quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

ENGENHO DA GALILÉIA E A LUTA DAS LIGAS CAMPONESAS.

Seis décadas depois, a vida no Engenho Galiléia, marco das Ligas Camponesas, mudou totalmente

O rosto talhado pelo tempo não condiz com o estado de espírito nem a memória primorosa. Algo surge destoante no espaço. Minutos de conversa, numa simples sacada decorada com madeira rústica, do tipo que se colhe no sítio, o agricultor Severino José de Souza, ou Zé Biu, de 80 anos, olha o tempo passar e confessa: “Melhorou muito. Antes, não era bem bom assim, mas com a liberdade, o povo não se mobiliza mais”. A frase simples define, sob seu olhar, as transformações sofridas na Zona da Mata de Pernambuco nestes exatos 60 anos do movimento das Ligas Camponesas, completados em janeiro deste ano e do qual foi um dos membros fundadores no município de Vitória de Santo Antão.
A reportagem é de Cláudia Ferreira e publicada pelo Diário de Pernambuco, 12-01-2014.
É no Engenho da Galiléia, o primeiro caso de reforma agrária no Brasil após o fim da 2ª Guerra Mundial, que esse velho senhor observa a saída da população assentada, com as vendas das propriedades rurais, e o fim da agricultura de subsistência na antiga propriedade. “Não tem mais cana, hoje tudo virou mato”. Seu Zé Biu pode ser considerado uma “ilha de resistência” no assentamento que deu projeção nacional ao então deputado pernambucano Francisco Julião (1915-1999), que completa 100 anos de nascimento no próximo mês e é um quadros históricos do Partido Socialista Brasileiro (PSB).
“Quando ele chegava aqui, era uma festa. O povo ia buscar ele com as enxadas nas mãos, levava nos braços, minha finada mãe jogava pétalas de rosas”, conta Zé Biu, mostrando, em seu jardim, algumas delas e reforçando que ainda planta e colhe no local, com a companhia de alguns filhos que ficaram. Francisco Julião foi o advogado da então Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP), criada em 1954 e legalmente constituída um ano depois, mais conhecida como Ligas Camponesas. Passados anos e mais anos, o local ganhou novos contornos.
Algumas empresas de avicultura, por exemplo, ocupam o espaço antes designado a agricultores, tachados de comunistas, que se escondiam nos matos (ou na capoeira) em virtude da perseguição das Forças Armadas, durante o regime militar (1964-1985). Descendentes de ex-líderes do movimento, quando ainda permanecem, pouco sabem do passado e têm uma vida “conectada” com a cidade grande, no caso, o novo polo de desenvolvimento de Vitória de Santo Antão, com megalojas e indústrias. “Hoje é muito difícil aqui ter alguma família sem moto ou carro. Eles saem, trabalham na cidade e voltam”, diz o sobrinho de Seu Biu, o motorista aposentado Zito da Galiléia, de 67 anos, ao falar da nova realidade das 308 famílias que ainda habitam o local.

É dele a iniciativa de instalar uma espécie de memorial no local, que conta com uma biblioteca e uma placa simbólica onde os líderes das Ligas Camponesas começaram a se reunir. Histórias não faltam. Ele guarda, por exemplo, um antigo gerador doado por Robert Kennedy (1925-1968), conselheiro do irmão e ex-presidente do Estados Unidos John Kennedy (1917-1963). “Eles achavam que a Galiléia tinha ligação com os cubanos. Quando visitou, em 1961, viu que não tinha nada a ver e deu a máquina de presente”.
Biblioteca tenta reparar a história
Uma carroça puxada a cavalo trafega na Avenida Caxangá nos últimos dias de 1954. O destino é um sobrado na Várzea, bairro situado na Zona Oeste do Recife, onde vivia Francisco JuliãoZé dos Prazeres, idealizador do movimento, liderou seu grupo em várias tentativas frustradas de conseguir registrar juridicamente a associação, até bater na porta do advogado recém-eleito deputado estadual, que aceitou de pronto a causa dos camponeses. Sua liderança, no entanto, não resistiu ao embate com Julião, que ocorreria, por ironia da história, logo após o triunfo em Galiléia, desapropriado em 1959.
Conta a história que o então governador Cid Sampaio pretendia transferir algumas das famílias do Galiléia para outras terras por acreditar serem elas insuficientes do ponto de vista produtivo para contemplar a todos. Prazeres encampou a ideia. Mas Julião não. E inflamou os galileus, que não deveriam deixar seu pedaço de terra “ainda que seja apenas um hectare”.
A vida e o tempo não foram tão generosos com o velho comunista como foi com o heroico advogado. O segundo ganhou o reconhecimento dos livros de história como grande líder e agitador das massas ao passo que, sobre o primeiro, mal se sabe a data de sua morte. Tido como traidor pelo povo por quem sempre empreendeu todas as suas forças, Zé dos Prazeres tirou seu time de campo e jamais retornou ao movimento camponês. Mas Zito da Galiléiaassumiu a responsabilidade de fazer essa reparação histórica.
O nome de José Ayres dos Prazeres agora batiza a biblioteca que será inaugurada hoje nas terras que são símbolo da resistência campesina. Zito se orgulha. “O acervo tem em torno de 5,5 mil obras. Temos uma grande quantidade de livros sobre as Ligas, a ditadura, movimentos populares”, destaca. Mas também lamenta.
Zito se diz solitário na tarefa de resgate do legado de seus companheiros do passado. “Fico sozinho falando pro povo”, diz, num breve momento de desânimo. Durante quatro anos e sem qualquer auxílio do poder público, a venda de DVDs e raras doações custearam a construção da biblioteca. Realizado por Zito, o documentário A Liga que Ligou o Nordeste tem 26 minutos de duração e rendeu mais de 300 cópias vendidas. Um trabalho amador, feito com objetivo definido. “Com a renda, eu ia comprando o cimento e os tijolos”, conta, depois do dever cumprido com José Ayres.
O engenho da Galiléia foi o primeiro caso de reforma agrária do Brasil após a 2ª Guerra Mundial, em 1959. O engenho era de propriedade do latifundiário Oscar de Arruda Beltrão, que chegou a alugar as terras aos trabalhadores após a falência do empreendimento. A propriedade tem 503 hectares e abriga em torno de 300 famílias e 1,3 mil pessoas. A antiga propriedade foi dividida em lotes de 3 a 8 hectares. Atualmente, poucos descendentes dos militantes continuam vivendo no local. Muitos já venderam as terras
Segundo relatos orais, o nome do engenho é obra da família de Beltrão, que tinha como tradição visitar a região do Israel todos os anos. Viram semelhança entre a paisagem da Galiléia, atual Israel, quando compraram a terras e resolveram fazer uma homenagem ao local.
Os camponeses conseguiram a posse das terras após um ato diante do Palácio do Campo das Princesas, em Recife, no final da década de 1950. Os trabalhadores pressionaram o governador Cid Sampaio, que assinou a desapropriação de Galiléia na sacada do palácio do governo. O protesto foi liderado pelo deputado Francisco Julião.
O nome Ligas Camponesas, ao designar o movimento dos trabalhadores da Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP), foi uma tentativa do governo local, na época, para associar os trabalhadores ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, na década de 1940, manteve a Liga Camponesa da Iputinga, no Recife.
Apesar de ser confundido como um dos fundadores, o então deputado Francisco Julião não fundou as Ligas Camponesas em Vitória de Santo Antão. O fato foi reconhecido por ele em vida. O deputado foi advogado da SAPPP e se envolveu com o movimento.
Na gestão do então governador Miguel Arraes (PSB), na década de 1960, uma área foi escolhida para um procedimento de terraplenagem para a construção de uma vila. Na época, um boato noticiava que a ideia era construir um aeroporto para receber armas de Cuba.
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos

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