O Censo 2022 e o 1º bônus demográfico, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
Nos últimos 100 anos, o poder de compra do Brasil e do mundo avançou de um nível de renda baixo para a renda média, mas a renda per capita do Brasil estagnou
A transição demográfica é uma das maiores conquistas sociais da história mundial e brasileira. Em primeiro lugar, a queda da taxa de mortalidade evitou a continuidade das mortes precoces e o baixo tempo de vida, fato absolutamente extraordinário e que é a base de todas as outras conquistas. A esperança de vida ao nascer no Brasil que estava abaixo de 30 anos no final do século XIX, ultrapassou 70 anos nos anos 2000.
Em segundo lugar, a queda da taxa de fecundidade foi acompanhada de uma mudança cultural fundamental, pois as mulheres e os casais trocaram o investimento na quantidade para o investimento na qualidade dos filhos. Houve uma mudança no fluxo intergeracional de riqueza que beneficiou toda a sociedade (Alves, 2022), pois as velhas gerações passaram a investir nas novas gerações, garantindo a mobilidade intergeracional ascendente. Houve grande redução das desigualdades de gênero.
A transição demográfica é sempre acompanhada por uma transição da estrutura etária que, por sua vez, gera uma janela de oportunidade demográfica que favorece o desenvolvimento humano e possibilita um salto na qualidade de vida da população.
O gráfico abaixo, com base nas projeções populacionais do IBGE (revisão 2018), mostra a população em idade ativa (PIA) de 15 a 64 nos, no Brasil, no período 2010 a 2060. Entre 2010 e 2020, a PIA crescia em ritmo mais rápido do que população total. Entre 2020 e 2037, a PIA continua crescendo, mas em ritmo cada vez mais lento.
O pico populacional da PIA estava estimado para 152,9 milhões de pessoas no ano de 2037. A partir de 2038, a PIA começaria a decrescer no restante do século XXI. Em termos percentuais, a PIA atingiu o máximo de 69% da população total no quinquênio 2015 a 2019, deve cair para 66,3% em 2037 e ficar pouco abaixo de 60% em 2060. Estes números vão mudar um pouco com os resultados do censo 2022.
Segundo a literatura demográfica internacional, o crescimento absoluto da PIA, somado ao aumento relativo da quantidade de pessoas em idade de trabalhar, gera uma grande oportunidade para o avanço econômico e social dos países. Esta fase é conhecida como janela de oportunidade ou 1º bônus demográfico, pois é um momento de ganhos na relação entre “produtores líquidos” potenciais e “consumidores líquidos”.
A fase áurea do 1º bônus demográfico é quando a PIA cresce mais rápido do que a população total (neste período a janela de oportunidade está se abrindo). Mas há um período em que a PIA continua aumentando em termos absolutos, mas cresce menos do que a população total em termos relativos. Nesta fase, a janela de oportunidade começa a se fechar, mas só se fecha completamente quando se atinge o pico populacional da PIA. Nesta segunda fase, mesmo com menor crescimento da PIA, pode haver aumento da população ocupada (PO). Ou seja, o 1º bônus demográfico termina completamente quando a PIA começa a encolher.
Os números apresentados acima são das projeções populacionais do IBGE, divulgados em 2018, antes, portanto, da pandemia da covid-19. Evidentemente, estas tendências vão apresentar algumas alterações quando forem divulgados os dados do censo demográfico de 2022 e forem feitas as novas projeções.
Contudo, os resultados já divulgados pelo IBGE – que relatam um menor ritmo de crescimento populacional – já indicam que o pico populacional da PIA deve ser um pouco antecipado, enquanto o envelhecimento populacional deve apresentar uma aceleração. Numa estimativa preliminar, podemos dizer que o pico da PIA deve ser antecipado em cerca de 3 ou 4 anos, isto é, a polução em idade ativa deve começar a decrescer em 2033 ou em 2034. Desta forma, restam cerca de 10 anos para o fim do 1º bônus.
Entre 2023 e 2033 ou 2034 a PIA brasileira vai crescer menos do que a população total, mas a População Ocupada (PO) pode crescer acima do ritmo demográfico do país. Isto ocorre porque o Brasil ainda tem uma grande quantidade de pessoas desocupadas (desemprego aberto), subutilizadas ou na economia informal. Deste modo, existe espaço para avançar com a bandeira “Pleno emprego e trabalho decente”.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), do IBGE, divulgada 31 de agosto, a taxa de desocupação ficou em 7,9% no trimestre de maio a julho de 2023, representando 8,5 milhões de pessoas procurando emprego. A taxa composta de subutilização ficou em 17,8%, representando uma população subutilizada de 20,3 milhões de pessoas. Portanto, o Brasil teve no trimestre de maio a julho de 2023 cerca de 29 milhões de pessoas procurando emprego ou subutilizadas.
O número de empregados com carteira de trabalho assinada no setor privado (exclusive trabalhadores domésticos) foi de 37 milhões. O número de empregados sem carteira assinada no setor privado ficou em 13,2 milhões. O número de trabalhadores por conta própria ficou em 25,2 milhões de pessoas. O número de trabalhadores domésticos ficou em 5,9 milhões de pessoas. A taxa de informalidade foi de 39,1% da população ocupada, representando 38,9 milhões de trabalhadores informais.
Portanto, a população ocupada no Brasil poderia ser acrescida de 29 milhões de indivíduos (os desempregados mais os subutilizados) e poderia transformar 39 milhões de trabalhadores ocupados informais em trabalhadores formais (com direitos trabalhistas) e mais produtivos (com mais intensidade de tecnologia e qualificação).
Para agravar a situação, o Brasil tem cerca de 7 milhões de jovens de 18 a 24 anos que nem trabalham e nem estudam (a geração nem-nem), segundo relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que indicou 35,9% de jovens nem-nem no Brasil em 2022, a segunda maior taxa de um total de 37 países analisados. O Brasil ficou atrás apenas da África do Sul. Trata-se de uma geração perdida, sem os direitos humanos básicos e que compromete o futuro do país. Sempre é bom lembrar que o trabalho é a fonte da riqueza das nações. E quanto mais produtivo for o trabalho, maior será a riqueza e o bem-estar nacionais.
Reconhecendo que há desperdício da força de trabalho no Brasil, os números mostram que existe espaço para o crescimento da população ocupada (PO), a despeito do menor crescimento da população em idade ativa (PIA). Por conseguinte, o Brasil tem cerca de 10 anos para aproveitar os últimos momentos do 1º bônus demográfico. Uma constatação inquestionável é que todo país que avançou nos indicadores de desenvolvimento humano aproveitou a sua janela de oportunidade.
Evidentemente, o 1º bônus tem prazo para começar e para terminar. No Brasil, começou em 1970 e terminará no primeiro quinquênio da década de 2030. Serão mais de 60 anos de oportunidades demográficas. Este é um fenômeno único e só acontece uma vez na história de cada país.
Mas o fim do 1º bônus demográfico, embora traga dificuldades, não é o fim das perspectivas futuras, pois existem dois outros bônus que podem garantir um maior bem-estar da população. A redução do volume de trabalhadores pode ser compensada por trabalhadores mais produtivos que produzem mais com menos.
O aumento do volume de idosos pode ser benéfico se contarmos com o envelhecimento saudável e ativo, pois o grande contingente de pessoas da terceira idade deve ser encarado como um ativo, e não com um passivo. Desta forma, antes mesmo do fim do 1º bônus, o Brasil pode aproveitar o 2º bônus demográfico (bônus da produtividade) e o 3º bônus demográfico (bônus da longevidade).
Em síntese, existe espaço para que a População Ocupada (PO) possa crescer em ritmo superior ao da População Total (PT), aproveitando os 10 anos finais do 1º bônus demográfico. Ao mesmo tempo, o país precisa investir na educação, na saúde, na ciência e tecnologia, na infraestrutura e nos setores com produção de maior valor agregado para produzir mais com menos (base do 2º bônus). Além disto, é preciso aproveitar o potencial produtivo dos idosos, garantindo o direito ao trabalho da população da terceira idade (base do 3º bônus demográfico).
A Coreia do Sul tem aproveitado plenamente os bônus demográficos
Quando um país aproveita plenamente os três bônus demográficos ele sai de uma situação de pobreza, para a renda média e, sendo bem-sucedido, dá o salto para a renda alta e para um elevado padrão de vida da população. Um dos melhores exemplos de aproveitamento dos três bônus é a Coreia do Sul, que sofreu a dominação da colonização japonesa até 1945, conseguiu a independência depois da Segunda Guerra, mas passou por uma guerra atroz com a Coreia do Norte entre 1950 e 1953.
A Coreia do Sul era um país pobre e sem muitos recursos naturais na década de 1950. Mas investiu em educação e saúde da população, avançou rapidamente com a transição demográfica (redução das taxas de mortalidade e natalidade), elevou as taxas de poupança e investimento e garantiu a renovação tecnológica da sua estrutura produtiva.
Desta forma aproveitou muito bem o 1º bônus demográfico (bônus da estrutura etária) pela via do pleno emprego e do trabalho decente. Ao mesmo tempo aproveitou o 2º bônus demográfico, investindo em infraestrutura e construindo grandes empresas inovadoras de penetração internacional, como: Sansung, LG, Kia, Hanwha, Hyundai,etc. Atualmente a Coreia do Sul investe no aproveitamento do potencial do terceiro bônus demográfico (bônus da longevidade).
Por conseguinte, a Coreia do Sul que era um país pobre, passou a ter renda média nas últimas décadas do século XX e deu um salto para país de renda alta e com alto padrão de vida no século XXI. Outros casos de grande sucesso ocorreram em Taiwan, Hong Kong e Singapura. Ou seja, os Tigres Asiáticos são exemplos de países de sucesso para o mundo, pois venceram a pobreza e construíram nações de alto Índice de Desenvolvimento Humano.
O gráfico abaixo, com dados do Maddison Project Database 2020, mostra a renda per capita, em preços constantes em poder de paridade de compra (ppp), para o mundo, o Brasil e a Coreia do Sul entre 1918 e 2018. Nota-se que o Brasil e a Coreia tinham renda per capita abaixo da renda per capita mundial. Entre 1918 (fim da 1ª Guerra Mundial) e 1942 a renda per capita mundial estava em torno de US$ 2,6 mil, enquanto a renda per capita do Brasil e da Coreia estava aproximadamente na metade, em torno de US$ 1,3 mil.
Entre 1940 e 1980, a renda per capita brasileira superou a renda per capita coreana e alcançou a renda per capita mundial. Em 1983 a renda per capita, em torno de US$ 7,3 mil, estava empatada no mundo, no Brasil e na Coreia do Sul. A partir dos anos de 1980 a renda per capita brasileira ficou acima da renda per capita mundial e a renda per capita da Coreia do Sul disparou. Depois da crise de 2015 e 2016, a renda per capita brasileira voltou a ficar abaixo da renda per capita mundial. Em 2018 (último dado disponível), a renda per capita brasileira estava em torno de US$ 14 mil, a renda per capita mundial em US$ 14,5 mil e a renda per capita coreana em US$ 38 mil.
Nos últimos 100 anos, o poder de compra do Brasil e do mundo avançou de um nível de renda baixo para a renda média, mas a renda per capita do Brasil estagnou nos últimos 40 anos e não conseguiu dar o passo seguinte para a renda alta. O Brasil está longe de ter a qualidade de vida dos Tigres Asiáticos, pois não aproveitou bem os dois primeiros bônus (aproveitou parcialmente) e não está se preparando para aproveitar o 3º bônus.
O Brasil ficou no meio do caminho, conseguiu vencer a pobreza (venceu a baixa renda), mas tem ficado preso na armadilha da renda média. Evidentemente, ainda dá tempo para promover o salto para o clube dos países ricos, não no nível da Coreia do Sul, talvez no nível de Portugal e Espanha. Porém, o tempo é curto e o esforço precisa ser redobrado.
O IBGE divulgará os dados de sexo e idade do censo 2022 no dia 06 de setembro de 2023. Com certeza, os dados vão mostrar que o envelhecimento populacional veio acima do que indicado pelas projeções de 2018 (sabemos disto porque o total da população veio abaixo do esperado). A partir destes dados, o Instituto poderá realizar as novas projeções populacionais e indicar quando a PIA começará a diminuir.
Mas o fato alvissareiro é que a nação brasileira ainda tem tempo para aproveitar os últimos anos do 1º bônus e, desde já, pode capitalizar os benefícios dos outros dois bônus demográficos. O Brasil ainda é capaz de ser o “País do futuro”, mas precisa trabalhar muito e ter um grande senso de urgência.
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI (com a colaboração de GALIZA, F), ENS, maio de 2022
https://ens.edu.br:81/arquivos/Livro%20Demografia%20e%20Economia_digital_2.pdf
ALVES, JED. As oportunidades e os desafios dos bônus demográficos com os novos números do Censo 2022, Folha de São Paulo, 28/06/2023 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/06/as-oportunidades-e-os-desafios-dos-bonus-demograficos-com-os-novos-numeros-do-censo-2022.shtml
OECD (2022), Education at a Glance 2022: OECD Indicators, OECD Publishing, Paris,
https://doi.org/10.1787/3197152b-en.
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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