segunda-feira, 3 de abril de 2017

ADULTERAÇÃO DE ALIMENTOS E A LÓGICA DO AGRONEGÓCIO.

Adulteração de alimentos e a lógica do agronegócio, artigo de Ana Alvarenga

[EcoDebate] BRF e JBS, duas das maiores multinacionais da indústria de carnes do mundo, companhias brasileiras responsáveis pela exportação – além da comercialização doméstica – principalmente de carne bovina e de aves para Europa, Ásia e América Latina, são protagonistas do novo episódio de corrupção no Brasil envolvendo grandes companhias, neste caso entre fiscais de governo e funcionários das mencionadas corporações, incluindo-se o diretor de uma delas.
O que a operação policial “Carne Fraca” significa para a sociedade? Que estamos mais protegidos das diversas fraudes cometidas pelas empresas? Ou que cada vez mais perdemos o controle do que consumimos e do para que se trabalha num sistema alimentar globalizado e atrelado a grandes investidores de capital? A adulteração de produtos alimentícios é exclusividade de empresas brasileiras ou a deflagração do esquema de corrupção tem a ver com forças políticas? Quem mais se prejudica e quem se beneficia de uma cadeia de alimentos globalizada e estreitamente atrelada ao sistema financeiro?
Estas são perguntas que precisamos debater intensamente e com diferentes perspectivas, a fim de compreendermos sistemas alimentares e econômicos que parecem escapar do nosso alcance. Esta problemática tem a ver com perda e direitos e acessos à qualidade de vida diferenciadas nos distintos setores da sociedade.
A tendência atual das cadeias alimentares globais, das quais a cada dia ficamos mais dependentes, é de maior concentração em poucas transnacionais associadas à agroindústria, aos monocultivos, ao uso de agrotóxicos, aos plantios transgênicos e anulação das pequenas produções locais garantidoras da sócio-biodiversidade nos agro-ecossistemas terrestres. Este processo faz parte da lógica que mantém países da América Latina como o Brasil no lugar de exportadores de commodities, que nada mais são do que recursos naturais explorados e apropriados de forma desigual, que são exportados em imensas quantidades e somente ganham alto valor econômico ao longo da cadeia de transformação, gerando divisas longe de seus territórios de origem. É uma falácia tentar convencer de que os bens circulados em massa ao redor do mundo são extraídos e transformados para atender a demandas e necessidades das populações.
Enquanto a cultura eurocêntrica do desenvolvimento reafirma este papel, em que países como o Brasil teriam a oportunidade de se colocarem em posições mais interessantes na economia internacional, os países possuidores de indústria de ponta também mantém seus lugares de exportadores de tecnologia e valor agregado, acumulando ainda mais riqueza, e se protegendo progressivamente através de políticas conservadoras. Enquanto os produtos da agroindústria são distribuídos e precificados de acordo com o mercado financeiro, produzindo mais e mais lucro para seus investidores, os sistemas locais de alimentos proporcionados pela agricultura familiar e/ou indígena são minados por pressões territoriais para implantação de grandes empreendimentos agropecuários, minerários e energéticos, que provocam deslocamentos de comunidades e contaminação ambiental, gerando a erosão acelerada de terras, águas e biodiversidade. O domínio pelas corporações desses bens que deveriam ser comuns causa dependência dos pequenos produtores e também dos consumidores.
A indústria da carne é uma dessas atividades “commodificadas”, em que companhias norte-americanas detêm a maior parcela do mercado, e o Brasil atingiu o segundo lugar em 2015. Os investimentos do governo brasileiro em grandes empresas de carne na última década foi um dos maiores estímulos para o país galgar este patamar. Com um patrimônio totalizando 15 bilhões de reais, 27 centros domésticos de distribuição e 15 centros no mercado de exportação, atingindo 120 países, a BRF Brasil teve um de seus diretores preso no dia 18 de fevereiro no âmbito da divulgação pela Política Federal brasileira de um esquema de fraude na fiscalização sanitária do Ministério da Agricultura, envolvendo 33 funcionários do governo que recebiam propinas para autorizar irregularidades nos produtos a serem comercializados no Brasil e fora do país. Com uma receita de 163 bilhões de reais e presença em 22 países, a JBS se tornou a maior produtora de proteínas do mundo após incorporar algumas empresas norte-americanas, argentinas e australianas do setor. A JBS também foi citada pela Polícia Federal brasileira no âmbito da operação “Carne Fraca”, além de outros frigoríficos menores.
As maiores empresas de produção de carne no país, portanto, fortes competidoras diante dos EUA, da Europa e da China, foram alvo de retaliação do mercado importador na Ásia e na Europa por uma semana, além de perder algum espaço no mercado doméstico. Após uma semana, os países asiáticos e do Oriente Médio retomaram as compras, enquanto os europeus mantêm o bloqueio e os frigoríficos nacionais sofreram inspeção para descarte dos produtos adulterados. Poderíamos considerar a operação da Polícia Federal positiva em termos de proteção aos(às) consumidores(as), especialmente em se tratando de um refeitório de escola pública no Paraná. Acontece que pouco acessamos sobre o que está por trás do grande alarde da operação e da exposição das duas companhias antes das provas de corrupção (considerando que, após uma semana, o diretor da BRF já se encontra solto por falta de provas concretas), mas podemos julgar que pouco tem a ver com proteção ao consumidor ou à sociedade.
Estas duas empresas representam apenas parte de um setor da economia de commodities que está imersa em negociatas legais e ilegais para se apropriar de terras e outros bens comuns, como água e sementes, e que tem poder político para modificar legislações sanitárias e ambientais a seu favor. Neste contexto, a sociedade em sua grande maioria não tem controle dos níveis de envenenamento dos alimentos que chegam a sua mesa, e do nível de degradação e violação de direitos humanos que sua produção ocasiona.
A deflagração de descumprimento de regulações sanitárias fica, assim, parecendo disputa político-econômica entre gigantes, briga por parcelas de mercado e por espaços de poder. Defendendo ou não pontualmente os consumidores de carne através de operações como a “Carne Fraca”, o Estado brasileiro e os investimentos transnacionais vêm prejudicando o nosso acesso e controle da produção de alimentos e do uso de recursos naturais pela legitimação de um sistema alimentar “commodificado”. Enquanto a agroindústria é autorizada a abater centenas de animais por dia, as populações rurais são proibidas de realizar seus rituais de alimentação e o manejo de agroecossistemas para venda local. Através da aplicação seletiva das legislações ambientais e sanitárias, limita-se esta produção e modos de vida agroecológicos que trazem saúde para produtores e consumidores.
O aporte informativo sobre a operação “Carne Fraca” majoritariamente faz o desserviço de colocar o episódio da adulteração dos alimentos como um incidente, como uma anormalidade que ameaça pontualmente os consumidores. Discutir a qualidade da carne a ser distribuída, é questão muito mais complexa do que um episódio isolado de fraude. Sim, a fraude tem a ver com a busca perversa pelo lucro de poucos poderosos, mas não é só ela que prejudica os consumidores de alimentos e os pequenos produtores rurais.
É a lógica do agronegócio e da financeirização da natureza que está em jogo e, por isso, a reprodução da vida na sociedade, majoritariamente de responsabilidade das mulheres, que também sofrem o maior impacto deste sistema globalizado de alimentos.
Ter olhar crítico sobre a informação disseminada pelos grandes meios de comunicação é fundamental, e buscar outros olhares, questão de sobrevivência. Seguem três textos de mulheres que esclarecem bastante a relação do alarde feito pela mídia brasileira e internacional a respeito da operação “Carne Fraca” com a grande farsa que é o agronegócio – no Brasil e no mundo:
Ana Alvarenga de Castro é Pesquisadora e doutoranda na Universidade Humboldt de Berlim/Instituto de Ciências Agrárias Albrecht Daniel Thaer/Divisão de Gênero e Globalização – Alemanha alvacasa@hu-berlin.de Participa da Articulação Nacional de Agroecologia e da Rede Carioca de Agricultura Urbana – Brasil

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 31/03/2017

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