Como funciona a máquina do negacionismo climático?
O negacionismo das mudanças climáticas é um fenômeno estruturado e organizado: uma verdadeira ‘máquina’ da qual fazem parte empresas de combustíveis fósseis, lobbies, think-tanks de molde conservador, políticos e até cientistas
“Vou explicar como funciona a máquina do negacionismo climático”. Entrevista com Stella Levantesi
“É um precedente histórico. Esperamos que a mudança ajude a trazer o modelo de negócios da empresa, que ainda é fortemente focado nos fósseis, em linha com as metas climáticas internacionais. E, sobretudo, que tudo isto se traduza num verdadeiro impulso para a descarbonização e que não seja, no contexto Exxon, mais um movimento de greenwashing num momento em que a necessidade da transição energética não é apenas necessária, mas prioritária”.
Stella Levantesi comenta com certo ceticismo a conquista pelo fundo ativista pró-clima, Engine No.1, de três lugares entre 12 no conselho diretor da Exxon, a empresa-símbolo do negacionismo climático, problema ao qual dedicou um livro, I bugiardi del clima: potere, politica, psicologia di chi nega la crisi del secolo (Os mentirosos do clima: poder, política, psicologia de quem nega a crise do século, em tradução livre), que acaba de ser publicado pela editora Laterza.
I bugiardi del clima: potere, politica, psicologia di chi nega la crisi del secolo
Jornalista e foto repórter com mestrado pela Escola de Jornalismo da New York University, Levantesi – trabalhando entre a Itália e os EUA (escreve no New Republic e até no Il Manifesto) – coletou uma substancial documentação sobre campanhas de contrainformação que tentam de todas as maneiras demonstrar que a mudança climática não existe. “Chamamos isso de negacionismo – diz ela – mas também poderíamos defini-lo de ‘fobia da regulamentação’ ou simplesmente temor de que a moderna narrativa capitalista da conquista seja irreparavelmente danificada”.
A entrevista é de Eugenio Occorsio, publicada por La Repubblica, 15-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Toda tragédia histórica, desde o Holocausto à máfia até o Covid, por incrível que pareça, já que a verdade é evidente, teve sua dose de negacionismo. Até o clima: mas por quê?
Cada negacionismo tem raízes e razões diferentes. O que compartilham é uma tendência conspiracionista e, na base, um sentimento de medo. A diferença substancial é que o negacionismo das mudanças climáticas é um fenômeno estruturado e organizado: uma verdadeira ‘máquina’ da qual fazem parte empresas de combustíveis fósseis, lobbies, think-tanks de molde conservador, políticos e até cientistas.
Todos financiados pelos lobbies. O negacionismo se alicerça em motivações econômicas e políticas e é um ato intencional e estratégico. E não é uma simples negação, pela qual não se quer aceitar a realidade e se tenta removê-la: constrói-se uma realidade alternativa.
Porém, não é fácil negar a intensificação de secas, inundações e outros eventos extremos …
De fato, negar simplesmente as mudanças climáticas está se tornando cada vez mais difícil, então os negacionistas são obrigados a recorrer a estratégias mais insidiosas: desde fazer de tudo para retardar a ação sobre a crise climática (Alexandria Ocasio-Cortez usa o termo climate delayer) até implementar estratégias para desviar da responsabilidade do setor fóssil e redirecionar a atenção sobre a ação individual, como se bastasse a coleta seletiva para resolver o problema, ou ainda para dividir os próprios ambientalistas, como já está acontecendo no debate sobre a transição energética. Velhas estratégias que sempre existiram: a máquina negacionista as requentou e readaptou.
Que exemplos concretos de contrainformação você cita em seu livro?
Bem, muitos. Nunca se perde a oportunidade de confundir as ideias. No chamado “Climategate” havia uma controvérsia sobre os e-mails hackeados pela Climate Research Unit da Universidade de East Anglia que continham dados que foram extrapolados, descontextualizados e manipulados e, por fim, publicados em um site negacionista. Os cientistas foram até acusados de tramar para atribuir um maior peso às atividades humanas nas mudanças climáticas, acusações que foram desmentidas por investigações independentes, mas de qualquer forma a polêmica foi usada pela indústria negacionista que, no momento em que a atenção estava em alta na cúpula do clima da ONU, lançou uma campanha agressiva por meio de cientistas de fachada e plataformas midiáticas negacionistas, como a Fox News.
Outro exemplo diz respeito ao New York Times, que publicou entre 1985 e 2000, sem especificá-lo claramente, “matérias” pagas pela Mobil Oil, pelo menos segundo as acusações do pesquisador Jeffrey Supran e da historiadora da ciência Naomi Oreskes. Colocar em dúvida a urgência do fenômeno, adiar a ação, as táticas do greenwashing, são todas diferentes dimensões de um único esforço: adiar o máximo possível as políticas climáticas e a transição energética para manter o próprio business as usual.
Eram anos de menor vigilância sobre o tema…
Claro, e deve ser dito que em 2005 o New York Times se ‘reabilitou’ publicando alguns documentos que mostravam como Philip Cooney, chefe de estado maior e ex-lobista do American Petroleum Institute, havia manipulado os relatórios científicos das agências governamentais para colocar em dúvida a ciência do clima e obstruir a regulamentação do governo sobre a redução das emissões de carbono. Cooney foi obrigado a se demitir e foi trabalhar, veja só, para a Exxon.
Dois anos antes, dois astrofísicos publicaram um estudo em uma revista científica (apesar que as peer revisions dos cientistas expressassem preocupações sobre sua validade) para desacreditar o gráfico do “taco de hóquei” do cientista climático Michael E. Mann, que mostra um pico de temperatura no século XX após 900 anos de clima estável. O estudo havia sido financiado pelo próprio American Petroleum Institute, protagonista da rede negacionista, mas levantou tamanha indignação da opinião pública que no final o editor daquela revista pediu demissão.
Mas, voltando ao momento atual, tudo isso não foi amplamente desacreditado e reduzido?
De forma alguma, o negacionismo não diz respeito apenas ao passado. De acordo com uma pesquisa independente, existem hoje no Congresso dos EUA 139 membros que se recusam a admitir a ciência do clima e a responsabilidade antrópica na crise climática. No total, receberam mais de US $ 60 milhões das empresas de combustíveis fósseis. E isso é apenas uma pequena parte do fluxo de financiamento da máquina negacionista.
Na Europa e na Itália, qual é a situação?
Ali o negacionismo é menos reconhecível porque é um fenômeno menos institucionalizado, mas de qualquer forma está presente: das argumentações retóricas que sustentam os discursos públicos de alguns políticos – por exemplo, ‘está frio lá fora’, então ‘onde está o aquecimento global?’ – ao risco de greenwashing de algumas empresas e da ação política. Há uma tendência na direita populista europeia de assumir posições antiambientalistas, muitas vezes em conexão com os think-tanks estadunidenses de que eu falava. E às vezes ainda se cai na armadilha da ‘conta equilibrada’, onde é dado espaço a perspectivas negacionistas contendo dados incorretos ou extrapolados do contexto (o famoso cherry-picking dos negacionistas): como se toda vez que se falasse da Terra, também se devesse incluir a ‘perspectiva’ terraplanista.
A crise climática não é uma opinião, é um fenômeno científico que pode ser detectado no nível físico. E o fato de esse conceito ainda precisar ser reiterado em 2021 comprova que as estratégias negacionistas têm sido bem-sucedidas. Os negacionistas transformaram um fenômeno científico em um tema político, de modo a torná-lo dubitável. Se algo se torna dubitável, pode ser posto em discussão muito mais facilmente.
(EcoDebate, 18/06/2021) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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