Mudanças Climáticas e Fecundidade: Ansiedade e Transição
As mudanças climáticas afetam a decisão de ter filhos? Estudos revelam que sim. Descubra como o calor extremo, a ecoansiedade e a Pegada Ecológica impactam a fecundidade global e o futuro da humanidade.
Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
A crise climática e as ondas de calor afetam a saúde das pessoas e comprometem a capacidade da natureza de continuar fornecendo os meios de subsistência para o consumo da população mundial. A humanidade já ultrapassou a capacidade de carga da Terra e está rompendo com os pontos de inflexão fundamentais para o equilíbrio do clima no Planeta. A emergência climática afeta também as taxas de fecundidade.
Na maior parte da história humana, desde o surgimento do Homo sapiens, as taxas de mortalidade e fecundidade eram altas. A mortalidade infantil e a mortalidade materna eram elevadíssimas e o tempo de vida médio das pessoas era bastante baixo. A média global da expectativa de vida ao nascer, em geral, permaneceu abaixo de 25 anos até o início do século XIX. Mas estas condições mudaram com a Revolução Industrial e Energética que possibilitou um grande crescimento do consumo, o avanço da produção de alimentos, incrementou a infraestrutura de transportes e comunicações, melhorou as condições de moradia, de educação e saúde e tudo isto fez as taxas de mortalidade caírem.
A queda das taxas de mortalidade abriu espaço para a queda também das taxas de fecundidade. Nos países mais desenvolvidos este processo começou no século XIX. Mas para o mundo como um todo, a queda das taxas de mortalidade se acelerou depois da Segunda Guerra Mundial e a queda das taxas de fecundidade começou, para valer, no final da década de 1960, conforme mostra o gráfico abaixo da Divisão de População da ONU. A taxa de fecundidade do mundo era de 5,5 filhos por mulher em meados da década de 1960 e chegou a 2,5 filhos no início dos anos 2000, estando em 2,3 filhos por mulher em 2023. Para o restante do século XXI existem diversas estimativas, com a projeção média indicando uma taxa de reposição (2,1 filhos) na década de 2050 e uma TFT de 1,84 filhos por mulher em 2100.
As primeiras abordagens da transição demográfica (passagem de altas para baixas taxas de mortalidade e fecundidade) consideravam que o número médio de filhos cairia até aproximadamente o limite da taxa de reposição, que é de 2,1 filhos por mulher (um filho para repor os pais, um filho para repor a mãe e 0,1 para compensar a mortalidade daqueles jovens que não chegam à idade reprodutiva). Porém, muitos países já possuem taxas de fecundidade extremamente baixas (como é o caso da Coreia do Sul que tem uma TFT bem abaixo de 1 filho por mulher). Se a taxa de fecundidade global ficar abaixo do nível de reposição por um longo período de tempo isto implica que haverá decrescimento demográfico. Quando mais baixa for a TFT, maior será o decrescimento da população.
As projeções da ONU (revisão 2022) indicam que o decrescimento demográfico global vai ocorrer a partir da década de 2080. Mas isto pode ocorrer antes em função de vários fatores, especialmente pelo agravamento da crise climática e ambiental.
Duas matérias da BBC indicam como as mudanças climáticas podem afetar as taxas de fecundidade. A matéria “Mudança climática afeta decisão de jovens brasileiros sobre ter filho, diz pesquisa internacional” (BBC, 14/09/2021) relata que uma pesquisa internacional feita com jovens de dez países mostra que os brasileiros entre 16 e 25 anos são os que mais hesitam em ter filhos por causa das mudanças climáticas. Quase metade (48%) dos brasileiros entrevistados disseram que as mudanças climáticas os fazem ficar hesitantes em relação a ter filhos. Essa proporção ficou bem acima da média mundial (39%) e foi o maior percentual registrado nos dez países pesquisados – Austrália, Estados Unidos, Reino Unido, Índia, Nigéria, Filipinas, Finlândia, Portugal, Brasil e França.
A matéria “Extreme heat at work can double stillbirth risk, India study finds” (BBC, 22/03/2024) mostra que trabalhar sob calor extremo pode duplicar o risco de natimortos e aborto espontâneo para mulheres grávidas, de acordo com uma nova investigação da Índia. O estudo descobriu que os riscos para as futuras mães são significativamente maiores do que se pensava anteriormente. Os investigadores dizem que verões mais quentes podem afetar não só as mulheres em climas tropicais, mas também em países como o Reino Unido.
Desta forma, tanto pelo lado da mortalidade, quanto pelo lado da fecundidade, tem crescido a ansiedade climática e tem aumentado o número de pessoas nas gerações jovens, em período reprodutivo, que desistem de ter filhos ou diminuem o número de filhos desejados. Portanto, pode ser que a TFT global atinja o nível de reposição antes do que o projetado e que o decrescimento populacional global também seja antecipado.
O livro “Generation Dread: Finding Purpose in an Age of Climate Anxiety”, de Britt Wray, investiga os impactos psicológicos, emocionais e espirituais das mudanças climáticas com recomendações para transformar a ecoansiedade em ação. Com o planeta sendo cada vez mais hostil à vida, a ecoansiedade, definida pela Associação Americana de Psicologia como “o medo crônico da destruição ambiental”, deixa as pessoas com uma sensação de desamparo e desesperança. Na verdade, muitas pessoas em idade fértil questionam a sabedoria de ter filhos nesta situação – e decidem não fazê-lo.
O livro incentiva a ação com amplas evidências de que cada decisão, ato e aliança em apoio à saúde do planeta faz a diferença. Embora não haja como voltar ao que era considerado “normal”, a autora recomenda métodos para reenquadrar a situação como um desafio. Defendendo a defesa da alegria, do amor e da conexão interpessoal, o livro sugere o desenvolvimento da resiliência pessoal por meio do autocuidado, da atenção plena, do diário, da gratidão, da construção de comunidades solidárias e de reservar um tempo para descansar.
De fato, existem soluções individuais, mas principalmente soluções coletivas para enfrentar o desequilíbrio do Sistema Terra. A humanidade já ultrapassou a capacidade de carga da Terra e já rompeu 6 das 9 fronteiras planetárias. É urgente reduzir a Pegada Ecológica global. A ansiedade climática é uma coisa ruim, mas a transição da fecundidade (de altos para baixos níveis) é uma coisa boa para a vida social e ambiental.
Como mostrei no artigo “Decrescimento demoeconômico com elevação da prosperidade social e ambiental” (Alves, 20/01/2023), a renda per capita pode continuar crescendo mesmo com o decrescimento da população e do PIB, desde que o decrescimento populacional seja maior do que o decrescimento econômico. Por exemplo, se a população cair 1% ao ano e o PIB cair 0,3% ao ano, a renda per capita sobe 0,7% ao ano, o que seria suficiente para dobrar a renda em 100 anos.
Diante das incertezas do século XXI, muitas pessoas estão apostando que o decrescimento demoeconômico pode ser o melhor cenário para enfrentar a crise climática e ambiental. A Coreia do Sul tem as taxas de fecundidade mais baixas do mundo e o governo e a sociedade civil coreana estão tentando corretamente elevar a fecundidade para níveis próximos da reposição. Contudo, é preciso reconhecer que baixas taxas de fecundidade e o decrescimento populacional não impedem o bem-estar social.
Referências:
ALVES, JED. Decrescimento demoeconômico com elevação da prosperidade social e ambiental, Ecodebate, 20/01/2023 https://www.ecodebate.com.br/2023/01/20/decrescimento-demoeconomico-com-elevacao-da-prosperidade-social-e-ambiental/
ALVES, JED. A Coreia do Sul tem a taxa de fecundidade mais baixa do mundo, Ecodebate, 13/05/2024
https://www.ecodebate.com.br/2024/05/13/a-coreia-do-sul-tem-a-taxa-de-fecundidade-mais-baixa-do-mundo/
BBC. Mudança climática afeta decisão de jovens brasileiros sobre ter filho, diz pesquisa internacional, BBC, 14/09/2021 https://www.bbc.com/portuguese/geral-58553995
Tulip Mazumdar. Extreme heat at work can double stillbirth risk, India study finds, BBC, 22/03/2024
https://www.bbc.com/news/world-asia-india-68575943
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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