Oligopólios na alimentação mundial e a pandemia de fome
As grandes empresas aproveitaram ao máximo as crises sanitárias, ambientais e climáticas dos últimos anos para reforçar seu controle sobre cada elo da cadeia alimentar industrial
Há 25 anos, dez empresas concentravam o mercado de sementes. Atualmente, esse número caiu para apenas quatro corporações (Bayer, Syngenta, BASF e Corteva). É uma das conclusões da pesquisa Barões da alimentação, do Grupo ETC, que revela o crescimento da concentração nos diversos ramos produtivos e comerciais do agronegócio.
O estudo descreve a rede empresarial em setores-chave, analisa o impacto das “soluções verdes” e da digitalização e a forma como enquanto os alimentos são tratados como mercadorias e não como um direito, os oligopólios são fortalecidos.
A reportagem é publicada pela agência de notícias Tierra Viva, 04-04-2023. A tradução é do Cepat.
O estudo examina as corporações que lideram e controlam onze setores agroalimentares: sementes, produtos agroquímicos, genética para a pecuária, fertilizantes sintéticos, máquinas agrícolas, produtos farmacêuticos para animais, comercialização de matérias-primas, processadores, indústria de carnes, varejo de alimentos e plataforma de entrega de alimentos. As classificações são baseadas nos números de vendas de 2020.
O Grupo ETC indica que há uma concentração extrema nos mercados globais de produtos agroquímicos, sementes comerciais, máquinas agrícolas, produtos farmacêuticos animais e genética para a pecuária.
As seis maiores produtoras de agrotóxicos (Syngenta, Bayer, BASF, Corteva, UPL e FMC) controlam 78% do mercado mundial desse item. O Grupo Syngenta sozinho representa um quarto da oferta. Em relação às sementes, Bayer (com 23%) e Corteva (17%) concentram 40% da produção.
Quatro companhias monopolizam 44% do mercado de máquinas agrícolas: Deere, Kubota, CNH e AGCO. A primeira delas controla 18% do mercado. Em relação aos produtos farmacêuticos animais, seis companhias (Zoetis, Merck, Boehringer Ingelheim Animal Health, Elanco + Bayer Animal Health, IDEXX Laboratórios e Ceva Santé Animale) representam 72% da oferta mundial, com a Zoetis liderando com 20%.
O relatório, que tem como subtítulo Lucro com a crise, digitalização e o novo poder corporativo, explica que existem três tendências críticas multissetoriais que aumentam a capacidade dos Barões da Alimentação em manter o controle sobre a cadeia alimentar industrial. A primeira delas é a digitalização da agricultura e dos alimentos em toda a cadeia. A segunda é o crescente poder dos barões asiáticos da alimentação (especialmente chineses). A terceira é a integração horizontal, incluída a crescente participação das empresas de gestão de ativos nos setores de alimentação e agricultura, que cria uma aparência de concorrência, mas diminui a concorrência real.
O Grupo ETC afirma que as grandes empresas aproveitaram ao máximo as crises sanitárias, ambientais e climáticas dos últimos anos para reforçar seu controle sobre cada elo da cadeia alimentar industrial. As corporações exploram os trabalhadores, envenenam o solo e a água, diminuem a biodiversidade e impedem a justiça climática e perpetuam um sistema alimentar estruturado sobre a injustiça racial e econômica. Além disso, abusam de sua força para eliminar os rivais, aumentar os preços, sequestrar a agenda de pesquisa e desenvolvimento, monopolizar tecnologias (mesmo as defeituosas e ineficazes) e maximizar os lucros.
“É o momento de denunciar os Barões da Alimentação pelo que são. Encontrar suas fragilidades estruturais e tomar medidas estratégicas de colaboração para enfrentá-las”, convoca o Grupo ETC. E recorda: quem alimenta a maioria da população são as famílias camponesas, produtores e produtoras que fornecem alimentos para 70% da população mundial usando menos de 30% da terra, água e recursos agrícolas do mundo.
Quanto às propostas, defendem a necessidade de apoiar a soberania alimentar, eliminar o financiamento público e de outras instituições à cadeia alimentar industrial; recuperar a participação, governança e soberania da tecnologia e estabelecer ações antimonopólio e tratados de concorrência.
Digitalização e “soluções verdes”
A pesquisa revela que todos os setores da cadeia alimentar industrial estão em processo de se tornarem empresas digitais. Ao mesmo tempo, as grandes empresas de tecnologia estão se envolvendo estreitamente com a produção industrial de alimentos. Os dados extraídos por meio de tecnologias digitais são em si uma mercadoria: a cadeia industrial de alimentos se baseia na coleta de dados em massa para cultivar, processar, comercializar, rastrear, vender e transportar seus produtos.
Nos fatos, isso implica a imposição da agricultura digital, implementando drones de fumigação, jardineiras robóticas impulsionadas pela inteligência artificial (IA) e operações automatizadas de alimentação animal, equipadas com reconhecimento facial para o gado.
Gigantes agrícolas como Bayer, Deere & Company, Corteva, Syngenta e Nutrien estão reestruturando todo o seu negócio em torno das plataformas de dados em massa. A plataforma digital FieldView da Bayer, por exemplo, extrai 87 bilhões de pontos de dados de 72 milhões de hectares de terras agrícolas, em 23 países, e os canaliza para os servidores na nuvem da Microsoft e da Amazon.
Ao mesmo tempo, as plataformas de supermercados online e aplicativos de entrega de alimentos (como DoorDash, Zomato e Deliveroo) aumentaram, durante os confinamentos pandêmicos, e estão se tornando um novo “último elo” da cadeia alimentar industrial.
O Grupo ETC destaca que após décadas destruindo a saúde do solo e poluindo a atmosfera e as vias fluviais, os fabricantes de fertilizantes agora arquitetam formas de monetizar a crise climática e demonstrar suas contribuições para soluções “limpas e verdes”. Isso significa se concentrar em novos tipos de supostos fertilizantes, como a semeadura orgânica, os produtos baseados em micróbios, a agricultura digital e os métodos alternativos de produção de amônia (por exemplo, amônia “verde” e “azul”, para a fabricação de fertilizantes nitrogenados).
A agricultura digital propõe ferramentas baseadas em aplicativos virtuais que podem proporcionar “recomendações” de dosagem de fertilizantes supostamente precisas e específicas para determinado campo (ou mesmo específicas da planta) que buscam reduzir o desperdício geral e “proteger o meio ambiente”.
“Assim como as ameaças representadas pelos gigantes genéticos e empresas do agrotóxicos, em décadas anteriores, eram evidentes para os movimentos populares, agora, é óbvio que os gigantes de dados em massa, de tecnologia e de biotecnologia estão exercendo cada vez mais um importante domínio transversal sobre os sistemas alimentares”, compara o estudo.
Pandemia da fome, lucros milionários e falsa concorrência
As condições impostas pela pandemia de Covid–19 aumentaram a fome e a insegurança alimentar, com quase 12% da população mundial (928 milhões de pessoas) em situação de insegurança alimentar grave. Mas, por sua vez, uma análise de 100 corporações estadunidenses se deparou com um aumento médio nos lucros de 49%, nos últimos dois anos.
As condições da mudança climática, a extrema volatilidade e a assombrosa desigualdade econômica se tornaram características definidoras dos mercados mundiais de alimentos e agricultura atuais, com impactos assimétricos: mesmo quando a insegurança alimentar mundial, os preços dos alimentos e a fome dispararam, as grandes empresas de alimentos e agroindustriais registraram lucros recordes.
A crise sanitária desmascarou brutalmente a extrema vulnerabilidade de um sistema alimentar hiperindustrializado e altamente centralizado, que explora trabalhadores e trabalhadoras e depende de cadeias de abastecimento globais “de último minuto”, obscuras e suscetíveis à corrupção. “Algumas das maiores empresas do mundo estão usando a paralisação da cadeia de abastecimento e a inflação, induzidas pela pandemia, como desculpa para aumentar os preços, aproveitando abertamente as circunstâncias para lucrar com a crise”, detalha o relatório.
Por outro lado, nas últimas décadas, houve um aumento em massa da concentração de terras e a especulação com capital de risco em ativos alimentares e agrícolas em todo o mundo. Esta última tendência exemplifica a “financeirização” da cadeia alimentar industrial. No final de 2020, a indústria de capital privado administrava mais de 7,5 trilhões de dólares em capital, com uma influência cada vez maior sobre o poder corporativo na alimentação e agricultura.
Soma-se a essa diversificação a “participação acionária horizontal”, que é a prática de possuir ativos em diversas corporações que aparentemente são concorrentes. Dessa maneira, a competição no livre mercado se torna ilusória. “Há evidências cada vez maiores de que a participação acionária horizontal em mercados concentrados promove práticas anticompetitivas que passam despercebidas pelos reguladores antimonopólio”, aponta o Grupo ETC.
Mudanças na geopolítica do extrativismo agropecuário
Em décadas passadas, a agricultura industrial estava dominada por corporações com sede na América do Norte e na Europa e se concentrava em satisfazer a demanda do mercado nessas regiões. No entanto, atualmente, os atores corporativos no sul global (especialmente China, Brasil e Índia) estão reordenando a cadeia alimentar industrial, ao mesmo tempo em que adotam o mesmo modelo extrativista de suas contrapartes do norte. O ritmo e a escala do sistema agroalimentar hiperindustrializador da China não têm precedentes.
As empresas chinesas da alimentação estão atendendo a seus colossais mercados nacionais e mercados globais: O Grupo Syngenta, de propriedade estatal chinesa, é precisamente a maior empresa mundial de insumos agroquímicos (sementes, agrotóxicos, fertilizantes); e a recém-consolidada Cofco da China é a segunda (depois da Cargill) maior comercializadora de produtos agrícolas do mundo.
O estudo diz que, com a ajuda de filantrocapitalistas como a Fundação Bill& Melinda Gates, os gigantes do agronegócio estão agora se expandindo para a agricultura camponesa no sul global, de mercados rurais a megacidades.
Apesar destas mudanças, quem domina a cadeia alimentar industrial continua sendo as empresas do norte. Portanto, argumenta o Grupo ETC: “Os governos do sul global deveriam participar ativamente na criação de um instrumento multilateral para proteger os sistemas alimentares locais, em vez das normas comerciais da Organização Mundial do Comércio, que funcionam na direção oposta”.
(EcoDebate) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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