BREVE HISTÓRIA DE RUANDA
A história de Ruanda pode ser remontada através do estudo das obras dos autores que se dedicaram à compreensão da história da chamada “África Negra” ou subsaariana. A história deste país, contrapondo-se à concepção eurocêntrica de uma certa imobilidade e “exotismo” da história africana, revela que podemos analisá-la através de categorias históricas e sociológicas que cabem à análise de qualquer outro lugar do mundo.
A origem do sistema hierárquico de etnias-classe nos territórios de Ruanda deu-se quando um povoado que ali existia, formado por uma mistura heterogênea de famílias e clãs banto, que demonstravam escassa organização política, foi “invadido” por um grupo relativamente homogêneo de pastores vindos do norte, chamados “tutsi hamitas”, que introduziram na região a criação de animais, culturas agrícolas desconhecidas e uma hierarquia social baseada em castas. A partir do século X, ter-se-iam estabelecido várias dinastias tutsis, que depois se integraram para formar o estado de Ruanda, aproximadamente, pelo século XV. Os povos vencidos teriam sido “assimilados graças a um sistema que os convertia em vassalos, assim, os bantos (Hutus), receberam o direito de utilizar o gado em troca de sua lealdade e da prestação de serviços” ( BETHWELL OGOT, 1980-88, p. 528).
edu.glogster.com - The groups were Hutu, Tutsi, or Twa.
Ao apresentar as relações sociais do pequeno reino, Coquery-Vidrovitch (1976), problematiza a utilização do conceito de feudalismo, por ter sido utilizado, muitas vezes, para qualificar relações sociais mais ou menos deformadas pela ótica ocidental dos primeiros observadores. A autora afirma que suas estruturas políticas se baseavam por uma “autoridade relativamente firme de um rei assistido por governadores de províncias, nomeados por ele”, encarregados de arrecadar tributos. Assim, define as relações sociais por “relações de dependência pessoal que uniam os clientes com seu patrão”, onde uma “população campesina se encontrava a serviço dos chefes políticos ou do clã” que tinha o controle sobre o gado (COQUERY-VIDROVITCH, 1976, p.38 e 39).
portalsaofrancisco.com.br - Mapa de Ruanda
A origem dessa formação social também é remontada pelas tradições orais, sendo uma rica fonte para o estudo das ideologias desta sociedade, pois a mitologia cumpre um papel social ao explicar não somente a origem da sociedade, como valida a organização social, a repartição dos poderes e o controle dos bens. Os mitos de Ruanda, dessa forma, justificariam o escalonamento desigual das três camadas da população – tutsi, hutu, twa – e a institucionalização da monarquia tutsi, ao afirmar a origem celeste destes e o seu caráter de portadores de uma civilização superior. Nesse sentido, tal explicação baseada em tempos primordiais, carregada de dupla intenção, divina e humana, conserva-se porque cumpre uma função social e se modifica conforme o centro de interesse.
A realeza tinha uma concepção de caráter divino, onde o rei (nwami) transcendia todas as castas, e sua administração, assentada na divisão hierárquica entre as castas e no monopólio dos principais bens de produção, gado e também a terra, era realizada distritalmente por dois chefes independentes: “o chefe do solo, responsável pelo censo agrícola e juiz nas questões de bens de raiz, e o chefe do gado, com competência nos impostos sobre as manadas” (KI-ZERBO, 1999, vol. I, p.398). Haveria também uma terceira autoridade, o chefe do exército local, assim como múltiplas residências reais, cada uma delas gerida por uma esposa e concubina do rei que dependiam diretamente da autoridade real.
civilizacoesafricanas.blogspot.com - Os tutsis (em kinyarwanda e kirundi: batutsi
Estando os tutsis no topo da sociedade, repugnavam os trabalhos agrícolas, “consagravam seus amplos lazeres à eloquência, à poesia, aos jogos subtis do espírito, bebendo hidromel” (KI-ZERBO,1999, vol. I, p.399), os hutus formavam o essencial da população, eram “camponeses que sofriam com frequência as arbitrariedades dos aristocratas e eram englobados num sistema de clientela em relação aos tutsis”, que lhe traziam a proteção. Os twas constituíam uma “ínfima etnia residual que se distingue pela sua muito pequena estatura e pela sua especialização na caça e na cerâmica” (KI-ZERBO, 1999, vol. I, p.399).
veja.abril.com - Refugiados hutus vigiam reses no sul de Ruanda
Em princípio, havia uma permeabilidade entre os grupos, através do matrimônio ou por alternância de funções. Bethwell Allan Ogot, (1980-88), a esse respeito, assinala que as tradições da região interlacustre africana indicam que mais que uma divisão étnica, a divisão entre os pastores e agricultores era relacionada à ocupação, assim, se um pastor “perdesse seu gado e não pudesse reavê-lo, convertia-se em agricultor, enquanto o agricultor que adquirisse gado tornava-se pastor, ao que tudo indica, essas mudanças aconteciam frequentemente, tanto no plano individual, quanto no nível de grupos” (BETHWELL OGOT, 1980-88, p. 528).
A origem do Estado centralizado não fora obra apenas dos pastores vindos do norte, a sua formação incorporou ritos e instituições políticas dos agricultores, assim como algumas importantes funções rituais parecem ter sido confiadas aos agricultores que, assim, “adquiriram participação e interesse no sistema” (BETHWELL OGOT, 1980-88, p.530). Coquery-Vidrovitch (1976) afirma que houve protestos em forma de cultos religiosos, por parte dos hutus, contra a ordem estabelecida e as sujeições impostas pelos tutsi, em finais do século XVIII, através de um culto de iniciação do herói legendário Ryangombe, que seria uma forma de expressar uma sociedade imaginária, com virtude terapêutica e escatológica de redenção. Outro movimento nesse sentido ter-se-ia difundido em meados do século XIX, através do culto do personagem feminino de Nyabingu, entre as regiões que ofereciam resistência à penetração tutsis, que somente chega a dominá-las às vésperas da colonização.
A expansão colonial capitalista dividiu o continente africano entre as potências europeias no final do século XIX (Conferência de Berlim em 1885), tal fato determinou grandes mudanças em todo o continente africano e, também, na região de Ruanda. Primeiramente, Ruanda ficou sob a tutela do Governo Alemão até o final da primeira guerra mundial, sendo unificada ao reino do Burundi pelo nome Ruanda-Urundi. Em 1918, após a primeira guerra mundial, a Bélgica, que já possuía o rico território do Congo, “recebeu como fidei comissio o Mandato da Sociedade das Nações para as colônias alemãs” (RIBEIRO, 1998, p.63) de Ruanda-Urundi. Com isso, tendo em vista que esses territórios faziam fronteira com o Congo, criava-se um grande bloco colonial.
Para essa região, foram implementadas as mesmas práticas coloniais desenvolvidas no Congo e que caracterizavam a colonização belga, tais como a falta de preocupação em criar elites locais, não se preocupando em desenvolver a assimilação dos colonizados, ou parte deles, à metrópole. Também aqui “as potencialidades agrícolas, de matérias primas vegetais e minerais foram explorados por monopólios metropolitanos”, e uma das principais características da colonização belga, o paternalismo de influência racista e autoritário, também se instalara, submetendo as “populações a um atraso e à inferioridade cuidadosamente mantidos” (RIBEIRO, 1998, p.63).
Contudo, houve especificidades nessa dominação, os reinos permaneceram com a sua estrutura dividida nos dois grupos étno-sociais de características “feudais”, a administração se deu de forma indireta (indirect rule), através da existência de dois nwami (reis), assistidos por seus chefes e subchefes, e tendo ao seu lado um residente-conselheiro. Sobre essa especificidade da dominação, Coquery-Vidrovitch (1976) afirma ser provável que, neste domínio, a “categoria privilegiada soubera momentaneamente tomar partido da intervenção européia para reforçar as desigualdades institucionais, mediante a confiscação legalizada do poder e a codificação da divisão do trabalho” (COQUERY-VIDROVITCH, 1976, p.39). Nesse sentido, compreende-se a afirmação de que o colonialismo cristalizou as estruturas já existentes.
Mais precisamente, a cristalização das etnias refere-se ao fato de que a antiga permeabilidade que ocorria entre pastores e agricultores, tutsis e hutus, foi rompida tendo em vista a adoção de critérios racistas que foram, sobretudo, impostos pelos europeus. Estes, para a extração de pedras preciosas, metais e marfim, selecionaram uma mão de obra escrava e a classificaram por estatura e cor da pele, segundo critérios raciocêntricos, independente das concepções autóctones. A Bélgica enviou vários grupos missioneiros católicos para Ruanda, visando a “disciplinar os ruandeses” através da prática religiosa prevendo, inclusive, uma distribuição geográfica do trabalho servil nas plantações de café. Nesse sentido, compreende-se o surgimento de uma elite tutsi, agora em novos moldes, que se empenhou em construir uma nova história, em nome do protetorado belga, fundamentada na segregação racial, agora baseada no critério do nascimento.
Michael Crowder (1999), ao falar sobre a dominação belga, aponta para outras diferenças que surgiram nessa região em relação ao Congo, tais como o fato da autoridade dos chefes nunca ter sido diretamente ameaçada pela administração. Contudo, em Ruanda, a trindade de chefes nas províncias (gado, terra e militares) foi substituída pelo controle de um único chefe, resultando que a coroa tornou-se muito mais importante que no Urundi. Tais especificidades, segundo o autor, estariam ligadas ao fato de que a Bélgica tinha a tutela desses territórios, sobre a supervisão da Liga das Nações, órgão internacional ao qual o governo deveria responder pela conduta administrativa de sua tutela, influenciando o poder aí exercido. Assim, “os Belgas eram mais protetores das estruturas tradicionais em Ruanda-Urundi do que no Congo” (MICHAEL CROWDER, 1999, p.84).
socialismointernacional.org
A colonização não foi pacífica e não ocorreu sem conflitos, a “força pública foi organizada em 1886 e compreendeu contingentes móveis à disposição permanente das autoridades civis, que tiveram que reprimir numerosas sublevações”, durante a segunda guerra mundial, a força reprimiu uma greve que causou sessenta mortos e uma revolta que provocou cem mortos. Também há notícias de uma sublevação em 1957, no distrito de Lomani, contra Kassongo Niembé. Tal “força pública exerceu uma influência muito grande pela sua importante rede de escolas técnicas e profissionais e pelas suas obras sociais” (KI-ZERBO, 1999, vol. II, p.14).
A ONU, a partir da década de 1950, pensando na posterior retirada das autoridades europeias, ou seja, na descolonização política dos territórios, solicitou à Bélgica, através de um plano de democratização, o aumento da participação política dos hutus. Na década de 1950, a Bélgica, influenciada pelos acontecimentos do Congo, começara a pensar na possibilidade de emancipação a longo prazo e, juntamente com a ONU, começam a preparar a descolonização dessa região. Elikia M’Bokolo (1999), afirma que os belgas efetivaram uma política de pré-guerra, com o objetivo declarado, quando se propuseram a “racionalizar e modernizar as estruturas políticas pelo reagrupamento dos cacicados, transformando líderes tradicionais em empregados civis, e pela democratização dos conselhos de reis em Ruanda e Burundi” (ELIKIA M’BOKOLO, 1999, p.209). Tais medidas anteriores à efetiva independência política do país tiveram como conseqüência o acirramento das tensões étnicas entre tutsis e hutus.
A elite hutu educada tirou vantagem dessas modificações políticas, organizou periódicos e manifestos hostis ao monopólio político, econômico e social dos tutsis. Nesse contexto, foram criados os partidos políticos hutus: APROSOMA (Associação para a Promoção Social das Massas) e PARMEHUTU (Partido do Movimento de Emancipação Hutu). Os tutsis concentraram-se nos partidos RADER (Ajuntamento Democrático Ruandês) e UNAR (União Nacional Ruandesa). O período de 1959 a 1962 foi marcado por sérios conflitos, pois a grande maioria da população, os hutus (80%), entraram em oposição violenta com os tutsis, a aristocracia dominante, sistematicamente colocada pelos belgas nas responsabilidades de altos postos religiosos e administrativos. Um exemplo desses conflitos se dá em 1959, quando o nwami Kigeri V ascende ao poder. Não sendo bem visto pelos hutus, começaram muitas desordens e uma chacina de tutsis, onde a intervenção das tropas belgas não apaziguou a violência das reivindicações, que deixou o “saldo de quase 300 mortos, 700 feridos e mais de 1200 presos” (ELIKIA M’BOKOLO, 1999, p.212).
Em 1960, a ONU recomendou que fossem feitas eleições para o governo local como prelúdio à independência. O resultado de tais eleições foi um triunfo para os hutus que, contrariando a tradição colonial, contaram com o apoio dos belgas. Em 20 de janeiro de 1961, o governo belga decidiu adiar indefinidamente as eleições marcadas para o dia 28, fato respondido pelo povo através do “Golpe de Estado Gitarama”, efetuado no mesmo 28 de janeiro. “Os representantes públicos eleitos, acompanhados por 25000 pessoas”, proclamaram a deposição de nwami Kigeri V - que já havia deixado Ruanda em maio de 1960 -, a fundação da República, “a eleição imediata de um governo e de um chefe de estado, e a adoção de uma constituição” (ELIKIA M’BOKOLO, 1999, p.213).
As eleições foram realizadas com a supervisão da ONU, em setembro de 1961, e legitimaram o golpe, onde o dirigente do partido PARMEHUTU, Kayibanda, tornou-se chefe do governo. Com a independência, Ruanda separou-se do Burundi. O governo belga concedeu a autonomia em dezembro de 1961, satisfeito em não ter que combater as tensões étnicas. Uma comissão das Nações Unidas preparou o caminho para a independência, ocorrida em 1962, mas não teve sucesso em manter a união de Ruanda e Burundi, que era desejada por ela, mas rejeitada pelos dois países.
Entre 1961 e 1973, seguiram ocorrendo conflitos, onde o PAEMEHUTU assassinou aproximadamente 20 mil tutsis e provocou a fuga de 300 mil para os países vizinhos (Uganda, Burundi, Tanzânia). Nesse contexto, os tutsis também tiveram suas terras confiscadas e foram excluídos de todos órgãos administrativos.
Em 1994, no dia 6 de abril, Habyarimana e o presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, também hutu, morreram em um atentado contra o avião em que estavam. Tal episódio deu início a um genocídio contra os tutsis e hutus moderados, cujas mortes são estipuladas entre 800 mil e 1 milhão de pessoas (90% tutsi) em um lapso de cem dias. Tal episódio causou um deslocamento populacional de milhares de pessoas para campos de refugiados e países vizinhos, principalmente, para a República Democrática do Congo (que na época chamava-se Zaire), assim como um triste número de mulheres violentadas.
Poucos dias após o início do genocídio, a ONU, com dez baixas, abandona Ruanda junto com 600 residentes, em sua maioria, franceses. Somente em julho, enquanto o exército Frente Patriótica Ruandesa toma a capital Kigali, a ONU reenvia tropas para garantir a instauração de um novo Governo, no qual o general Paul Kagame, dirigente da FPR, ocupa o cargo de vice-presidente, tendo o hutu Bizimungu como presidente.
De forma geral, a maioria dos atores citados fazem referência ao estado de indigência que os territórios de Ruanda e Burundi ficaram após a espoliação econômica colonial e os conflitos permanentes, para os quais tal colonização contribuiu em grande parte. Atualmente, Ruanda, tem poucos recursos: a agricultura gera 46% do PIB, cultivam-se milho, sorgo, batata e amendoim, além de café e chá para exportação. O país possui gado bovino, caprino e suíno e reservas de gás natural, de tungstênio e de estanho. Como outros países africanos, Ruanda, após a independência política, inseriu-se perifericamente no mercado mundial caracterizado pela “deterioração constante do valor de seus produtos primários em relação aos bens industrializados produzidos nos países centrais” (MUNIZ FERREIRA, p.4).
Os interesses econômicos desses países ocidentais, contudo, prevalecem ditando a vida política do continente africano mesmo após as independências. Os monopólios e espoliações das riquezas africanas são hoje praticados pelas grandes corporações ditas multinacionais, por cujos interesses zelam os Estados centrais, num processo conhecido como neocolonialismo. A luta pelo poder em Ruanda é também uma luta entre interesses neocolonialistas. De uma forma geral, o que mais interessa aos países centrais é a própria instabilidade política do continente, permanecendo válida a máxima colonial “dividir para dominar”. O governo de Ruanda, em 1997, entrou em guerra com outros países situados na fronteira leste, a República Democrática do Congo, Uganda e Burundi, disputando as reservas de coltão (columbiotântalo), localizadas nas reservas florestais.
sustentabilidadenaoepalavraeaccao.blogspot.com - Cerca de 64% das reservas mundiais de coltan estão na República Democrática do Congo
O coltão é matéria prima para chips e conexões eletrônicas de baterias, tendo extrema importância na produção das mais diversas tecnologias, sendo 60% destinado à fabricação de aparelhos de telefone celulares. Mesmo sem ter o minério em seu território, Ruanda é hoje um dos maiores exportadores mundiais da matéria-prima. O interesse estratégico das grandes nações capitalistas relacionado ao minério já estavam colocados quando do genocídio de 1994 e estão por traz de seu Estado atual. É bom lembrarmos disso, pois quando tocamos em nossos celulares estamos sujando as mãos com sangue africano.
Fonte:zurdo-zurdo.blogspot.com/.../o-genocdio-de-ruanda-na-histria-e-no....
A história de Ruanda pode ser remontada através do estudo das obras dos autores que se dedicaram à compreensão da história da chamada “África Negra” ou subsaariana. A história deste país, contrapondo-se à concepção eurocêntrica de uma certa imobilidade e “exotismo” da história africana, revela que podemos analisá-la através de categorias históricas e sociológicas que cabem à análise de qualquer outro lugar do mundo.
A origem do sistema hierárquico de etnias-classe nos territórios de Ruanda deu-se quando um povoado que ali existia, formado por uma mistura heterogênea de famílias e clãs banto, que demonstravam escassa organização política, foi “invadido” por um grupo relativamente homogêneo de pastores vindos do norte, chamados “tutsi hamitas”, que introduziram na região a criação de animais, culturas agrícolas desconhecidas e uma hierarquia social baseada em castas. A partir do século X, ter-se-iam estabelecido várias dinastias tutsis, que depois se integraram para formar o estado de Ruanda, aproximadamente, pelo século XV. Os povos vencidos teriam sido “assimilados graças a um sistema que os convertia em vassalos, assim, os bantos (Hutus), receberam o direito de utilizar o gado em troca de sua lealdade e da prestação de serviços” ( BETHWELL OGOT, 1980-88, p. 528).
edu.glogster.com - The groups were Hutu, Tutsi, or Twa.
Ao apresentar as relações sociais do pequeno reino, Coquery-Vidrovitch (1976), problematiza a utilização do conceito de feudalismo, por ter sido utilizado, muitas vezes, para qualificar relações sociais mais ou menos deformadas pela ótica ocidental dos primeiros observadores. A autora afirma que suas estruturas políticas se baseavam por uma “autoridade relativamente firme de um rei assistido por governadores de províncias, nomeados por ele”, encarregados de arrecadar tributos. Assim, define as relações sociais por “relações de dependência pessoal que uniam os clientes com seu patrão”, onde uma “população campesina se encontrava a serviço dos chefes políticos ou do clã” que tinha o controle sobre o gado (COQUERY-VIDROVITCH, 1976, p.38 e 39).
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A origem dessa formação social também é remontada pelas tradições orais, sendo uma rica fonte para o estudo das ideologias desta sociedade, pois a mitologia cumpre um papel social ao explicar não somente a origem da sociedade, como valida a organização social, a repartição dos poderes e o controle dos bens. Os mitos de Ruanda, dessa forma, justificariam o escalonamento desigual das três camadas da população – tutsi, hutu, twa – e a institucionalização da monarquia tutsi, ao afirmar a origem celeste destes e o seu caráter de portadores de uma civilização superior. Nesse sentido, tal explicação baseada em tempos primordiais, carregada de dupla intenção, divina e humana, conserva-se porque cumpre uma função social e se modifica conforme o centro de interesse.
A realeza tinha uma concepção de caráter divino, onde o rei (nwami) transcendia todas as castas, e sua administração, assentada na divisão hierárquica entre as castas e no monopólio dos principais bens de produção, gado e também a terra, era realizada distritalmente por dois chefes independentes: “o chefe do solo, responsável pelo censo agrícola e juiz nas questões de bens de raiz, e o chefe do gado, com competência nos impostos sobre as manadas” (KI-ZERBO, 1999, vol. I, p.398). Haveria também uma terceira autoridade, o chefe do exército local, assim como múltiplas residências reais, cada uma delas gerida por uma esposa e concubina do rei que dependiam diretamente da autoridade real.
civilizacoesafricanas.blogspot.com - Os tutsis (em kinyarwanda e kirundi: batutsi
Estando os tutsis no topo da sociedade, repugnavam os trabalhos agrícolas, “consagravam seus amplos lazeres à eloquência, à poesia, aos jogos subtis do espírito, bebendo hidromel” (KI-ZERBO,1999, vol. I, p.399), os hutus formavam o essencial da população, eram “camponeses que sofriam com frequência as arbitrariedades dos aristocratas e eram englobados num sistema de clientela em relação aos tutsis”, que lhe traziam a proteção. Os twas constituíam uma “ínfima etnia residual que se distingue pela sua muito pequena estatura e pela sua especialização na caça e na cerâmica” (KI-ZERBO, 1999, vol. I, p.399).
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Em princípio, havia uma permeabilidade entre os grupos, através do matrimônio ou por alternância de funções. Bethwell Allan Ogot, (1980-88), a esse respeito, assinala que as tradições da região interlacustre africana indicam que mais que uma divisão étnica, a divisão entre os pastores e agricultores era relacionada à ocupação, assim, se um pastor “perdesse seu gado e não pudesse reavê-lo, convertia-se em agricultor, enquanto o agricultor que adquirisse gado tornava-se pastor, ao que tudo indica, essas mudanças aconteciam frequentemente, tanto no plano individual, quanto no nível de grupos” (BETHWELL OGOT, 1980-88, p. 528).
A origem do Estado centralizado não fora obra apenas dos pastores vindos do norte, a sua formação incorporou ritos e instituições políticas dos agricultores, assim como algumas importantes funções rituais parecem ter sido confiadas aos agricultores que, assim, “adquiriram participação e interesse no sistema” (BETHWELL OGOT, 1980-88, p.530). Coquery-Vidrovitch (1976) afirma que houve protestos em forma de cultos religiosos, por parte dos hutus, contra a ordem estabelecida e as sujeições impostas pelos tutsi, em finais do século XVIII, através de um culto de iniciação do herói legendário Ryangombe, que seria uma forma de expressar uma sociedade imaginária, com virtude terapêutica e escatológica de redenção. Outro movimento nesse sentido ter-se-ia difundido em meados do século XIX, através do culto do personagem feminino de Nyabingu, entre as regiões que ofereciam resistência à penetração tutsis, que somente chega a dominá-las às vésperas da colonização.
A expansão colonial capitalista dividiu o continente africano entre as potências europeias no final do século XIX (Conferência de Berlim em 1885), tal fato determinou grandes mudanças em todo o continente africano e, também, na região de Ruanda. Primeiramente, Ruanda ficou sob a tutela do Governo Alemão até o final da primeira guerra mundial, sendo unificada ao reino do Burundi pelo nome Ruanda-Urundi. Em 1918, após a primeira guerra mundial, a Bélgica, que já possuía o rico território do Congo, “recebeu como fidei comissio o Mandato da Sociedade das Nações para as colônias alemãs” (RIBEIRO, 1998, p.63) de Ruanda-Urundi. Com isso, tendo em vista que esses territórios faziam fronteira com o Congo, criava-se um grande bloco colonial.
Para essa região, foram implementadas as mesmas práticas coloniais desenvolvidas no Congo e que caracterizavam a colonização belga, tais como a falta de preocupação em criar elites locais, não se preocupando em desenvolver a assimilação dos colonizados, ou parte deles, à metrópole. Também aqui “as potencialidades agrícolas, de matérias primas vegetais e minerais foram explorados por monopólios metropolitanos”, e uma das principais características da colonização belga, o paternalismo de influência racista e autoritário, também se instalara, submetendo as “populações a um atraso e à inferioridade cuidadosamente mantidos” (RIBEIRO, 1998, p.63).
Contudo, houve especificidades nessa dominação, os reinos permaneceram com a sua estrutura dividida nos dois grupos étno-sociais de características “feudais”, a administração se deu de forma indireta (indirect rule), através da existência de dois nwami (reis), assistidos por seus chefes e subchefes, e tendo ao seu lado um residente-conselheiro. Sobre essa especificidade da dominação, Coquery-Vidrovitch (1976) afirma ser provável que, neste domínio, a “categoria privilegiada soubera momentaneamente tomar partido da intervenção européia para reforçar as desigualdades institucionais, mediante a confiscação legalizada do poder e a codificação da divisão do trabalho” (COQUERY-VIDROVITCH, 1976, p.39). Nesse sentido, compreende-se a afirmação de que o colonialismo cristalizou as estruturas já existentes.
Mais precisamente, a cristalização das etnias refere-se ao fato de que a antiga permeabilidade que ocorria entre pastores e agricultores, tutsis e hutus, foi rompida tendo em vista a adoção de critérios racistas que foram, sobretudo, impostos pelos europeus. Estes, para a extração de pedras preciosas, metais e marfim, selecionaram uma mão de obra escrava e a classificaram por estatura e cor da pele, segundo critérios raciocêntricos, independente das concepções autóctones. A Bélgica enviou vários grupos missioneiros católicos para Ruanda, visando a “disciplinar os ruandeses” através da prática religiosa prevendo, inclusive, uma distribuição geográfica do trabalho servil nas plantações de café. Nesse sentido, compreende-se o surgimento de uma elite tutsi, agora em novos moldes, que se empenhou em construir uma nova história, em nome do protetorado belga, fundamentada na segregação racial, agora baseada no critério do nascimento.
Michael Crowder (1999), ao falar sobre a dominação belga, aponta para outras diferenças que surgiram nessa região em relação ao Congo, tais como o fato da autoridade dos chefes nunca ter sido diretamente ameaçada pela administração. Contudo, em Ruanda, a trindade de chefes nas províncias (gado, terra e militares) foi substituída pelo controle de um único chefe, resultando que a coroa tornou-se muito mais importante que no Urundi. Tais especificidades, segundo o autor, estariam ligadas ao fato de que a Bélgica tinha a tutela desses territórios, sobre a supervisão da Liga das Nações, órgão internacional ao qual o governo deveria responder pela conduta administrativa de sua tutela, influenciando o poder aí exercido. Assim, “os Belgas eram mais protetores das estruturas tradicionais em Ruanda-Urundi do que no Congo” (MICHAEL CROWDER, 1999, p.84).
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A colonização não foi pacífica e não ocorreu sem conflitos, a “força pública foi organizada em 1886 e compreendeu contingentes móveis à disposição permanente das autoridades civis, que tiveram que reprimir numerosas sublevações”, durante a segunda guerra mundial, a força reprimiu uma greve que causou sessenta mortos e uma revolta que provocou cem mortos. Também há notícias de uma sublevação em 1957, no distrito de Lomani, contra Kassongo Niembé. Tal “força pública exerceu uma influência muito grande pela sua importante rede de escolas técnicas e profissionais e pelas suas obras sociais” (KI-ZERBO, 1999, vol. II, p.14).
A ONU, a partir da década de 1950, pensando na posterior retirada das autoridades europeias, ou seja, na descolonização política dos territórios, solicitou à Bélgica, através de um plano de democratização, o aumento da participação política dos hutus. Na década de 1950, a Bélgica, influenciada pelos acontecimentos do Congo, começara a pensar na possibilidade de emancipação a longo prazo e, juntamente com a ONU, começam a preparar a descolonização dessa região. Elikia M’Bokolo (1999), afirma que os belgas efetivaram uma política de pré-guerra, com o objetivo declarado, quando se propuseram a “racionalizar e modernizar as estruturas políticas pelo reagrupamento dos cacicados, transformando líderes tradicionais em empregados civis, e pela democratização dos conselhos de reis em Ruanda e Burundi” (ELIKIA M’BOKOLO, 1999, p.209). Tais medidas anteriores à efetiva independência política do país tiveram como conseqüência o acirramento das tensões étnicas entre tutsis e hutus.
A elite hutu educada tirou vantagem dessas modificações políticas, organizou periódicos e manifestos hostis ao monopólio político, econômico e social dos tutsis. Nesse contexto, foram criados os partidos políticos hutus: APROSOMA (Associação para a Promoção Social das Massas) e PARMEHUTU (Partido do Movimento de Emancipação Hutu). Os tutsis concentraram-se nos partidos RADER (Ajuntamento Democrático Ruandês) e UNAR (União Nacional Ruandesa). O período de 1959 a 1962 foi marcado por sérios conflitos, pois a grande maioria da população, os hutus (80%), entraram em oposição violenta com os tutsis, a aristocracia dominante, sistematicamente colocada pelos belgas nas responsabilidades de altos postos religiosos e administrativos. Um exemplo desses conflitos se dá em 1959, quando o nwami Kigeri V ascende ao poder. Não sendo bem visto pelos hutus, começaram muitas desordens e uma chacina de tutsis, onde a intervenção das tropas belgas não apaziguou a violência das reivindicações, que deixou o “saldo de quase 300 mortos, 700 feridos e mais de 1200 presos” (ELIKIA M’BOKOLO, 1999, p.212).
Em 1960, a ONU recomendou que fossem feitas eleições para o governo local como prelúdio à independência. O resultado de tais eleições foi um triunfo para os hutus que, contrariando a tradição colonial, contaram com o apoio dos belgas. Em 20 de janeiro de 1961, o governo belga decidiu adiar indefinidamente as eleições marcadas para o dia 28, fato respondido pelo povo através do “Golpe de Estado Gitarama”, efetuado no mesmo 28 de janeiro. “Os representantes públicos eleitos, acompanhados por 25000 pessoas”, proclamaram a deposição de nwami Kigeri V - que já havia deixado Ruanda em maio de 1960 -, a fundação da República, “a eleição imediata de um governo e de um chefe de estado, e a adoção de uma constituição” (ELIKIA M’BOKOLO, 1999, p.213).
As eleições foram realizadas com a supervisão da ONU, em setembro de 1961, e legitimaram o golpe, onde o dirigente do partido PARMEHUTU, Kayibanda, tornou-se chefe do governo. Com a independência, Ruanda separou-se do Burundi. O governo belga concedeu a autonomia em dezembro de 1961, satisfeito em não ter que combater as tensões étnicas. Uma comissão das Nações Unidas preparou o caminho para a independência, ocorrida em 1962, mas não teve sucesso em manter a união de Ruanda e Burundi, que era desejada por ela, mas rejeitada pelos dois países.
Entre 1961 e 1973, seguiram ocorrendo conflitos, onde o PAEMEHUTU assassinou aproximadamente 20 mil tutsis e provocou a fuga de 300 mil para os países vizinhos (Uganda, Burundi, Tanzânia). Nesse contexto, os tutsis também tiveram suas terras confiscadas e foram excluídos de todos órgãos administrativos.
pt.wikinoticia.com- Insepultos ossos de vítimas do genocídio em Ruanda um memorial.
Em 1973, o major general Juvénal Habyarimana, que era ministro da defesa e participante de outro setor do PARMEHUTU, dá um golpe de estado e destitui o seu primo Grégoire Kayibanda, dissolve a Assembléia Nacional e abole todas as atividades políticas. Em 1978, foram realizadas eleições que confirmaram a presidência de Habyarimana e a constituição do partido único. Em 1883 e 1888, novamente Habyarimana é reeleito. Contudo, a partir de meados da década de 1980, seu governo começa a ser questionado, fato que está relacionado com a crise econômica, devido à queda do preço do café, que “representava 75% das exportações”. Em 1990, em resposta a pressões públicas por reformas políticas, Habyarimana anunciou a intenção de transformar Ruanda numa democracia multipartidária. Neste mesmo ano, cerca de 7 mil exilados tutsis invadem Ruanda organizados na Frente Patriótica Ruandesa (FPR), efetuando uma série de confrontos com as tropas do governo.Em 1994, no dia 6 de abril, Habyarimana e o presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, também hutu, morreram em um atentado contra o avião em que estavam. Tal episódio deu início a um genocídio contra os tutsis e hutus moderados, cujas mortes são estipuladas entre 800 mil e 1 milhão de pessoas (90% tutsi) em um lapso de cem dias. Tal episódio causou um deslocamento populacional de milhares de pessoas para campos de refugiados e países vizinhos, principalmente, para a República Democrática do Congo (que na época chamava-se Zaire), assim como um triste número de mulheres violentadas.
Poucos dias após o início do genocídio, a ONU, com dez baixas, abandona Ruanda junto com 600 residentes, em sua maioria, franceses. Somente em julho, enquanto o exército Frente Patriótica Ruandesa toma a capital Kigali, a ONU reenvia tropas para garantir a instauração de um novo Governo, no qual o general Paul Kagame, dirigente da FPR, ocupa o cargo de vice-presidente, tendo o hutu Bizimungu como presidente.
De forma geral, a maioria dos atores citados fazem referência ao estado de indigência que os territórios de Ruanda e Burundi ficaram após a espoliação econômica colonial e os conflitos permanentes, para os quais tal colonização contribuiu em grande parte. Atualmente, Ruanda, tem poucos recursos: a agricultura gera 46% do PIB, cultivam-se milho, sorgo, batata e amendoim, além de café e chá para exportação. O país possui gado bovino, caprino e suíno e reservas de gás natural, de tungstênio e de estanho. Como outros países africanos, Ruanda, após a independência política, inseriu-se perifericamente no mercado mundial caracterizado pela “deterioração constante do valor de seus produtos primários em relação aos bens industrializados produzidos nos países centrais” (MUNIZ FERREIRA, p.4).
Os interesses econômicos desses países ocidentais, contudo, prevalecem ditando a vida política do continente africano mesmo após as independências. Os monopólios e espoliações das riquezas africanas são hoje praticados pelas grandes corporações ditas multinacionais, por cujos interesses zelam os Estados centrais, num processo conhecido como neocolonialismo. A luta pelo poder em Ruanda é também uma luta entre interesses neocolonialistas. De uma forma geral, o que mais interessa aos países centrais é a própria instabilidade política do continente, permanecendo válida a máxima colonial “dividir para dominar”. O governo de Ruanda, em 1997, entrou em guerra com outros países situados na fronteira leste, a República Democrática do Congo, Uganda e Burundi, disputando as reservas de coltão (columbiotântalo), localizadas nas reservas florestais.
sustentabilidadenaoepalavraeaccao.blogspot.com - Cerca de 64% das reservas mundiais de coltan estão na República Democrática do Congo
O coltão é matéria prima para chips e conexões eletrônicas de baterias, tendo extrema importância na produção das mais diversas tecnologias, sendo 60% destinado à fabricação de aparelhos de telefone celulares. Mesmo sem ter o minério em seu território, Ruanda é hoje um dos maiores exportadores mundiais da matéria-prima. O interesse estratégico das grandes nações capitalistas relacionado ao minério já estavam colocados quando do genocídio de 1994 e estão por traz de seu Estado atual. É bom lembrarmos disso, pois quando tocamos em nossos celulares estamos sujando as mãos com sangue africano.
Fonte:zurdo-zurdo.blogspot.com/.../o-genocdio-de-ruanda-na-histria-e-no....
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