básico para a elaboração e uso da Carta Geotécnica. Livro. Editora Rudder. São Paulo, 2014

Geol. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

  • Ex-Diretor da Divisão de Minas e Geologia Aplicada e Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas

  • Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”

  • Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente e Diretor-presidente da empresa ARS Geologia Ltda.

  • Colaborador e Articulista do EcoDebate.
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394