O mundo corre o risco de ficar preso em um intenso ciclo de catástrofes, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
Os governos não fazem o suficiente para melhorar o gerenciamento de risco de desastres, o que deixa a humanidade amplamente despreparada para o que está por vir
O aumento do nível do mar ameaça provocar êxodo de proporções bíblicas
António Guterres, Secretário-geral da ONU, fevereiro de 2023
Está cada vez mais difícil alcançar a meta de um mundo sustentável, inclusivo e resiliente. Ao invés do sonho de um próspero desenvolvimento humano e ecológico, os indicadores ambientais indicam a iminência de um ciclo de catástrofes (“loop doom”). Os danos causados pelo aquecimento global são, cada vez mais, claros e a recuperação de desastres climáticos e ambientais estão cada vez mais caros.
Os custos ultrapassam dezenas de bilhões de dólares. Além disso, esses desastres costumam causar problemas em cascata, incluindo crises de água, elevação do preço da energia e dos alimentos, inundações, furacões, queimadas, bem como aumento da migração e dos conflitos sociais. Tudo isto drenando os recursos que poderiam ser utilizados para o combate à pobreza, para a restauração ecológica e o aumento da biocapacidade do Planeta.
O relatório “1,5°C – vivo ou morto? Os riscos para a mudança transformacional de atingir e violar a meta do Acordo de Paris”, do Institute for Public Policy Research (IPPR) e da Chatham House, aponta que o mundo corre o risco de cair em um ciclo de catástrofes (“loop doom”) e que os custos para lidar com os impactos crescentes da crise climática e ambiental pode substituir o combate à própria raiz do problema. Evitar um ciclo catastrófico exigiria uma aceitação mais honesta por parte dos políticos dos grandes riscos representados pela crise climática e da perspectiva iminente de ultrapassagem dos pontos de inflexão e da escalada da transformação econômica e social necessária para acabar com o aquecimento global.
O gráfico a seguir mostra uma média móvel de dez anos da temperatura da superfície da Terra, plotada em relação à temperatura média de 1850-1900. Embora seja interessante entender as características dos anos individuais, o aquecimento global é, em última análise, sobre a evolução de longo prazo do clima da Terra. O mundo pode ultrapassar a meta de 1,5º C anual já em 2024, mas a média decenal deve ser atingida em 2034, assim com o patamar decenal de 2º C deve ser ultrapassada em 2060.
O gráfico abaixo apresenta o processo de aumento da concentração de CO2 na atmosfera (curva de Keeling) e os diversos eventos da governança global que foram incapazes de interromper as emissões de gases de efeito estufa. Há 50 anos, foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (ou Conferência de Estocolmo), realizada na capital da Suécia, entre 5 e 16 de junho de 1972. Naquela ocasião, a concentração de CO2 na atmosfera estava em 330 partes por milhão (ppm) e a população mundial era de 3,85 bilhões de habitantes. Em 1987, quando o mundo chegou a 5 bilhões de habitantes, foi publicado o Relatório Brundtland (Nosso futuro comum), com a definição clássica do conceito de desenvolvimento sustentável, mas nada foi feito para reduzir de fato as emissões.
Em 1988, o climatologista James Hansen fez um depoimento no Congresso Americano mostrando como o aquecimento global estava se acelerando. Naquele ano a concentração de CO2 estava em 351 ppm. Em 1992, foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92 ou Cúpula da Terra, que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro de 3 a 14 de junho de 1992, com o objetivo foi debater os problemas ambientais globais. Naquela ocasião a concentração de CO2 tinha passado para 357 ppm.
A 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (a COP1) aconteceu na cidade de Berlim em 1995. Dois anos depois, em 1997, aconteceu a COP3, quando foi assinado o Protocolo de Kyoto, no Japão. Naquele ano a concentração de CO2 estava em 367 ppm e a população mundial tinha passado para quase 6 bilhões de habitantes. A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, conhecida também como Rio+20, foi realizada entre os dias 13 e 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro. Naquele ano a concentração de CO2 estava em 396 ppm e a população mundial tinha ultrapassado 7 bilhões de habitantes.
Nos 70 anos da ONU, foi realizado a COP21, quando foi assinado o Acordo de Paris que é um tratado ocorrido no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (CQNUMC). O acordo foi negociado na capital da França e aprovado em 12 de dezembro de 2015. Entre as principais medidas estão a redução das emissões de gases-estufa, a fim de conter o aquecimento global abaixo de 2º C e, preferencialmente, abaixo de 1,5º C, e garantir a perspectiva do desenvolvimento sustentável. Naquele ano a concentração de CO2 já tinham ultrapassado o limiar de 400 ppm.
No final de 2021 foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, na cidade de Glasgow, na Escócia. A tarefa mais urgente da COP26 foi traçar metas mais ambiciosas de redução de gases de efeito estufa para evitar um aquecimento global acima de 1,5º C. A concentração de CO2 estava em 419 ppm. Os mesmos desafios permanecem na COP27 do Egito, em 2022, quando concentração de CO2 atingiu 421 ppm no mês de maio e a população mundial alcançou 8 bilhões em novembro. Em 2023, a Índia vai ultrapassar a China como o país mais populoso e o mundo deve ultrapassar 423 ppm em maio.
Assim, a curva de Keeling continua aumentando a despeito de todo o blá-blá-blá da governança global. De fato, as emissões globais de CO2 estavam em 2 bilhões de toneladas em 1900, passaram para 6 bilhões de toneladas em 1950, chegaram a 25 bilhões de toneladas no ano 2000 e atingiram 36 bilhões de toneladas entre 2019. No passado foram os países desenvolvidos que mais emitiram CO2 em função da queima de combustíveis fósseis. Mas no século XXI os países fora da OCDE emitem mais do que os países da OCDE e a soma da China + Índia emite muito mais do que a Europa + EUA. Em consequência do efeito estufa, as temperaturas do Planeta estão subindo e acelerando as mudanças climáticas e seus efeitos danosos sobre a vida na Terra.
O período de 2014 a 2023 deve apresentar os 10 anos mais quente do Holoceno, ou seja, estamos experimentando as temperaturas mais quentes desde a última era glacial. Por conseguinte, o aquecimento global é uma realidade inexorável e as pessoas já começam a perceber a dimensão do problema quando sofrem os efeitos dos furacões, inundações, secas prolongadas, ondas letais de calor, etc. Além disto, há os ciclos de feedback climático e a possibilidade de que eles que possam levar o clima a estágios além dos pontos de inflexão planetários.
Se os feedbacks amplificadores (como a degradação do permafrost e o degelo da Antártida) forem fortes, o resultado provavelmente será uma mudança climática trágica, indo além de qualquer coisa que os humanos possam controlar por meio da redução das emissões de gases de efeito estufa e do cumprimento dos compromissos assumidos pelos governos no Acordo de Paris de 2015.
A dramaticidade da nova realidade já tem sido documentada em relatórios do Escritório da ONU para Redução de Riscos de Desastres (UNDRR), que mostram que os impactos das mudanças climáticas e do mau gerenciamento de riscos levaram a um aumento das catástrofes “naturais”. O último relatório, lançado no dia 26 de abril de 2022, confirma que, em um curto período de tempo, o mundo assistiu a um aumento sem precedentes do número de catástrofes “naturais”, e a ação humana pode piorar ainda mais o cenário no futuro.
Nas primeiras duas décadas do século XXI, foram registrados, por ano, entre 350 e 500 desastres médios a grandes. Os eventos, variam de queimadas, secas e enchentes a pandemias e acidentes químicos. A crise climática, que gera eventos atmosféricos extremos, são a principal causa do aumento das ocorrências. As catástrofes geraram ao mundo custos de 170 bilhões de dólares em média por ano na última década. A Nova Zelândia, por exemplo, foi atingida, em fevereiro de 2023, pelo furacão Gabrielle, considerado o maior desastre natural do país nesse século.
Segundo o relatório da UNDRR, os governos não fazem o suficiente para melhorar o gerenciamento de risco de desastres, o que deixa a humanidade amplamente despreparada para o que está por vir. Como afirmou Amina J. Mohammed, secretária-geral adjunta da ONU, o rumo que seguimos atualmente está colocando a humanidade numa “espiral de autodestruição”. Nas projeções do relatório, os desastres podem aumentar para 560 por ano até 2030, ou seja, cerca de 1,5 por dia. Adicionalmente, o aumento do nível do mar deve afetar cerca de 1 bilhão de pessoas que vivem em áreas costeiras e ameaça provocar um êxodo de proporções bíblicas, como afirmou o Secretário-geral da ONU, António Guterres, em fevereiro passado.
No Brasil, em 2022, pelo menos 457 pessoas morreram em desastres causados pelas chuvas no Sul da Bahia, em Minas Gerais, no interior de São Paulo e na Região Serrana do Rio de Janeiro. Os danos da destruição passada ainda não foram totalmente remediados e outros desastres colocam novos desafios. Um ano depois da calamidade de Petrópolis, o litoral norte de São Paulo foi atingido por chuvas torrenciais e inundações, que afetaram, principalmente, a cidade de São Sebastião, em pleno carnaval, com grande fluxo de turistas. Em 15h choveu mais que o dobro da média de fevereiro, em São Sebastião e Bertioga. O choque de umidade e calor vindos da região amazônica com uma frente fria na serra do Mar provocou a tempestade, que pode ser classificado como um “evento climático extremo”, potencializado pelo aquecimento global.
Os parcos recursos financeiros não têm sido suficientes sequer para a redução dos danos imediatos. Assim, a solução adequada e definitiva dos problemas ecossociais é deixada para as calendas gregas. As palavras que resumem o quadro geral do ciclo de catástrofes são: policrise e permacrise. Permacrise significa “um estado de crise permanente” ou “um período prolongado de instabilidade e insegurança”. Policrise significa “uma multiplicidade de crises simultâneas”. Essas crises convergentes tendem a se alimentar umas das outras e provocar situações de colapso ambiental e social.
Por isso, o relatório, “1,5°C – vivo ou morto?”, diz: “Este é um ciclo de destruição: as consequências da crise climática e ambiental atraem o foco e os recursos para combater suas causas, levando a temperaturas mais altas e perdas ecológicas, que então criam consequências mais graves, desviando ainda mais atenção e recursos, e assim por diante, dando continuidade à inação que alimenta o ciclo de catástrofes”.
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
Laurie Laybourn, Henry Throp, Suzannah Sherman. 1,5°C – vivo ou morto? Os riscos para a mudança transformacional de atingir e violar a meta do Acordo de Paris, IPPR, Chatham House; February 2023
https://www.ippr.org/research/publications/1-5c-dead-or-alive
ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, RJ, v. 18, n. 1, e5942, maio 2022 https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5942/5595
[ Se você gostou desse artigo, deixe um comentário. Além disso, compartilhe esse post em suas redes sociais, assim você ajuda a socializar a informação socioambiental ]
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário. Aguarde a publicação após a aprovação da Professora Conceição.