Os black blocs têm agora uma morte sobre os ombros
Reportagem de VEJA desta semana mostra que a máscara “libertária” do grupo caiu e revela o rosto soturno de um bando que, ao aliar inconsequência à violência e o uso de armas letais, equipara-se a terroristas
Cecília Ritto e Leslie Leitão
SININHO: Boa de organizar passeatas e arrecadar dinheiro, ela estuda cinema, está desempregada e rompida com os pais, militantes do PT (Montagem sobre fotos: Armando Paiva/Fotoarena Christophe Simon/AFP)
Eles não vieram com flores nas mãos. Os primeiros black blocs a surgir nas ruas brasileiras já chegaram de máscara e marreta em punho. Quebraram lojas, incendiaram ônibus e invadiram prédios públicos em badernas no Rio, em São Paulo e em outras 22 capitais. Mesmo assim, receberam olhares benevolentes de políticos (“Vários movimentos têm vários métodos distintos. Eu não sou juiz para ficar avaliando os métodos em si”, disse o deputado Marcelo Freixo, do PSOL) e francamente deslumbrados de alguns artistas (“Emma é linda. O anarquismo é lindo”, escreveu Caetano Veloso a propósito de uma black bloc, pouco antes de posar fantasiado de mascarado). Um professor da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo, chegou a escrever que os black blocs “usavam a estratégia da violência” porque eram “vítimas da violência cotidiana praticada pelo Estado”. A polícia e as leis brasileiras fizeram a sua parte para piorar a situação. Nove meses após o início da baderna e dezenas de arruaças depois, há apenas um black bloc preso no Rio. Em São Paulo, nenhum. Na semana passada, a leniência e a impunidade cobraram seu preço: o cinegrafista Santiago Andrade, de 49 anos, morreu em consequência de um rojão que, disparado por um mascarado, o atingiu em cheio quando trabalhava. Com a tragédia, a máscara “libertária” dos black blocs caiu para revelar o rosto soturno de um grupo que, ao aliar inconsequência a violência e uso de armas letais, se equipara a terroristas.
A TRANSFORMAÇÃO: Caio Souza, tímido e contrito ao ser preso na semana passada e batendo boca com seguranças em manifestação no Rio: segundo ele, black blocs ganham dinheiro e “quentinhas” de patrocinadores. Quem são, ele não diz
Três personagens foram fundamentais para revelar a face mais sinistra dos black blocs: Fábio Raposo, o Fox, que carregou o rojão que atingiu o cinegrafista; Caio Silva de Souza, o Dik, que levou o artefato até perto da vítima; e Elisa Quadros, a Sininho, “militante ativista” (a definição é dela) que surgiu do nada para oferecer “assessoria jurídica” aos dois acusados e não parou mais de aparecer. Raposo e Souza, que se entregaram e estão presos, são peões do movimento, integrantes da tropa de choque do quebra-quebra. Já Sininho, 28 anos, estudante de cinema (já há seis anos) e atualmente desempregada, é da elite que decide e dá ordens. Sininho faz a ponte entre os black blocs e a parcela da classe política que nutre simpatia pelo grupo. Dela, constam, por exemplo, os vereadores Renato Cinco e Jefferson Moura, ambos do PSOL. Eles aparecem numa planilha que circulou em grupos fechados na internet, revelada pelo site de VEJA, com os nomes de pessoas que, a pedido de Sininho, patrocinaram um “evento cultural” que ela ajudou a organizar em dezembro passado. “Eles deram dinheiro, sim, e não foi nenhum segredo. Doaram como civis, e não políticos”, postou ela em janeiro, reagindo às críticas de integrantes do grupo cuja alegada inspiração anarquista não permite engajamentos partidários.
Marcelo Freixo, do PSOL, falando sobre os black blocs, antes e depois da morte do cinegrafista Santiago
Sininho diz que não gosta de políticos e políticos dizem que não apoiam a violência dos black blocs, mas as duas partes parecem se dar muito bem. A Câmara de Vereadores é um ambiente familiar para Sininho. Quando começou a minguar o movimento Ocupa Cabral, em que manifestantes permaneceram dois meses acampados diante da casa do governador do Rio, ela sugeriu a ocupação das escadarias da Câmara. Ficou lá por 52 dias. Gaúcha, filha de petistas com quem não se dá (“Continuam no PT, pois devem acreditar que tem esperança, mas eu não tenho nada a ver com a decisão deles”), até o meio do ano passado fazia trabalhos esporádicos em uma produtora de vídeos. Vivia com quatro colegas em um apartamento com poucos móveis e paredes cobertas de discos de vinil, recebia amigos para festinhas (animadas a MPB, cerveja e baseados) e passeava na cidade com uma bicicleta modelo retrô. Em junho, depois da primeira passeata, não saiu mais da rua e foi subindo na hierarquia dos “militantes ativistas”. Com tempo de sobra, esteve na linha de frente de quase todos os protestos. Ficou famosa — e mais ainda depois de ter sido detida por três dias (na investigação que se seguiu, livrou-se do grampo certo com um expediente simples: deu à polícia um número falso de telefone).
A PRIMEIRA VÍTIMA: O rojão disparado pelos black blocs atingiu em cheio a cabeça do cinegrafista Santiago Andrade
Sininho posta vídeos com frequência, às vezes com o ex-namorado, conhecido como Game Over. Articulada, gosta de mandar — em passeatas, é vista apontando a direção a ser tomada pelos mascarados — e de alardear amizade com quem julga poderoso, como o deputado Marcelo Freixo, do PSOL. Freixo minimiza os laços. Afirma ter se encontrado com Elisa apenas duas vezes, na condição de presidente da Comissão de Direitos Humanos, por iniciativa dela. Mas comentários nas redes sociais não deixam dúvida: black blocs e PSOL são mais do que bons amigos. É a uma ONG presidida por um alto funcionário do gabinete de Freixo, Thiago de Souza Melo, que Elisa e outros apelam quando alguém vai preso ou sofre ameaça. A organização é composta de advogados que ficam a postos, nas ruas e em delegacias, para ajudar manifestantes detidos em confrontos de rua. Em São Paulo, quem faz esse papel são os advogados da CSP-Conlutas, entidade sindical ligada ao PSTU. Integrantes dos dois partidos costumam estar presentes em assembleias do bando, geralmente sob ataque de black blocs de inclinação purista, contrários à aliança com políticos. Freixo foi justamente o nome que Elisa brandiu quando contatou o advogado Jonas Tadeu Nunes para oferecer assessoria jurídica a Raposo, que se apresentou à polícia dois dias depois de Andrade ser atingido por um rojão.
O CÚMPLICE: Raposo foi o primeiro a ser preso, levado pelo advogado Nunes (de azul): o vídeo mostra que ele deu a Caio o explosivo que matou Andrade
O advogado foi o primeiro a falar sobre o pagamento para promover quebra-quebras que os baderneiros receberiam de grupos, que ele não identificou. Coisa de “150, 200 reais”. Caio Souza confirmou, tanto a Nunes quanto à polícia, ter recebido propostas nesse sentido. Mais: diz ter visto a distribuição de quentinhas aos acampados na Câmara e de pedras e outros “apetrechos” aos mascarados na rua. O advogado Nunes — que diz não receber nenhum tostão dos dois clientes, aos quais teria sido levado por um estagiário amigo de Raposo — tergiversa quando é arguido sobre detalhes. Afirmou que, na manifestação, a turma da baderna recebe munição de “Kombis cheias de rojões, cheias de máscaras”. E quem financia tudo isso? Políticos? Algum partido? “Não sei. A polícia tem de investigar”, escorregou Souza.
NÃO É CAUSA, É CRIME: Black blocs se preparam para a ação: “violência simbólica” também mata
O principal responsável pela morte de Andrade mora com o pai em uma casa simples em Nilópolis, na região metropolitana do Rio. No dia seguinte à manifestação, 6 de janeiro, ele vendeu um celular, pagou o aluguel, pegou a correspondência e sumiu. Nunes conseguiu contatá-lo em um ônibus a caminho da casa dos avós em Ipu, no Ceará, e o convenceu a se entregar. Antes do crime, Souza era porteiro num hospital onde o pai é enfermeiro. Evangélico, fã de skate, descrito como calmo e calado, só mostra os dentes nos protestos de rua, aonde vai movido por convicções pouco claras — como mostra o texto que escreveu (veja o trecho abaixo). Já Raposo, o fornecedor do rojão, é bem mais conhecido no meio. Carioca, 22 anos, abandonou o curso de contabilidade para ser tatuador e mora sozinho em um apartamento no Méier, Zona Norte carioca (no playground, pichou: “Ódio à polícia! Viva a manifestação!”). Em vídeo, é visto portando o rojão enquanto caminha ao lado de Souza — que, em certo momento, pega o artefato aceso e o coloca no chão, a poucos metros do cinegrafista. Ele diz que mirou na polícia e só queria “fazer barulho”.
Na semana passada, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, encaminhou ao Senado uma proposta de mudança na legislação que, se aprovada, atenderá às reclamações da polícia, que afirma não ter meios legais para manter presos os black blocs flagrados em ação. As principais medidas são: proibir o uso de máscaras em manifestações, como já é lei no Rio e em Pernambuco, e vetar o porte de objetos que possam ser usados para ferir, como rojões ou canivetes. Quem for pego desrespeitando essas regras será levado à delegacia. Os reincidentes teriam de pagar multa e ficariam banidos de eventos públicos por no mínimo 120 dias. A medida é bem-vista por especialistas. Afirma o coronel reformado da Polícia Militar José Vicente da Silva: “A proposta facilita a punição. E é melhor ter uma pena branda mas de efeito imediato do que uma duríssima que nunca será posta em prática”. Para o cinegrafista morto e sua família, no entanto, as medidas chegam tarde demais. Que a tragédia sirva para lembrar que os black blocs não são uma causa a ser defendida, mas um bando a ser combatido. E que a violência que praticam não tem nada de “simbólica”. Mata.
Com reportagem de Alexandre Aragão, Alvaro Leme, Bela Megale, Cintia Thomaz e Helena Borges
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