A explosão dos déficits primário e nominal e a mudança de governo, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
Publicado em maio 13, 2016
“O sapo não pula por boniteza, mas por precisão”
Guimarães Rosa
[EcoDebate] A crise fiscal move a história. Foi assim na Revolução Francesa que começou após o Rei Luís XVI convocar os Estados Gerais para aprovar aumentos de impostos para sustentar a monarquia perdulária e os gastos de guerra. A revolta teve início com a queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789, sendo que o Rei foi decapitado em 1793. Poucos meses depois, a rainha Maria Antonieta também perdeu a cabeça (na guilhotina).
No Brasil Colônia, existia um dispositivo fiscal chamado Derrama que visava assegurar a arrecadação de impostos sobre a exploração de ouro e diamante. O quinto era a retenção de 20% de imposto sobre a produção dos metais preciosos. Este imposto cobrado em um momento de crise da extração mineral, em 1789, foi o estopim para a Inconfidência Mineira. Embora a “Rainha Louca” de Portugal tenha sobrevivido e Tiradentes tenha sido enforcado e esquartejado, os ideais da Inconfidência Mineira prevaleceram sobre o desgoverno, a exploração e as injustiças da colonização portuguesa.
Os moradores das 13 colônias inglesas da América do Norte não gostavam da situação desigual na qual possuíam poucos direitos e muito trabalho para enriquecer a metrópole. A Inglaterra cobrava impostos das colônias sobre produtos como chá, açúcar, vinho, etc., sufocando o desenvolvimento local. Revoltados contra as crescentes taxas sobre os produtos americanos para financiar o déficit fiscal inglês, os habitantes se revoltaram e, numa ação de protesto, em 1773, lançaram ao mar toda a carga de três navios carregados de chá pertencentes à Companhia Britânica das Índias Orientais. Este acontecimento, conhecido como a Festa do Chá, em Boston, marcou o início da luta pela Independência dos Estados Unidos, a primeira Colônia a se livrar do jugo europeu e a construir uma República capaz de garantir democracia e a boa administração fiscal.
Guardadas as devidas proporções desses eventos históricos, o Brasil vive uma situação de caos fiscal, em pleno século XXI. Em abril de 2016, os jornais brasileiros estamparam a manchete: “Dívida pública é bomba-relógio que cresce cerca de R$ 2 bilhões por dia”. De fato, considerando a semana de 6 dias (exceto o domingo), o déficit nominal atingiu a espantosa cifra de mais de R$ 600 bilhões ao ano. Isto representa cerca de 10% do PIB. Não sem surpresa, abriu-se uma crise política no país e parcelas crescentes da sociedade têm ido para as ruas protestar contra os efeitos do descontrole das contas públicas e o descalabro da dívida interna.
Embora o Governo Federal tenha ficado acéfalo desde as últimas eleições presidenciais brasileiras, felizmente ninguém foi decapitado ou esquartejado. Mesmo que o debate tenha sido acalorado e, em termos figurativos, muita gente tenha “perdido a cabeça”, tudo tem se dado dentro das regras institucionais do Estado de Direito.
O fato é que a crise fiscal fez mais uma vítima e a presidenta Dilma Rousseff, primeira mulher a chegar ao posto máximo da República no Brasil, foi afastada por 180 dias e pode perder definitivamente o posto se for considerada culpada pelas pedaladas fiscais, em processo aberto no Senado.
O Vice-presidente Michel Temer, do PMDB, que ajudou a eleger a Presidenta, foi partícipe nos atos governamentais e que tem ocupado o Palácio do Jaburu desde 01 de janeiro de 2011, mudou de endereço e agora vai despachar no Palácio do Planalto, pelo menos nos próximos 180 dias. Mas a assunção de Michel Temer não resolve, per si, a crise fiscal.
A carga tributária no Brasil está, atualmente, em quase 40% do PIB (o dobro do que era cobrado no “Quinto” – 20% – da época áurea de Ouro Preto e Diamantina). Não existe milagre que garanta o equilíbrio automático entre os gastos e as receitas. Ou se corta despesas ou se aumenta impostos. Existem várias maneiras de se promover o equilíbrio fiscal. Mas nenhuma é simples e indolor. Se o ato de aumentar impostos fosse fácil, o governo não precisaria cobrar os tributos de forma imposta e coercitiva. Já cortar despesas em um Estado corporativista, patrimonialista e em um regime de presidencialismo de coalizão é o mesmo que perder bases políticas de sustentação.
Além do mais, o déficit tem aumentado em função da recessão econômica. Alguns economistas querem reduzir o déficit para fazer a economia voltar a crescer, enquanto outros querem fazer a economia crescer para reduzir o déficit. É o famoso dilema sobre quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?
O gráfico acima, com base nos dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), mostra que existia superávit primário entre 2001 e 2013. Ou seja, o Brasil teve saldo positivo nas contas primárias (sem contar juros da dívida) no período de maior crescimento do PIB do século. Portanto, obter superávit primário não atrapalha o crescimento econômico e até mesmo ajuda, pois mostra que o governo é capaz de manter as contas públicas solventes.
Durante os 8 anos do governo Lula houve superávit primário, que chegou a 4% do PIB nos anos de 2004 a 2008. Após 2009 o superávit primário recuou, pois, o governo começou a adotar uma série de medidas de inspiração keynesiana (mas que o ex-ministro Mangabeira Unger diz ser “keynesianismo vulgar”) para estimular a demanda agregada. Mesmo em 2011, primeiro ano do governo Dilma, o superávit primário foi de R$ 129 bilhões, representando 2,9% do PIB.
Porém, como ensina a sabedoria popular, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. O governo Dilma Rousseff, cujo ministro da Fazenda era Guido Mantega, dizendo-se inspirado por Keynes, transformou os cofres públicos em indutores do crescimento, sem se preocupar com a qualidade dos gastos e sem criar mecanismos para garantir o aumento da produtividade. Diversos projetos foram superdimensionados e mal planejados, como a série de investimentos equivocados da Petrobras que queimaram fortunas, mas só geraram prejuízos, como o Complexo Petroquímico de Itaboraí, a Refinaria Abreu e Lima e as Refinarias do Ceará e Maranhão que foram sorvedouros de recursos e se tornaram “elefantes brancos”, sem retorno para a sociedade. Só com subsídio para às grandes empresas, a chamada “bolsa empresário” o governo vai gastar R$ 270 bilhões, dez vezes mais do que o Bolsa Família.
Muito desse dinheiro mal investido serviu apenas para alimentar a corrupção e o caixa dois de partidos e caciques políticos (inclusive os carros de luxo do ex-presidente Collor que controlava duas diretorias da Petrobras). Os campeões nacionais faliram, como a estória de Eike Batista bem ilustra. A indústria naval afundou. O Brasil acelerou sua desindustrialização. O ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, foi alvo de condução coercitiva na 7ª fase da Operação Zelotes agora em maio de 2016.
Nesse quadro de fracasso econômico, não é de se estranhar que o Brasil tenha saído de uma situação de superávit primário até 2013 para déficit primário a partir de 2014. Muito dinheiro foi gasto para se garantir a reeleição de 2014, mas os retornos econômicos não aconteceram. O Brasil perdeu o grau de investimento das agências de risco e houve queda das expectativas do setor produtivo.
A economia entrou em recessão no segundo trimestre de 2014 e o quadro só se agravou nos trimestres seguintes devido ao acúmulo de problemas que foram se somando e se aprofundando. A queda do PIB no último trimestre de 2015 foi de 6%. Não temos ainda os dados oficiais e definitivos do primeiro trimestre de 2016, mas tudo indica que a queda foi ainda maior. O primeiro quadrimestre de 2016 registrou alta de 97% no total de empresas em regime de recuperação judicial. Depois de tanta “contabilidade criativa” a realidade se mostra desnuda e implacável.
Mas há ainda esqueletos ocultos. Matéria de Alexa Salomão, no Estadão (09/05/2016) mostra que o novo governo de transição terá de administrar não só um déficit monumental para ajustar o orçamento público, no valor de R$ 360 bilhões, mas também um gasto contingente de R$ 250 bilhões. Em relatório da agência Moody’s a conta total pode chegar a R$ 600 bilhões. Será difícil conseguir apoio popular e pagar essa conta ao mesmo tempo.
Sem surpresas, a agência de classificação de risco Fitch voltou a rebaixar a nota de crédito do Brasil, em maio de 2016, de BB+ para BB. Em dezembro, a Fitch reduziu a nota brasileira e o país perdeu o grau de investimento. As agências de classificação de risco começaram a rever a nota brasileira em 2015. Este ano o movimento continuou e a Fitch é a terceira a fazer o rebaixamento. Em fevereiro, a Moody’s e a Standard& Poor’s já haviam reduzido a nota. A Moody’s que, na época era a única que ainda não havia retirado o selo de bom pagador, baixou para grau especulativo. A Fitch informou que o Brasil permanece em perspectiva negativa, o que significa que pode haver nova revisão da nota.
No ano passado, o déficit nominal (que é o déficit primário + as despesas com juros) ultrapassou R$ 600 bilhões, ou 10% do PIB. Isto é um indicador de que o Brasil está indo no caminho da Grécia, com a diferença que as nossas taxas de juros são muito mais altas. Um déficit nominal tão alto é incompatível com a retomada do crescimento e o aumento da qualidade de vida da população. Nessa seara, mesmo o melhor cenário é ruim. Se tudo “correr bem”, o FMI considera que o déficit nominal deve cair para 6% do PIB. Mas o máximo recomendável seria 3% do PIB.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), do IBGE, tinha apontado que, em fevereiro de 2016, o número de desempregados no Brasil ultrapassou a barreira simbólica de 10 milhões de pessoas. No dia 29/04, o IBGE divulgou os dados do primeiro trimestre. A taxa de desocupação no trimestre móvel encerrado em março de 2016 foi estimada em 10,9%, e a população desocupada cegou a 11,1 milhões de pessoas. Pelos dados do CAGED, o colapso do emprego formal é assustador. Depois das últimas eleições presidenciais, entre dezembro de 2014 e março de 2016 foram fechadas 2,5 milhões de vagas com carteira assinada no Brasil. Nos últimos 12 meses foram 1,85 milhão de empregos formais perdidos. Isto dá uma média de 157 mil empregos perdidos por mês, ou 5.217 vagas com carteira de trabalho perdidas por dia, nos 16 meses em questão.
Parece que nem o Congresso, nem a população, nem os intelectuais, nem os favoráveis ao impeachment, nem os contrários ao impeachment e nem as pessoas de bom senso estão reconhecendo a verdadeira dimensão dos problemas fiscais do Brasil e suas consequências. Em março de 2016, a produção industrial brasileira recuou 11,4% em relação ao mesmo período de 2015 como reflexo da queda no consumo das famílias e da falta de investimentos no país. O impacto do desemprego em alta, queda no rendimento médio do trabalhador, inflação e juros altos. A desindustrialização acelerada significa o fim do sonho da “Ordem e Progresso” do projeto desenvolvimentista dos positivistas de todos os matizes.
Por tudo isto e algo mais, depois de 13 anos e 5 meses no poder, o PT virou uma grande decepção e suas principais lideranças estão sendo investigadas na operação Lava-Jato. O novo governo ainda vai ter que mostrar a que veio. Pela segunda vez o PMDB chega ao comando do Executivo Nacional. Pela segunda vez de forma indireta e pela assunção do Vice. A primeira experiência peemedebista, José Sarney 1985-1990, foi um fracasso. Agora, o novo governo vai ter um desafio colossal pela frente e ainda não há como prever se terá o apoio para colocar o país nos eixos. Ainda mais que a opinião pública não se sente representada pelas novas lideranças. Enquanto isto, a recessão se aprofunda e o descontrole das contas públicas se generaliza para os níveis Federal, Estadual e Municipal, além das Estatais e dos Fundos de Pensão. O Brasil está mudando de governo em uma situação muito incerta.
O desarranjo das contas públicas é a Espada de Dâmocles dos governos ineptos. Se a crise fiscal não for resolvida, outros governos cairão. O povo brasileiro pode começar a temer sobre o seu futuro!
///////////////////////
Nota:
Logo depois das eleições presidenciais de 2010, escrevi um artigo aqui no Ecodebate (ver link abaixo) em que dizia otimistamente: “É raro um governo ter início com um quadro econômico tão promissor à sua frente”. Mas alertava: “Todavia, o Brasil tem muitos problemas históricos que, se não solucionados adequadamente, podem comprometer as perspectivas futuras do bem-estar e da redução da pobreza”. E também dizia: “A corrupção continua espalhada, como “uma erva daninha”, que suga as forças vivas na nação”. Por fim, indicava algumas medidas que precisavam ser implementadas na gestão do governo federal que iniciaria em janeiro de 2011:
– Aumentar as taxas de poupança e investimento, garantindo maior produtividade e avanço da infraestrutura:
– Evitar o processo de desindustrialização e elevar a competitividade internacional:
– Resolver o problema da crise fiscal do Estado:
– Enfrentar a crise ambiental e a perda da biodiversidade
Terminei o artigo traçando um cenário favorável: “A primeira década do século XXI trouxe esperanças na implementação de um modelo de crescimento econômico com redução da pobreza e das desigualdades. Os primeiros passos foram dados. Mas muito falta ser feito. A segunda década do século XXI tem tudo para ser melhor do que a primeira. As condições econômicas externas e as condições sociais e demográficas internas são favoráveis no cenário até 2015, ou mesmo 2020”.
Infelizmente tudo deu errado. O meu otimismo virou pessimismo e agora tenho certeza que vamos ter uma década perdida entre 2011-2020. Nunca imaginei que o Brasil iria, em pleno século XXI, viver uma situação tão difícil e tão sem esperança.
ALVES, JED. Perspectivas para o governo Dilma (2011-2014). Ecodebate, RJ, 03/11/2010
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
in EcoDebate, 13/05/2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário