Comissões da Verdade vivem impasse
O início das atividades da Comissão Nacional da Verdade, em maio de 2012, estimulou o surgimento de grupos semelhantes por todo o País. De lá para cá, governos de dez Estados instalaram comissões oficiais para apurar violações de direitos humanos na ditadura militar. Em outros três Estados, elas foram montadas por iniciativa direta das assembleias legislativas. E três governadores analisam no momento a criação de comissões próprias.
A reportagem é de Roldão Arruda e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 10-11-2013.
Não foram só os Estados que se movimentaram. Grupos com o mesmo objetivo se multiplicaram por municípios, universidades, sindicatos, associações. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem uma comissão nacional e outras dez funcionando em suas seções estaduais. No caso da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) a adesão foi maior: foram constituídas comissões em 20 sindicatos. Embora não exista um levantamento completo, estima-se em mais de cem o total de comissões.
Apesar do entusiasmo e da rápida adesão, porém, o trabalho dessas comissões começa a dar sinais de desgaste. Com dificuldades para apresentar fatos novos e relevantes sobre a ditadura, algumas estão perdendo o foco e trombando com suas congêneres. Os problemas são mais evidentes no caso das que operam no nível público e oficial.
Em São Paulo, a Comissão da Verdade da Câmara Municipal está concentrada na busca de uma prova definitiva de que, ao contrário da história oficial, que fala em morte por acidente, o ex-presidente Juscelino Kubitschek teria sido assassinado. O presidente da comissão, vereador Gilberto Natalini (PV), disse ao Estado que ao final do trabalho será encaminhado um relatório à Comissão Nacional da Verdade, pedindo a investigação do assassinato.
A tese é antiga e acaba de ser revista numa investigação semelhante feita pela Comissão da Verdade da OAB de Minas - Estado no qual Juscelino nasceu, do qual foi governador e de onde partiu para a Presidência. Ao final do trabalho, a OAB encaminhou à Comissão Nacional um relatório com pedido semelhante ao de Natalini.
A ideia básica das comissões locais foi a de que poderiam trabalhar com focos específicos, mais próximos de sua realidade. Espalhadas por todo o País, suas investigações acabariam irrigando a Comissão Nacional e contribuindo para a construção de um painel nacional.
Vala clandestina
Nem sempre isso ocorre. Ainda em São Paulo, onde existem duas grandes comissões parlamentares em atividade, uma na Câmara Municipal e outra na Assembleia Legislativa, não se produziu até agora nenhuma novidade relevante sobre a vala clandestina do Cemitério de Perus, episódio de significado crucial em relação aos mortos e desaparecidos.
Existem indícios de que, após assassinar militantes políticos de esquerda, os agentes policiais e militares enterravam os corpos sem identificação ou com nomes falsos na vala de Perus.
Apesar das dificuldades dessas duas comissões, uma terceira está prestes a ser criada na capital paulista, dessa vez na Prefeitura. Um projeto de lei nesse sentido pode ser aprovado na Câmara no início do ano.
A Bahia também tem duas comissões oficiais no âmbito estadual - uma no Executivo e outra no Legislativo. Segundo o presidente da comissão parlamentar, Marcelino Galo (PT), o governador Jaques Vagner (PT) teria sido estimulado pelo Legislativo: "Foi importante formarmos a comissão na Assembleia, até porque ela motivou, politicamente, a instituição da comissão do Executivo". Para evitar trombadas, Galo diz que a comissão que preside vai focalizar o caso de 14 parlamentares baianos cassados pela ditadura.
Embora autônomas, a expectativa geral era de que as comissões locais trabalhassem seguindo uma orientação geral ou dialogando com a nacional, para evitar superposição de atividades. A troca de informações, porém, ainda é precária. Do total de comissões existentes no País, apenas 29 formalizaram alguma parceria com a nacional. Uma rede virtual montada com o apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia para a troca de dados só teve nove adesões até agora.
Holofotes
Para Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre, as comissões locais patinam porque não têm poder para convocar pessoas para depor, como ocorre com a Comissão Nacional.
Na avaliação dele, o quadro preocupa: "Depois do entusiasmo inicial, o que se vê agora é um refluxo."
Para Krischke, os Estados refletem o que ocorre com a Comissão Nacional: "À medida em que ela não consegue apresentar resultados, as outras começam a refluir."
Nesse cenário, ele vê o risco de as comissões focalizarem casos de maior repercussão pública, em busca de holofotes. Krischke cita o destaque que está sendo dado pela Comissão Nacional e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República à exumação do corpo do ex-presidente João Goulart. Nos próximos dias ele será submetido a análises para verificar se foi mesmo envenenado, como suspeitam seus familiares.
"É claro que a análise deve ser feita", diz Krischke. "O que não se admite é a exploração política do fato. No caso, quem está se beneficiando é a ministra de Direitos Humanos, provável candidata ao Senado pelo Rio Grande do Sul." A ministra Maria do Rosário disse que a análise atende a um pedido da família e é um "dever de Estado".
Não é de todo improvável que a eventual comprovação de envenenamento aumente o prestígio da ministra e da Comissão Nacional - que trata do caso por meio de um grupo dedicado a investigar a chamada Operação Condor. Não se pode dizer o mesmo, porém, do trabalho miúdo de comissões locais. Seus dividendos são incertos. O caso do ex- vereador paulista Ítalo Cardoso (PT) é exemplar: depois de presidir a comissão da Câmara em 2012 (e fazer um relatório sem impacto), não se reelegeu.
Com interesse eleitoral ou não, a cena atual começa a preocupar as comissões. Dias atrás, ao participar de homenagem a uma desaparecida política, o deputado paulista Adriano Diogo (PT), que preside a comissão da Assembleia, observou que, das três metas estabelecidas para as comissões - verdade, memória e justiça -, só uma está sendo alcançada, a da memória. A verdade e a justiça, completou, estariam mais relacionadas à falta de vontade política do governo para abrir os arquivos das Forças Armadas do que à falta de eficiência das comissões.
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos
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