Grotas, Feições de Relevo Vedadas à Urbanização
Geol. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
ARS Geologia Ltda – diretor-presidente; ex-pesquisador Senior V do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo – Brasil
RESUMO
As cabeceiras de drenagem tipo “grotas” devem, por seu natural dinamismo geomorfológico, sua natural instabilidade geotécnica e sua relevância hidrológica e ambiental, ser terminantemente vedadas à urbanização, do que se ressalta a importância de sua correta caracterização morfológica em campo e de seu registro cartográfico.
Introdução. A questão conceitual
Assume-se nesse artigo o entendimento empírico e popular da grota como uma cabeceira de drenagem em forma aproximada de ferradura, morfologicamente côncava, com paredes íngremes em sua parte superior e hidrogeologicamente ativa, ou seja, associada sempre a uma nascente que dá origem a um curso d’água perene ou intermitente.
Grotas como áreas de risco
A correlação de grotas com riscos geológicos é já conhecida do meio profissional que lida com áreas de risco, em especial em áreas urbanas. Entretanto, a continuidade da ocupação dessas feições geomorfológicas, com notável incidência de graves acidentes, está a exigir um posicionamento mais resolutivo e firme do meio técnico quanto ao seu destino urbano, o que significaria, no entendimento do autor, que se vá além dos cuidados e alertas sobre a suscetibilidade a deslizamentos das citadas feições, e se avance para a radical proibição de sua ocupação por edificações e infra-estruturas urbanas.
Cabeceiras de drenagem e grotas – Dinâmica evolutiva
As cabeceiras de drenagem, lato sensu, são entendidas como o segmento superior de caminhos de drenagem que escoam as águas pluviais em vertentes e encostas para seus níveis hidrológicos de base. Seu desenvolvimento dá-se normalmente por processo erosivo decorrente do escoamento de águas pluviais ao longo do tempo geológico. Trata-se de um processo progressivo de sulcamento e ravinamento que tem sua intensidade erosiva controlada pela pluviosidade/condições climáticas, pela declividade da encosta, pela resistência dos solos à erosão, pela cobertura vegetal, por suas relações com o lençol freático local. A ação humana (concentração de caminhos d’água, desmatamento, etc.) age sempre como elemento potencializador da evolução das cabeceiras de drenagem.
Do ponto de vista geomorfológico as cabeceiras de drenagem cumprem papel fundamental no processo de dissecamento erosivo de encostas e vertentes.
As cabeceiras de drenagem podem situar-se em qualquer termo da encosta, estancando seu desenvolvimento de montante em faixa topográfica próxima ao divisor de águas.
Ocupação de grotas: inevitáveis acidentes e estúpidas perdas de vida. Notar que até conjuntos condomínios habitacionais públicos instalam-se em grotas em busca de menor preço de metro quadrado de terreno. Santo André – SP. Foto do autor.
Tipologia. Cabeceiras de drenagem secas e Grotas.
As feições de relevo associadas a drenagens de encostas podem ser classificadas de variadas maneiras, em dependência dos parâmetros físicos considerados. Para a finalidade desse artigo técnico há interesse apenas em sua classificação quanto à dinâmica de sua evolução. São então assim consideradas as Cabeceiras de Drenagem Secas, onde o processo de evolução corresponde ao simples ravinamento erosivo por águas pluviais, e as Grotas, onde o processo de evolução está também associado à surgência de água subterrânea. As cabeceiras de bossorocas constituem um tipo especial de grota.
As grotas são tipos especiais de cabeceiras de drenagem em que o ravinamento atingiu o lençol freático ou um lençol subterrâneo suspenso local. A partir dessa condição a evolução da cabeceira se acelera em processo semelhante ao das bossorocas, ou seja, em uma dinâmica remontante alimentada pela combinação de encharcamento e solapamentos da base da testa da cabeceira, sendo os sedimentos produzidos transportados por enxurradas pluviais para jusante. Não é rara a existência de fenômenos de piping no ponto inicial da nascente (pé da testa da grota), condição que colabora para a potencialização do solapamento da testa. As grotas são fruto, portanto, de uma combinação fenomenológica de águas de superfície e águas profundas. Ao longo desse processo a testa da grota evolui em altura, concavidade e largura, podendo conter mais de uma frente de evolução.
A grota constitui a feição mais ativa e acelerada de evolução do relevo em sua região, o que se traduz em sua alta suscetibilidade a movimentos de massa.
As grotas formam-se nos variados tipos de relevo. Nos relevos mais suaves e arenosos sua representação mais destacada é a bossoroca. Nos relevos medianamente acidentados, como os mais fortemente colinosos, mar de morros, morros e morrotes isolados, serras restritas… as grotas são conhecidas como tal, constituindo feições naturais típicas e plenamente integradas na cultura popular.
Bossoroca em evolução. Notar ravinamentos secundários que tendem a se transformar em novas bossorocas.
Foto Fazenda Glória, Uberlândia MG.
Grota com densa urbanização. Nova Friburgo RJ. Foto HCMiranda.
Quantos ainda precisarão morrer? Foto FAEP.
Grotas dormentes. Reativação antrópica da dinâmica evolutiva. Trabalhos de recuperação
Dois fatores especialmente contribuem para determinar a intensidade maior ou menor da dinâmica evolutiva das grotas, o domínio florestal da grota e o volume de águas pluviais que se direcionam da região a montante para o interior da grota.
O domínio florestal é o principal fator de inibição da dinâmica evolutiva das grotas. Esse domínio florestal acontece em períodos geológicos de condições climáticas favoráveis. Em períodos geológicos mais áridos com recuo florestal e chuvas torrenciais temporalmente concentradas a dinâmica evolutiva das grotas mostra-se acentuadamente acelerada. Na maior parte da extensão do território brasileiro predominam hoje condições climáticas favoráveis ao desenvolvimento de concentrações florestais nas grotas, considerando que essas feições se destacam em sua região por manter um nível maior de umidade dos solos.
É assim comum em regiões que guardam suas características naturais que as grotas encontrem-se relativamente estabilizadas, tanto pela prevalência do domínio florestal como pela dispersão das águas pluviais superficiais de montante. Pode-se considerar que nesta condição as grotas tem sua dinâmica evolutiva praticamente contida, mas em condição latente. Ou seja, na dependência de alteração dos dois fatores estabilizadores certamente essa dinâmica será reativada.
É justamente o que normalmente sucede em regiões onde a atividade humana, seja em práticas rurais de agricultura e pecuária, seja em práticas tipicamente urbanas, implica notoriamente em desmatamentos e concentração de fluxos de escoamento de águas de chuva.
Por decorrência, as medidas essenciais para a estabilização dos processos evolutivos de um grota são a imediata interrupção do acesso de escoamentos de águas de chuva em sua crista, sua limpeza e seu reflorestamento.
Reativação da dinâmica evolutiva de grotas por ocupações de cabeceira. Santo André SP. Foto do autor.
Bossoroca, que teve sua “cabeça” aterrada para receber ocupação urbana, reativada pela concentração de fluxos de água profundos e superficiais. Monte Alto SP. Foto Jornal Tempo.
As grotas como áreas de risco à urbanização
Como já referido, as grotas constituem feições de relevo extremamente susceptíveis a deslizamentos. Essa condição é sumamente agravada pelo fato das grotas se apresentarem ao moradores próximos como destino fácil para todos os tipos de resíduos urbanos: lixo doméstico, entulhos de construção civil, animais mortos, carcaças de equipamentos, etc. Ou seja, quando a própria grota recebe edificações essas se instalam em condições geológicas e geotécnicas extremamente críticas quanto a sua estabilidade. Cumpre ainda considerar a temerária cultura técnica, totalmente inadequada para terrenos declivosos, de se cortar a encosta para a obtenção de um platô plano a receber a edificação.
Com essas características as grotas, desgraçadamente, tem se oferecido à população de baixa renda como área atraente pelo baixo custo do metro quadrado e de aluguéis. Acidentes gravíssimos, com estúpidas perdas de vida, não se fazem por esperar.
Não há recomendação técnica plausível e financeiramente aceitável para operações de estabilização geotécnica que possam tornar as grotas terrenos seguros para a urbanização. A radical proibição de urbanização habitacional das grotas se impõe como a solução mais acertada para o problema. Tal decisão deve sem sombra de nenhuma dúvida ser definitiva e claramente expressa pelas Cartas Geotécnicas como áreas não ocupáveis. E na inexistência dessas cartas, pelo Plano Diretor e pelas leis municipais de uso e zoneamento do solo urbano.
Conjunto Residencial da CDHU construído em cabeceira de grota contribuiu com a reativação de sua dinâmica evolutiva.
Franco da Rocha SP. Foto do autor.
As grotas no contexto ambiental
As grotas, por suas nascentes, constituem preciosos mananciais de água para consumo humano, além de suas singulares funções ecológicas como locus privilegiado de espécies botânicas de grande valor e de abrigo, alimentação e dessedentação de enorme diversidade animal. Só por esses fatos, e pela simples aplicação das disposições do Código Florestal para a delimitação de Áreas de Proteção Ambiental – APPs em torno de nascentes e olhos d’água (círculo de raio de 50m) já deveriam ser consideradas não urbanizáveis. Essa proteção, infelizmente, não tem sido adotada e esses mananciais têm sido sistematicamente engolfados pelo implacável crescimento urbano por espraiamento geográfico, típico das cidades brasileiras, e utilizados como local de disposição irregular de resíduos urbanos e/ou de implantação de precárias e arriscadas moradias populares.
Constante avanço na ocupação de grotas. Cotia SP, imagens Google Earth de 2012 (acima) e 2022(abaixo).
O melhor e mais virtuoso destino urbano para as grotas
Seja no âmbito de políticas públicas de gestão do risco geológico, seja no âmbito de políticas de proteção ambiental e gestão de recursos hídricos, o melhor destino urbano para as grotas está em sua transformação em parques florestados entregues ao lazer e atividades de educação da população.
Considerando as condições de risco, a delimitação do perímetro não ocupável deverá necessariamente incluir a montante da crista frontal e das cristas laterais uma faixa de terreno de largura em torno de 40 metros, uma vez que a ocupação dessa faixa implica em decorrências negativas para a estabilidade geotécnica da testa da grota e para a boa qualidade das águas nascentes.
Para o caso de grotas já geologicamente e ambientalmente degradadas, e que venham a ser desocupadas como decorrência da aplicação de políticas públicas de gestão de riscos geológicos, faz-se imprescindível, para sua transformação em parques florestados, uma operação anterior de recuperação sanitária e geotécnica.
No âmbito desse trabalho de recuperação, destaca-se o objetivo de limpeza do material superficial solto (terra, entulho, lixo…), aplicação de medidas de inibição de deslizamentos e eventuais estabilizações geotécnicas localizadas, o que envolveria os seguintes itens:
imediata interrupção do direcionamento e acesso de escoamentos de águas pluviais para o interior da cabeceira da grota. Essa medida é de caráter essencial por ser drasticamente inibidora da ativação da dinâmica evolutiva das grotas;
remoção cuidadosa dos materiais soltos acumulados na grota (terra, entulho de construção civil, lixo doméstico, resíduos de toda natureza);
as intervenções deverão ser executadas manualmente e/ou por equipamento leve. Não se deve abrir acesso para equipamento de maior porte. A idéia é não interferir no solo natural local, somente no material sobre ele lançado ao longo do tempo;
no caso de eventual presença de vegetação de maior porte, sempre que possível evitar a remoção;
especificamente junto ao local das nascentes de água, a remoção de materiais soltos é especialmente importante, de forma que esse “olho d’água” fique totalmente livre, desobstruído e descontaminado;
os trabalhos devem se desenvolver de montante para jusante. Para facilitar o trabalho de limpeza e remoção sugere-se a utilização de calhas de madeira para a condução do material das cotas superiores para a base do talude;
assim que os taludes naturais superiores vão sendo liberados (limpos de material solto) deve-se proceder sua proteção vegetal. Como, ao final, espera-se que essa área seja ocupada por um bosque florestado, sugere-se a utilização inicial de hidrossemeadura (no caso com predominância de espécies leguminosas locais) seguida de plantio direto de mudas de árvores e arbustos naturais da floresta original da região. Dentro desse procedimento de montante para jusante, quando a limpeza estiver sendo executada junto ao ponto mais baixo do talude, toda e extensão superior já estará razoavelmente protegida contra a erosão. Caso se veja como necessário, deve-se considerar a instalação de sistema de drenagem para águas pluviais.
Bibliografia de referência
Coelho Netto, A. L. – Evolução de Cabeceiras de Drenagem no Médio Vale do Rio Paraíba do Sul (SP/RJ): a Formação e o Crescimento da Rede de Canais sob Controle Estrutural. Revista Brasileira de Geomorfologia, Ano 4, Nº 2 (2003) 69-100.
Fruet, J. G. W. – Análise da estrutura e funcionamento de cabeceiras de drenagem : subsídios para a conservação de nascentes. Tese Doutorado Universidade Estadual de Maringá PR, 2021.
Marques de Castro, C et al – Tipologia de Processos Erosivos Canalizados e Escorregamentos – Proposta Para Avaliação de Riscos Geomorfológicos Urbanos em Barra Mansa (RJ). Anuário do Instituto de Geociências – UFRJ Volume 25 / 2002.
Moura, J. R.S. et al – Geometria do relevo e estratigrafia do quaternário como base à tipologia de cabeceiras de drenagem em anfiteatro – Médio vale do rio Paraíba do Sul. Revista Brasileira de Geociências 21 (3): 255-265, setembro de 1991.
Ridenti Júnior, J. L. et al – Cabeceiras de drenagem, uma unidade de analise na elaboracao de cartas geotecnicas. In: 2 Simposio Brasileiro de Cartografia Geotecnica, 1996, 1996. v. 1. p. 185-194.
Santos, A. R. – Manual básico para a elaboração e uso da Carta Geotécnica. Livro. Editora Rudder. São Paulo, 2014
Geol. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
Ex-Diretor da Divisão de Minas e Geologia Aplicada e Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas
Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente e Diretor-presidente da empresa ARS Geologia Ltda.
- Colaborador e Articulista do EcoDebate.
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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