Nação cidadã: O processo de consolidação da democracia no Brasil
Do Império às eleições deste ano, a trajetória da democracia alcançou agora o auge na história do Brasil. Mas quais as chances reais de que essa fase não seja um mais um breve intervalo entre longos períodos de ditadura?
Rodrigo Cavalcante | 04/04/2012 17h38
Da última vez que o Brasil perdeu para a Holanda em uma Copa do
Mundo, em 1974 (antes do fracasso na África do Sul), apenas 476
brasileiros (dos mais de 100 milhões então) votaram para presidente da
República. Os privilegiados faziam parte de um colégio eleitoral montado
pelo governo militar para garantir a posse de mais um general no poder,
Ernesto Geisel, eleito com 400 votos, contra 76 dados a Ulisses
Guimarães, do MDB, que se lançou como "anticandidato" para marcar
(o)posição. Hoje, mais de 135 milhões de brasileiros podem votar para
presidente, o que faz do país a terceira maior democracia do planeta. E
não é apenas a multiplicação do eleitorado em 284 mil vezes que
impressiona. "Outros pontos básicos, como as liberdades de expressão e
de organização e a capacidade de resolver conflitos por meio das
instituições, parecem consolidados", diz o filósofo Renato Janine
Ribeiro, da USP. "No período democrático anterior, entre 1946 e 1964,
havia a constante ameaça de golpe militar."
O Brasil completa seu
primeiro quarto de século ininterrupto como uma democracia de massas.
Será que, agora, ela é um caminho sem volta? Para o historiador José
Murilo de Carvalho, autor de Cidadania no Brasil, trata-se de um longo
(e ainda incompleto) caminho, cheio de desvios, retornos e surpresas.
Caminho que, curiosamente, começa após a Independência, com uma
Constituição imposta pelo primeiro imperador nacional.
O Brasil independente e o voto
Não
se fala propriamente em democracia na Colônia nem no Brasil Imperial,
claro, uma vez que reis e imperadores não são eleitos. Eleições para
certos cargos, como o equivalente ao de vereador, até ocorriam no
período colonial, mas a autoridade máxima era a Metrópole portuguesa
(embora, na prática houvesse certa autonomia, especialmente nas áreas
menos povoadas). Mesmo após a Independência, dom Pedro I criou o chamado
Poder Moderador para que não corresse o risco de ser uma figura
decorativa. Enquanto na maioria das monarquias constitucionais prevalece
a máxima de que o monarca reina, mas não governa, no Brasil o imperador
escolhia os ministros, o primeiro-ministro e os presidentes provinciais
(posto equivalente ao de governador de estado). Falar em cidadania
antes do fim da escravidão é um contrasenso. Ainda assim, historiadores
admitem que, na observação dos direitos políticos, a Constituição
imposta em 1824 foi, em muitos aspectos, mais inclusiva no acesso ao
voto do que viria a ser, por exemplo, a de 1891, a primeira republicana.
Podiam
votar todos os homens de 25 anos ou mais que tivessem a renda mínima de
100 mil réis. A eleição era indireta: um grupo de votantes escolhia os
eleitores que elegiam os representantes. Apesar, ainda, da exclusão de
mulheres e escravos (milhões de pessoas), a situação no Brasil era
melhor do que a de muitos países considerados avançados: 13% da
população (descontados os escravos), em 1872, votaram. Na mesma época,
eram 7% na Inglaterra, 2% na Itália e 9% em Portugal. No quesito
"qualidade" do voto, porém, a coisa mudava de figura. Somente 15 em cada
100 eleitores sabiam ler e escrever e 90% viviam em áreas rurais, onde
seus votos eram controlados por grandes latifundiários. Estes eram quase
sempre comandantes da Guarda Nacional, o que soava ainda mais ameaçador
para quem quisesse pensar diferente do mandachuva local. Nessas
condições, não é de estranhar que as eleições fossem tumultuadas e
violentas, lideradas frequentemente por três personagens: o capanga, o
cabalista e o fósforo. A função do capanga, que sobrevive até hoje em
alguns rincões do país, era proteger seu candidato e ameaçar os
adversários. Os mais eficientes conseguiam fazer com que os eleitores
dos concorrentes não saíssem de casa para votar. Ao cabalista cabia
manter os eleitores reunidos, em geral com a oferta de comes e bebes, em
um único local até a hora do voto - para garantir que eles não
"mudassem de lado". Como muitas dessas reuniões festivas ocorriam em
currais nas fazendas, vem daí a expressão "curral eleitoral". E,
finalmente, havia a figura do fósforo, o sujeito que fraudava as
eleições se apresentando falsamente em nome do maior número possível de
eleitores, aproveitando-se dos sistemas precários de identificação. E,
mesmo quando nenhuma dessas três figuras atrapalhava o pleito, isso não
garantia que ele fosse limpo, já que eram frequentes atas redigidas como
se tudo tivesse ocorrido normalmente nas fraudulentas votações "a bico
de pena". Era possível, então, eleger vereador, juiz de paz, deputado e
senador.
Em 1881, porém, uma nova lei restringiu ainda mais o
número de eleitores. Apesar de ter eliminado anacronismos como a eleição
indireta, novas exigências quanto à comprovação de renda e a exclusão
dos analfabetos colocaram de fora, de uma só vez, 90% do eleitorado. A
participação da população masculina que votava caiu para 0,8% nas
eleições de 1886. Restava esperar que a República, proclamada três anos
depois, pudesse ampliar a participação no processo eleitoral. Porém não
foi exatamente isso o que aconteceu.
República sem povo
Proclamada
por militares insatisfeitos com o tratamento dado aos quartéis -
aliados a proprietários rurais sem compromissos com a monarquia
pós-abolição -, a República deu início a uma prática recorrente no
Brasil: a tomada do poder pelos militares em momentos de crise. Apesar
da retórica democrática do novo regime, ele pouco mudou em termos de
participação popular. Na primeira eleição para a Presidência da
República, em 1894, votou apenas 2,2% da população, bem menos do que no
pleito de 1872. Pode-se dizer, ainda, que em vários períodos
republicanos houve menos liberdade de expressão do que no Segundo
Reinado (dom Pedro II, por exemplo, não censurava a imprensa).
De
qualquer forma, a República permitiu a eleição do chefe de Estado e de
Governo e dos presidentes dos estados, descentralizando o poder. Com o
tempo, isso favoreceu as elites locais, agrupadas em partidos únicos
para bloquear a oposição. A aliança entre oligarquias estaduais definiu a
política até 1930. Também conhecida como República Velha ou Café com
Leite, ela manteve as fraudes, os capangas, os currais e o domínio dos
"coronéis", os proprietários rurais chamados assim mesmo após o fim da
Guarda Nacional, em 1918. Quando ficou claro que a República não foi um
grande salto democrático, a insatisfação, de novo, seria liderada nos
quartéis, dessa vez por tenentes que também representavam os interesses
da classe média urbana. Quando o candidato desse grupo, Getúlio Vargas,
foi derrotado pelo governista Julio Prestes, sob a suspeita de fraude,
pouca gente desconfiava que algo iria mudar no país. Até que uma série
de eventos (como o crash de 1929 e o assassinato do governador da
Paraíba, João Pessoa) precipitou a Revolução de 1930 e colocou Vargas no
poder. Mais uma vez, a democracia seria adiada.
Entre ditaduras e eleições
Do
ponto de vista dos direitos sociais, o governo Vargas foi um marco
positivo. Implantou uma série de leis para proteger os trabalhadores,
como a regulamentação da jornada de oito horas e as caixas de
previdência. Sobre os direitos políticos, porém, tudo é diferente.
Getúlio deu um golpe em 1937, proclamou uma nova constituição e governou
como ditador até 1945, colocando na prisão quem discordava dele. A
imprensa era censurada e cooptada. Somente após a Segunda Guerra o país
viveria, enfim, o que seria considerado seu primeiro período
democrático. Em 1945, foram realizadas eleições para presidente e para
uma nova Assembleia Constituinte. A liberdade de imprensa e a de
organização política foram restabelecidas e adotadas eleições regulares
para presidente, senadores, deputados federais, governadores, deputados
estaduais, prefeitos e vereadores.
Dessa vez, poderiam votar
homens e mulheres acima de 18 anos. A exclusão do voto do analfabeto,
porém, permaneceu. Ainda assim, a participação da população na política
cresceu significativamente. Em 1930, os votantes não passavam de 5,6% da
população. Na eleição de 1945, chegaram a 13,4%, em 1950, já foram
15,9% às urnas e, em 1960, 18%. Mas, a partir do retorno de Vargas ao
poder, em 1950 (agora eleito), o acirramento da disputa entre seu grupo e
o da oposição (encabeçada por Carlos Lacerda, da UDN) criou um clima de
instabilidade que colocaria novamente os militares em alerta.
Após
o suicídio de Vargas, em 1954, os dez anos seguintes foram marcados por
constantes ameaças de golpe. Em 1955, a posse do presidente Juscelino
Kubitschek foi assegurada por uma intervenção do ministro da guerra, o
general Henrique Lott. Quando o sucessor de JK, Jânio Quadros, renunciou
meses após tomar posse, em 1961, abriu-se nova crise. Os quartéis não
aceitavam que o vice-presidente, João Goulart, assumisse o governo. Um
arranjo casuísta implantou o parlamentarismo para que ele fosse só
primeiro-ministro. Após um plebiscito realizado em 1963, Jango foi
reempossado presidente e governou até março de 1964, quando um novo
golpe militar encerrou mais uma vez a democracia no país.
A esperada redemocratização
O
general Castelo Branco tomou posse prometendo restabelecer logo a
democracia. O resto da história é sabido: a ditadura durou duas décadas.
Houve eleições diretas para vereador, deputados, senadores e
governadores. Mas, até a escolha de Tancredo Neves, em 1985, foram seis
"eleições" indiretas para presidente. As duas primeiras, que elegeram
Castelo Branco e Costa e Silva, se deram pelos votos do Congresso
Nacional (descontados todos os políticos cassados). Com a Constituição
de 1967 (imposta e não votada), criou-se um Colégio Eleitoral de
delegados e integrantes do Congresso para escolher o presidente, que
funcionou a partir de 1974, quando Geisel venceu (e o Brasil perdeu da
Holanda).
O próprio Geisel deu início à abertura "lenta e
gradual" até que um civil pudesse dirigir a nação. Milhões de pessoas
foram às ruas exigir as Diretas Já - pelo direito de eleger o
presidente, entre outras demandas. Mesmo após a sua rejeição, a pressão
popular fez com que Tancredo fosse eleito pelo Congresso (contra Paulo
Maluf) para suceder o general João Batista Figueiredo. A morte do
escolhido fez José Sarney presidente.
A Constituição de 1988
confirmou o voto a todos os brasileiros acima dos 18 anos (inclusive
analfabetos) e tornou facultativa a participação dos jovens acima dos
16. No ano seguinte, mais de 82 milhões de eleitores puderam votar à
Presidência. E milhares saíram às ruas, em 1992, para exigir o
impeachment do eleito Fernando Collor. "Foi um teste de maturidade
democrática pelo qual o país passou sem grandes traumas", afirma
Ribeiro.
De lá para cá, o eleitorado saltou para mais de 135
milhões. Mas a expansão do voto garante que a democracia esteja
assegurada? "Já estamos numa fase de aperfeiçoamento", diz Luciana
Gross, cientista política da FGV. A criação de instituições como o
Conselho Nacional de Justiça seria um exemplo dessa etapa, juntamente
com mudanças que nascem da iniciativa popular, como a lei que veta a
eleição de políticos condenados por tribunais colegiados (Ficha Limpa).
Não
se pode afirmar com certeza se uma democracia está ou não consolidada a
não ser se comparada ao regime de outros países democráticos, diz a
cientista política Maria Tereza Sadek, da USP. Segundo ela, apesar da
evolução dos direitos políticos, o Brasil está longe dos padrões
aceitáveis de democratização por problemas como a desigualdade social e a
baixa escolaridade - o que impede o exercício pleno e consciente dos
direitos políticos. Ainda assim, ela e a maioria dos analistas não
identificam no horizonte o risco de um novo golpe militar. Até porque,
diferentemente de outros períodos, as lideranças militares não se
confundem mais com as políticas (nas décadas de 1940 e 50, por exemplo, o
general Dutra e o brigadeiro Lott disputavam o voto para presidente). A
ameaça por aqui, avaliam, surgiria da ascensão de algum grupo
autoritário, disposto a "reformar a Constituição", o que não desponta
hoje na cena política. Ou seja: mantida a atual tendência, vai ser cada
vez mais difícil culpar alguém pelo respeito ou não das regras do jogo
democrático. Tudo indica que a maior parte da responsabilidade pelo
futuro da democracia está mesmo nas mãos dos 135 milhões de brasileiros
em ação nas urnas este ano.
"É a economia, estúpido!"
A relação entre estabilidade política e econômica
Toda
vez que um presidente é bem avaliado nos Estados Unidos, logo saca-se a
máxima acima, ou seja, a de que, quando a economia vai bem, todo o
governo passa a ser bem avaliado. A mesma leitura se aplica aqui? Qual o
peso do fim das altas taxas de inflação no Brasil para a estabilidade
política do país? Apesar de não existir uma relação científica direta
entre democracia e pujança econômica (no início da década de 1970, em
pleno regime de exceção, por exemplo, o Brasil viveu o chamado Milagre
Econômico), pode-se afirmar que as crises no bolso do eleitor são sempre
um prato cheio para a ascensão de grupos autoritários. Após a quebra da
Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, regimes autoritários ascenderam
em vários países do mundo, inclusive aqui. "No fundo, trata-se de um
ciclo virtuoso", diz o filósofo Renato Janine Ribeiro. "A democracia é
fortalecida pela estabilidade econômica, assim como a economia é
fortalecida pela democracia." Ele lembra que, não fosse pelo arranjo
político democrático construído pós-impeachment, em 1993, durante o
governo Itamar, por exemplo, um plano econômico como o Real talvez não
tivesse condições de ser implantado.
A duras penas
A lenta conquista de direitos políticos no País
1500 - Colônia
Primeiras eleições
A estreia foi em 1532, para o conselho da vila de São Vicente. O voto era definido por posição social, renda e idade, restrito a homens, mas incorporava os analfabetos.
1822 - Império
Lei Saraiva
Em 1881, o decreto aumentou a renda mínima dos eleitores de 100 mil para 200 mil réis e adotou a eleição direta para certos cargos, como vereador. Mas, em seguida, os analfabetos foram excluídos.
1889 - Rep. Velha
Republicanos
A Constituição de 1891 confirma a redução da idade mínima para votar (de 25 para 21 anos). Cai a exigência de renda e a eleição direta passou a vigorar para todos os cargos. As elites faziam valer o voto de cabresto.
1930 - Era Vargas
Inclusão
As mulheres podem ir às urnas e se eleger desde 1932. Na mesma época, o voto torna-se obrigatório, com idade mínima de 18 anos. Os analfabetos foram incluídos em 1985.
1945 - Transição democratica
Fraudes
A partir dos anos 1950, medidas como a adoção do voto secreto reduzem as fraudes. A Justiça Eleitoral existia desde os anos 1930. As urnas eletrônicas surgem em 1996.
1964 - Ditadura militar
1985 - Nova República
Fonte: guiadoestudante.abril.com.br › ... › Estudar › Aventuras na História
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