Em defesa da Amazônia e do Cerrado; análise de Luiz Marques
Texto LUIZ MARQUES
Fotos REPRODUÇÃO | Daniel Beltra – Greenpeace
Edição de imagem LUIS PAULO SILVA
Fotos REPRODUÇÃO | Daniel Beltra – Greenpeace
Edição de imagem LUIS PAULO SILVA
Em 2014, a FAO lançou um manifesto intitulado “Não podemos viver sem florestas” [I]. Seu primeiro parágrafo reitera o que todos sabemos: “As florestas são imprescindíveis para sustentar a vida no planeta (…) e são o lar de 80% da biodiversidade terrestre”. Em 22 de agosto último, Michel Temer deu mais um passo para a inviabilização da vida na Terra, ao extinguir por decreto a Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca) na Amazônia, com uma área de 46.450 km², maior que a do estado do Rio de Janeiro [II]. Situada na divisa entre Pará e Amapá, a região abrange o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, o maior parque de florestas tropicais do mundo, além de outras florestas, quatro reservas ecológicas e duas reservas indígenas, uma delas a da comunidade Wajãpi, contatada apenas em 1973. Já em março, em Toronto, Fernando Coelho Filho, ministro de Minas e Energia, havia anunciado às mineradoras canadenses o fim da Renca como reserva mineral num evento intitulado Prospectors and Developers Association of Canada (PDAC). Hoje, aproximadamente 30 empresas canadenses já exploram minérios em território brasileiro, especialmente o ouro [III]. O decreto abre a possibilidade de licenciamentos para projetos de mineração na região, considerada rica em ouro, cobre, ferro, níquel, manganês e tântalo [IV], um elemento empregado em equipamentos eletrônicos, bastante raro na crosta terrestre (1 a 2 ppm) e com expectativa de esgotamento nos próximos 50 anos. Como afirma com singelo ufanismo o diretor do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), Victor Hugo Froner Bicca, a região é a “última fronteira de potencial geológico ainda considerável disponível no mundo. É um dia histórico para o setor” [V]. Trata-se certamente de um dia histórico, pois o decreto de Temer é um ataque frontal aos povos indígenas, à segurança de todos os brasileiros, à biosfera e ao sistema climático planetário, dos quais dependemos existencialmente como sociedade e como espécie [VI].
O decreto é parte do Programa de Revitalização da Indústria Mineral Brasileira, lançado em 25 de julho, que inclui a alteração de 23 pontos no Código de Mineração, “com a finalidade de destravar e estimular a atividade mineradora”, nas palavras do site do Ministério das Minas e Energia [VII]. Michel Temer e o grupo que o gere fazem o que se previa que fariam uma vez no poder: o assalto final às últimas salvaguardas socioambientais não derrubadas por Dilma Rousseff. Dentre elas se contam [VIII]:
(1) a conversão em lei (13.465) da medida provisória 759, sancionada em 11 de julho de 2017, a chamada lei da anistia à grilagem feita entre 2004 e 2011, contra a qual 61 organizações e redes da sociedade civil pleiteiam uma ação de inconstitucionalidade [IX];
(2) flexibilização da licença ambiental e transferência de sua outorga aos estados e municípios;
(3) isenção de licença ambiental para agropecuária extensiva e para qualquer propriedade rural “em regularização ambiental” (terras invadidas ou roubadas, via de regra registradas como “propriedade em regularização”);
(4) assinatura presidencial da portaria da Advocacia-Geral da União (ADI 3239 [X]), estendendo a validade para as terras indígenas da tese do “marco temporal”. Por essa tese, deixa-se de se reconhecer como terras indígenas todas as terras das quais os índios foram expulsos antes da promulgação da Constituição em outubro de 1988 (inclusive em casos de “renitente esbulho”), tal como, por exemplo, os guaranis de Mato Grosso do Sul e agora os da reserva do Pico do Jaraguá em São Paulo [XI];
(5) projeto de lei, tramitando em regime de urgência (PL no 8.107/2017), que entrega a invasores 350 mil hectares ou 26,5% da Floresta Nacional (Flona) de Jamanxim, no SO do Pará, em um município ironicamente chamado Novo Progresso, onde uma carreta com dez veículos destinados à fiscalização do Ibama foi incendiada em plena BR163 a mando dos desmatadores. O novo estatuto dessa floresta (APA) permitirá atividades de agropecuária, mineração, ocupação urbana e rural [XII].
A reação da sociedade a essa política de terra arrasada começa a se esboçar, como disso dá mostras uma petição da Avaaz que já conta com muitos milhares de assinaturas e cujas adesões avançam a passos largos. Para quem ainda não a assinou, eis o link: https://secure.avaaz.org/po/nao_ao_deserto_amazonico/?zihIulb
Além disso, várias ONGs e os povos indígenas do Pará e Amapá devem impetrar uma medida judicial contra o decreto de Temer. Há que se mencionar ainda uma reação do Senador do Amapá, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que apresentou um Projeto de Decreto Legislativo (SF) no 160/2017, coassinado por outros senadores [XIII], no objetivo de sustar o decreto de Temer.
Um plácido consenso
Mas são diminutas as chances de sua aprovação. Diminutas, porque, é forçoso admiti-lo, sob os antagonismos que agitam a superfície do espectro partidário brasileiro, há um plácido consenso: a natureza é ainda percebida como um subsistema da economia. Florestas, por exemplo, são mercadoria em potencial ou um empecilho para o acesso ao solo e ao subsolo, isto é, a outras mercadorias. O corolário imediato dessa subordinação da ecologia à economia é que as florestas, isto é, os povos, a flora e a fauna que nelas habitam e as conservam, são uma externalidade e mesmo um entrave ao processo de produção de mercadorias. Com exceção do PSOL de Luiza Erundina, para quem “os modelos que defendíamos se esgotaram” [XIV], e talvez de algumas personalidades isoladas da REDE, todos os partidos brasileiros comungam dessa concepção de mundo. Há, naturalmente, os que advogam formas de converter a floresta em mercadoria de modo “sustentável”, isto é, sem as destruir além de sua suposta capacidade de regeneração. Mas ilusão, ignorância e má-fé aqui se tangenciam porque, em decorrência do rápido agravamento das mudanças climáticas, das secas, dos incêndios e do extermínio da biodiversidade, o limiar de resiliência das florestas está cada vez mais próximo, tal como sugere, mais uma vez, um experimento realizado em árvores pertencentes a 115 genera na floresta amazônica [XV]. Outros experimentos com resultados análogos mostram que essa percepção de um perigo iminente de dieback das florestas tropicais é hoje mainstream science. Ninguém mais pode afirmar, respeitado o princípio de precaução, qual é o limite “sustentável” de extração de madeira na Amazônia, de onde a importância da campanha “Desmatamento Zero” do Greenpeace.
Prova desse tácito consenso partidário é o fato de que os dirigentes do PT e do PCdoB compartilham com o PMDB, o PSDB e o chamado “Centrão” a responsabilidade pelo extermínio da biosfera no país. Aldo Rebelo, quando líder do PCdoB, foi o relator do projeto do novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), a partir de cuja implantação em 2012 o desmatamento na Amazônia aumentou 75%. Rebelo contratou Samanta Pineda, Consultora jurídica para assuntos ambientais da Frente Parlamentar da Agropecuária, para formatar sua proposta [XVI]. Agradecidos, o agronegócio e os grupos empresariais de papel e celulose doaram R$ 6,5 milhões à sua campanha eleitoral e às de outros deputados integrantes da comissão especial do Código Florestal, segundo as declarações disponíveis no site do Tribunal Superior Eleitoral [XVII].
As alianças da cúpula do PT com o latifúndio “moderno” (tricampeão mundial de agrotóxicos, de maquinária de última geração na arte de devastar e de trabalho análogo à escravidão) formam um longo dossiê de traições a seus eleitores. Seu apoio recente à candidatura de Kátia Abreu [XVIII] ao governo de Tocantins em 2018 abole as últimas nuances que ainda diferenciavam sua ação da predação socioambiental da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). O PT tornou-se, de fato, uma força auxiliar dos 240 deputados da FPA, o maior grupo do Congresso brasileiro, cuja agenda é coesa e bem definida: a remoção da legislação de proteção ambiental, o assalto às reservas indígenas e dos quilombolas, a regressão dos direitos dos trabalhadores rurais e a desregulamentação do mercado de terras. Se as forças sociais que ainda apoiam a cúpula do PT não derem um basta, a sigla passará definitivamente a significar Partido dos Terratenentes. A destruição da Amazônia e do Cerrado entre 2001 e 2014, tal como mostram as zonas em vermelho na figura 1, fornece o retrato fidedigno e brutal do legado das direções do PT e do PCdoB aos trabalhadores.
Mais de 50% da cobertura primária do Cerrado, que originalmente se estendia por cerca de 23% do território nacional (2 milhões de km2), foi perdida para a agricultura e a pecuária nos últimos 50 anos. Entre 1994 e 2008, o Cerrado perdeu em média 15.700 km2 por ano. Em 2005, Lula criou uma Comissão Nacional do Cerrado que permaneceu letra morta. A Política Nacional de Mudança do Clima por ele instituída em 2009 (Lei no 12.187) fixou uma meta até 2020 de redução de 40% dessa perda média anual. Essa meta é absurda porque significa considerar como aceitável perder 1% ao ano de sua vegetação remanescente, ou seja quase 10 mil km2. Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil, havia vetado a proposta inicial de uma redução de 50%. Entre 2013 e 2015, nada menos que 30 mil km2 de sua vegetação nativa foram completamente removidos [XIX]. Segundo um estudo prospectivo de Bernardo Strassburg e colegas, de 2017, “mantidas as tendências atuais, 31% a 34% da área restante da cobertura vegetal do Cerrado deve ser suprimida até 2050 (…), levando à extinção ~480 espécies de plantas endêmicas – três vezes mais que todas as extinções documentadas desde 1500” [XX]. Em junho de 2015, o Brasil assumiu o compromisso internacional de restaurar 12 milhões de hectares de cobertura vegetal nativa até 2030. O texto desse compromisso (INDC) sequer menciona qualquer objetivo de preservação do Cerrado. Como bem ironiza Mercedes Bustamante, “dado o avanço do desmatamento, em breve, realmente se tornará desnecessário mencioná-lo” [XXI].
A caixa d’água do Brasil
A imagem e os dados contidos na figura 2 permitem entender porque o Cerrado é chamado o berço e o grande distribuidor dos recursos hídricos para grande parte do território nacional.
Enganam-se, portanto, os que pensam que a destruição do Cerrado não terá consequências catastróficas para o país. Nesse bioma encontram-se três grandes aquíferos (Guarani, Bambuí e Urucuia) e nele nascem três grandes bacias hidrográficas (Tocantins-Araguaia, Paraná-Prata e São Francisco), dos quais dependemos crucialmente, e não menos que milhares de outras espécies. Como lembra Tiago Reis, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), “a perda de vegetação nativa do Cerrado compromete a formação de chuvas por evapotranspiração e a infiltração das águas no solo para recarregar aquíferos e rios da região” [XXII]. A isso se acrescentam a poluição dos aquíferos por agrotóxicos e uma demanda crescente da agricultura de irrigação intensiva, típica do agronegócio que exporta água na forma de soja, carne bovina e outros produtos, o que tem levado a retiradas de água completamente insustentáveis. Uma das primeiras consequências, mas certamente não a última, da destruição do Cerrado é o racionamento de água no Distrito Federal, imposto desde finais de 2016 e sem data para acabar.
[I] Cf. FAO, We can’t live without forests. “Forests are key to supporting life on Earth.” (em rede).
[II] Veja-se Decreto no 9.142, de 22/VIII/2017: Extingue a Reserva Nacional de Cobre e seus associados, constituída pelo Decreto nº 89.404, de 24 de fevereiro de 1984, localizada nos Estados do Pará e do Amapá. Diário Oficial (em rede).
[III] Cf. Ricardo Senra, “Mineradoras canadenses souberam da extinção de reserva na Amazônia 5 meses antes do anúncio oficial”. BBC Brasil 26/VIII/2017.
[IV] Cf. Jonathan Watts, “Brazil abolishes huge Amazon reserve in ‘biggest attack’ in 50 years”. The Guardian, 24/VIII/2017.
[V] Citado por Helena Martins, “Governo extingue Reserva Nacional do Cobre e Associados”. Agência Brasil, 23/VIII/2017.
[VI] Cf. Marina Rossi, “Governo Temer convoca mineradoras à nova caça ao ouro na Amazônia”. El País, 25/VIII/2017; Philippe Watanabe, Fernando Tadeu Moraes, “Temer extingue reserva na Amazônia para ampliar exploração mineral”. Folha de São Paulo, 23/VIII/2017; Bernardo de Mello Franco, “Ataque à Amazônia”. Folha de São Paulo, 24/VIII/2017.
[VII] Cf. “Governo Federal anuncia Programa de Revitalização da Indústria Mineral Brasileira”. Ministério das Minas e Energia, 25/VII/2017 (em rede).
[VIII] Para uma análise dessas medidas, vejam-se os artigos de Claudio Angelo e Luciana Vicária, “Sem acordo, licenciamento ambiental deve ser votado amanhã”. Observatório do Clima, 23/VIII/2017 e Claudio Angelo, “Por que não dá para celebrar a queda no desmatamento”. Observatório do Clima, 24/VIII/2017.
[IX] Cf. Carlos Rittl, “O preço do trator”, Valor econômico, 21/VIII/2017; Moacir Rodrigues, “Entidades pedem ação contra a “Lei da Grilagem”. Safra, 31/VII/2017.
[X] Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239 proposta pelo DEM, questionando os direitos dos quilombolas, reconhecidos pelo Decreto nº 4.887/2003. Cf. “ADI 3239 – Comunidades Quilombolas”, Conectas – Direitos Humanos (em rede).
[XI] Essa reserva de 512 hectares foi revogada pelo Ministério da Justiça em 21 de agosto último. Cf. Felipe Mascari, “Revogação da reserva indígena do Pico do Jaraguá será o fim da comunidade”. Rede Brasil Atual, 22/VIII/2017.
[XII] Cf. Fábio Maisonnave, “Após vetar medida, Temer propõe novo corte de floresta no PA”. Folha de São Paulo, 14/VII/2017.
[XIII] Jorge Viana, João Capiberibe, Cristovão Buarque, Vanessa Grazziotin, Otto Alencar e Lindbergh Farias
[XIV] Em entrevista concedida à CartaCapital (19/V/2016), Erundina afirmava: “Precisamos rever, inclusive, a nossa relação com a natureza, não dá mais para manter um modelo de desenvolvimento predatório”.
[XV] Cf. Adriane Esquivel-Muelbert et al., “Biogeographical distributions of neotropical trees reflect their directly measured drought tolerances”. Scientific Reports, 7, 21/VIII/2017; Vandré Fonseca, “Quanto mais seco, pior”. ((o)) eco, 21/VIII/2017.
[XVI] Cf. Marta Salomon, “Consultora do agronegócio ajudou a elaborar relatório do Código Florestal”. Estado de São Paulo, 8/VI/2010.
[XVII] “Deputados a favor de mudanças no Código Florestal receberam doação de desmatadoras”. Viomundo, 4/IV/2011.
[XVIII] Cf. “Em reunião, PT decide apoiar Kátia Abreu nas eleições ao governo de Tocantins”. Norte do Tocantins, 21/VIII/2017. Sobre os vínculos de Kátia Abreu com o desmatamento, a grilagem de terras, a invasão de terras indígenas e o trabalho análogo à escravidão, há informações profusas. Veja-se, por exemplo, Marcio Zontas, “As faces de Kátia Abreu”. Brasil de fato, 13/IV/2013 e “Senadora Kátia Abreu. PMDB/Tocantins”. República dos Ruralistas.
[XIX] Cf. “Desmatamento do Cerrado supera o da Amazônia, indica dado oficial”. Observatório do Clima, 25/VII/2017.
[XX] Cf. Bernardo B.N. Strassburg et al., “Moment of truth for the Cerrado hotspot”. Nature Ecology & Evolution, 23/III/2017.
[XXI] Cf. Mercedes Bustamante, “Política de clima negligencia o Cerrado – mais uma vez”. Observatório do Clima, 23/XI/2015.
[XXII] Citado em “Desmatamento do Cerrado supera o da Amazônia, indica dado oficial”. Observatório do Clima, 25/VII/2017.
Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2a edição, 2016. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).
Do Jornal da UNICAMP, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 30/08/2017
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