Economia Circular: Comunidade amazônica transforma resíduos em insumos
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Uma nova forma de cidadania e ação comunitária está sendo praticada em alguns municípios de pequeno porte da Amazônia. Pesquisa de campo realizada no município de Carauari, localizado a duas horas de avião ou cinco dias de barco de Manaus, encontrou uma população muito organizada, engajada em um tipo de economia circular que transforma os resíduos em recursos. A experiência em curso na região pode servir de exemplo para outros municípios do Brasil.
Artigo a respeito foi publicado no periódico Urban Sustainability, do grupo Nature.
“Carauari é um município situado à margem do rio Juruá, com 28 mil habitantes, sendo 21.500 na área urbana e 6.500 nas áreas rurais e florestais adjacentes. A presença do governo federal é de baixa intensidade na região. Mas, com o protagonismo de associações locais em parceria com organizações não governamentais, universidades e empresas privadas, a população está praticando uma economia autossustentável, baseada principalmente na pesca do pirarucu, na extração do látex, na coleta do açaí e na produção de óleos vegetais. Tais atividade têm gerado resultados expressivos para a conservação da biodiversidade e do bem-estar local e são mantidas pela alta organização social de associações de base comunitária, como a Associação dos produtores Rurais de Carauari [ASPROC], a Associação dos Moradores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Uacari [AMARU] e a Cooperativa Mista de Desenvolvimento Sustentável e economia Solidária da Reserva Extrativista do Médio Juruá”, diz Michel Xocaira Paes, pesquisador do Departamento de Gestão Pública (GEP) e do Centro de Infraestrutura e Soluções Ambientais da Fundação Getúlio Vargas (Ceisa-FGV) e primeiro autor do estudo.
Paes informa que essas atividades produtivas estão integradas por meio dos conceitos de economia circular, na qual os resíduos gerados em uma, em vez de serem tratados como problemas, impactando o meio ambiente, são convertidos em recursos para implementar outra. Assim, as cascas das sementes usadas na produção de óleos vegetais são empregadas em compostagem e as vísceras dos peixes são convertidas em ração para alimentar tartarugas.
“As comunidades produziam anualmente cerca de 100 toneladas de pescado processado, com base em regras de manejo sustentável, gerando cerca de 7.500 quilos de resíduos. Agora, esse material está sendo reaproveitado, misturado com resíduos de outras cadeias produtivas, como a da farinha de mandioca, para produzir ração destinada a tartarugas de água doce. Essa estratégia é importante para garantir a viabilidade econômica do manejo comunitário de tartarugas de água doce, outro programa de sucesso de conservação que ocorre no rio Juruá”, afirma Paes.
“O que eu encontrei foi uma comunidade ‘empoderada’, ciente de que a conservação do meio ambiente é seu maior recurso. E que a floresta em pé é um bem incomparavelmente mais precioso do que a floresta derrubada. O que essa população está fazendo, ao converter resíduos em insumos, é transitar, com muito sucesso, de uma economia linear e degradativa para uma economia circular e regenerativa”, acrescenta o pesquisador.
É importante dizer que, até esse novo modelo ser implantado, tanto o pirarucu quanto as tartarugas eram espécies ameaçadas de extinção na área. E esse quadro foi revertido com a participação da população. “Os bons resultados estão sendo obtidos por meio de uma atenção muito séria à conservação ambiental associada a investimentos providos pelas ONGs, institutos, universidades e empresas parceiras”, conta Paes.
Para levantar todas as informações utilizadas no estudo, o pesquisador permaneceu 15 dias embarcado no rio Juruá e pôde visitar várias pequenas comunidades, de 50 a 100 famílias, espalhadas pela região.
Modelos como o do município de Carauari apontam alternativas que podem ser utilizadas para promover a economia circular no entorno de pequenos centros urbanos da Amazônia.
“Há várias localidades onde estão em operação iniciativas de cogestão para proteger a biodiversidade local e gerar valor nas cadeias produtivas. A integração da cogestão e da economia circular é um caminho para fortalecer e expandir a urbanização sustentável vinculada às agroindústrias baseadas na biodiversidade e à proteção da floresta. A superexploração de produtos da biodiversidade pode ser evitada por meio de princípios ecológicos muito simples, como o estabelecimento de cotas de colheita ou pesca e de locais e períodos proibidos”, argumenta Paes.
E complementa: “A Amazônia é um extraordinário reservatório de recursos hídricos e florestais, de flora e fauna. Transformar esse patrimônio em terra arrasada, por meio da extração madeireira e mineral predatória e da conversão de florestas em pastagens, é uma total falta de visão de presente e de futuro. Os recursos podem e devem utilizados com parcimônia e inteligência. E o conhecimento para isso já está dado.”
Paes é também coautor de um manual prático para inovação em gestão de resíduos sólidos urbanos. Publicado recentemente pelo Centro de Estudos de Infraestrutura e Soluções Ambientais da Fundação Getúlio Vargas (Ceisa-FGV), o manual está sendo distribuído gratuitamente a prefeituras de todo o país.
O estudo realizado em Carauari recebeu apoio da FAPESP por meio de bolsa de pós-doutorado concedida a Paes e de dois auxílios à pesquisa (17/50425-9 e 17/00351-9) concedidos a José Antonio Puppim de Oliveira, supervisor de Paes e participante do estudo.
João Vitor Campos-Silva, outro participante do estudo, recebeu apoio por meio do Belmont Forum e da iniciativa BiodivERsA – um acordo entre a FAPESP e diversas organizações, como a Agence Nationale de la Recherche (França), a National Science Foundation (Estados Unidos), o Forskningsrådet (Noruega) e o Bundesministerium für Bildung und Forschung (Alemanha).
O artigo Integrating circular economy in urban Amazon pode ser acessado na íntegra em www.nature.com/articles/s42949-021-00031-z.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 29/08/2021
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