O último século das florestas tropicais? Análise de Luiz Marques (IFCH/Unicamp)
Jornal da UNICAMP
“As florestas são o lar de mais de 80% de todas as espécies terrestres” [I]. A maior parte dessa biodiversidade concentra-se nas florestas tropicais [II]. Há estimativas de que as florestas tropicais podem abrigar mais da metade das espécies terrestres do planeta, grande parte delas vivendo na canópia das árvores. E. O. Wilson, por exemplo, contou 43 diferentes espécies de formigas em uma única árvore na Amazônia peruana, algo equivalente à diversidade de espécies de formigas em todo o Reino Unido. Segundo estimativas, haveria entre 40 mil e 50 mil diferentes espécies de árvores nas florestas tropicais da América do Sul, da África e da Ásia. Um único hectare dessas florestas pode abrigar mais de 480 espécies diferentes de árvores. Mais de 1.300 espécies de borboletas foram documentadas num parque florestal do Peru, ao passo que a Europa toda possui menos de 400 espécies de borboletas [III].
Se definirmos florestas tropicais como formações florestais entre os trópicos (ou próximas deles), com dossel ou canópia (a cobertura formada pelas copas das árvores que se tocam) cobrindo 75% do terreno, então essas florestas estendem-se hoje por bem menos de 10% da superfície terrestre [IV]. Há algumas décadas, E. O. Wilson considerava que as florestas tropicais recobriam cerca de 7% da superfície terrestre, estimativa corroborada por Claude Martin, em cuja monografia de 2015 se lê que por volta de 1800, “a área coberta por florestas tropicais era ainda próxima dos cerca de 16 milhões de km2, considerados sua máxima extensão original. (…) Hoje, [dados de 2010], menos da metade dessa área permanece como floresta intocada – ninguém sabe exatamente quanto – e cerca de outro um quarto sobrevive como floresta fragmentada e degradada” [V].
Aceleração do desmatamento no século XXI
Um estudo baseado em 20 anos de dados satelitares (1990-2010), coletados em 34 países, mostra forte aceleração do desmatamento líquido (desmatamento bruto menos reflorestamento): “a taxa de perda de floresta nos trópicos aumentou em 62% na primeira década do milênio em relação aos anos 1990”[vi]. A figura 1 captura bem a curva dessa aceleração nos anos 2001-2014.
A tendência trienal sintetizada na linha laranja mostra que enquanto em 2001, perderam-se pouco mais de 60 mil km2 de florestas tropicais, em 2014, a perda foi de 99 mil km2. Entre 2001 e 2004, o Brasil perdeu mais florestas que todos os países tropicais juntos, mas a partir de 2011, embora o desmatamento no Brasil venha recrudescendo desde 2012, outros países tropicais tomam a dianteira, tornando-se os maiores responsáveis por essa aceleração, como mostra a figura 2.
A perda anual de florestas nos países tropicais (menos Brasil e Indonésia) praticamente dobrou nesses 14 anos, passando de pouco mais de 31 mil km2 em 2001 para pouco mais de 61 mil km2 em 2014. Na Indonésia, o desmatamento, embora evolua em zigue-zague desde 2009, mantém-se entre 11 mil e 21 mil km2 por ano desde 2004, com remoção nesse período de 10% de sua cobertura florestal [VII]. Em Sumatra, as bacias hidrográficas perderam 22% de sua cobertura florestal (80 mil km2) entre 2000 e 2014 [VIII]. A aceleração mais recente verificou-se particularmente na África Ocidental, na bacia do Mekong e nas florestas de Pápua Nova Guiné, onde houve um salto de 70% entre 2014 e 2015, com um desmatamento apenas neste último ano de 18 mil km2, como mostra a figura 3.
O último século das florestas tropicais?
Como visto acima, Claude Martin avalia que em 2010 já havíamos destruído mais da metade da extensão original (~16 milhões de km2) das florestas tropicais e degradado um quarto dela. Em 2001, o Earth Observatory da NASA lançou a seguinte advertência: “Se a taxa atual de desmatamento continuar, as florestas tropicais desaparecerão dentro de 100 anos, provocando efeitos desconhecidos sobre o clima global e eliminando a maioria das espécies vegetais e animais no planeta” [IX]. Em 2003, Peter J. Bryant confirmava esse prognóstico. A prosseguir essa taxa, escrevia então, “a Tailândia não terá mais florestas em 25 anos” [X]. Infelizmente, como se vê, essa taxa de desmatamento não apenas continuou, mas se acelerou nos últimos 16 anos e, de fato, as florestas primárias da Tailândia – que ainda em 1950 recobriam 70% de seu território – já desapareceram praticamente por completo, o que levou as grandes madeireiras a se voltarem para as florestas de Mianmar [XI].
A causa primeira do declínio atual das florestas tropicais é obviamente o avanço da fronteira agropecuária, impulsionado pela globalização do capitalismo e por uma rede muito interconectada de megacorporações que controlam toda a cadeia alimentar, dos insumos ao consumo final. Mas outra causa desse declínio começa a surgir no horizonte. Ela é sistêmica, isto é, decorre do sistema climático e da maior vulnerabilidade das florestas degradadas: aquecimento, secas, aumento das bordas, ressecamento por exposição aos ventos, maior insolação e maior combustibilidade das florestas fragmentadas, perda de espécies funcionais à sua conservação etc. Não por acaso, um inventário em 21 países publicado em 2015 mostra que “a maior parte das 40 mil espécies de árvores tropicais podem ser agora consideradas como globalmente ameaçadas de extinção” [XII].
Amazônia, perto do “ponto crítico”
No que se refere especificamente à Amazônia, esse inventário, coordenado por Hans ter Steege, afirma: “Ao menos 36% e até 57% de todas as espécies de árvores da Amazônia devem provavelmente ser consideradas como globalmente ameaçadas segundo os critérios da IUCN [União Internacional para a Conservação da Natureza]. Se confirmados, esses resultados aumentarão em 22% o número de espécies vegetais ameaçadas no planeta”. Esse é mais um indicador, entre tantos, a aumentar a probabilidade de estarmos muito perto de um ponto crítico (tipping point), um ponto de não retorno, vale dizer, de declínio irreversível de ao menos toda a parte leste e sul da floresta amazônica. Num estudo de 2012, muito citado, Anthony D. Barnosky e 21 colegas partiam do fato bem conhecido de que “sistemas ecológicos transitam abruptamente e irreversivelmente de um estado para outro, quando levados a cruzar limiares críticos”, para avançar a ideia de que “o ecossistema global como um todo pode reagir da mesma maneira e está se aproximando de uma transição crítica em escala planetária como resultado da influência humana” [XIII]. Indagado por Maria Guimarães e Carlos Fioravanti, da revista da Fapesp, se, mantida a atual trajetória, a Amazônia poderia atingir esse ponto crítico, Thomas Lovejoy respondeu: “Sim. Não sabemos precisamente onde se situa esse ponto, mas creio que ele está em algum lugar próximo do atual nível de desmatamento”. E acrescentou: “A ciência a esse respeito é imprecisa; entretanto, a situação está provavelmente próxima de um ponto crítico, além do qual a floresta se transformará numa forma diferente de vegetação, do tipo savana, na parte sul e leste da Amazônia”.
Ninguém melhor que Antônio Donato Nobre, do INPE, descreveu a aceleração em direção a esse ponto crítico na região brasileira da Amazônia. É preciso citar extensamente esse texto de 2014: “Nos últimos 40 anos, 763.000 km² da floresta foram destruídos. Isso significa duas vezes a área da Alemanha. É preciso imaginar um trator com uma lâmina de 3 metros de comprimento, evoluindo a 756 km/h durante quarenta anos sem interrupção: uma espécie de máquina de fim do mundo. Segundo o conjunto das estimativas, isso representa 42 bilhões de árvores destruídas, isto é, duas mil árvores derrubadas por minuto ou 3 milhões por dia. É uma cifra difícil de imaginar por sua monstruosidade. E aqui falamos apenas de corte raso. Raramente se evocam as florestas degradadas pelo homem, essas zonas que as fotos dos satélites não distinguem e onde não restam senão algumas árvores que mascaram um desmatamento mais gradual. Trata-se neste caso de regiões inteiras nas quais a floresta não é mais funcional e não age mais como um ecossistema. Segundo os índices de degradação colhidos entre 2007 e 2010, essa zona cobre 1,3 milhão de km2, de modo que a área de corte raso e a de degradação representam juntas cerca de dois milhões de km2, ou seja 40% da floresta amazônica brasileira” [XIV].
O assassinato das florestas tropicais e de seus povos
Desde a implantação do Código Florestal em 2012, houve um aumento de 75% do desmatamento na Amazônia [XV] e tão somente de agosto de 2014 a julho de 2016, removeram-se mais 14.196 km2 da floresta amazônica, vale dizer, metade do que perdemos em 2004, o ano em que mais se desmatou a Amazônia, ou uma área equivalente a dois terços da superfície de Sergipe. De 2012 a 2016, a aliança de Dilma Rousseff com os desmatadores representou uma verdadeira traição aos interesses populares, traição cujas consequências não se fizeram esperar. Como mostrou o último relatório da ONG inglesa, Global Witness [XVI], entre 2010 e 2016 houve no Brasil 200 assassinatos documentados e tipificados de camponeses, índios e ativistas, perpetrados a mando do agronegócio, de madeireiras e de outros interesses corporativos, sendo 49 apenas em 2016. Sob a presidência da chapa Dilma Rousseff – Michel Temer, o Brasil conquistou e manteve uma inconteste liderança em assassinatos de índios, camponeses e ativistas em defesa de suas terras e da floresta [XVII], como mostra a figura 4.
Carnivorismo, a causa final
Historicamente, na Amazônia, mais de 80% do desmatamento é causado pela pecuária e a figura 6 mostra a íntima correlação entre pecuária e desmatamento nessa região entre 1988 e 2004.
Um estudo recente do Imazon mostra a extrema concentração econômica da indústria da carne na Amazônia: apenas 128 frigoríficos, pertencentes a 99 empresas são responsáveis por 93% do abate anual do gado amazônico. E o conjunto das regiões de influência desses 128 frigoríficos (isto é, as fazendas fornecedoras de animais para esses frigoríficos) “abrange a quase totalidade das áreas embargadas pelo Ibama e 88% do desmatamento ocorrido na Amazônia entre 2010 e 2015”. O estudo afirma ainda que “se entre 2016 e 2018 a taxa de desmatamento recente se repetir, 90% das novas perdas de floresta estarão dentro da área de influência de compra de 128 frigoríficos” [XVIII].
João Meirelles, diretor do Instituto Peabirú, vem de há muito demostrando que nosso carnivorismo é a principal causa do desmatamento amazônico [XIX]. De fato, dado que consumimos no país cerca de 80% da carne bovina amazônica [XX] e dado que, para satisfazer a uma demanda interna anual de 30 kg per capita (2015), o rebanho bovino da Amazônia saltou de 1,5 para 64 milhões de cabeças, de 1964 a 2004, atingindo 85 milhões em 2016, segue-se que somos nós, consumidores brasileiros, a principal “causa final” do desmatamento da Amazônia. O carnivorismo atual causa malefícios demonstráveis à saúde humana, sofrimentos indizíveis a esses animais musicais, delicados e muito inteligentes [XXI], e, enfim, é a principal razão de ser da destruição da floresta amazônica e do Cerrado.
[I] Cf. ONU, 2015, Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. Objetivo 15.
[II] Há apenas 65 anos as florestas tropicais tornaram-se objeto de estudos sistemáticos. Cf. P. W. Richards de The Tropical Rainforest. An ecological Study, 1952; Adrian Sommer, “Attempt at an assessment of the world tropical moist forests”. FAO, Committee on Forest Development in the Tropics, 1976; E. O. Wilson, The diversity of life, 1992; Claude Martin, On the Edge, 2015 (34o Report to the Club of Rome), com Prefácio de Thomas Lovejoy. Em 2010, 562 publicações e 143 trabalhos de pós-graduação haviam sido realizados a partir do grande experimento iniciado na Amazônia por Thomas Lovejoy em 1979, intitulado The Biological Dynamics of Forest Fragments Project (BDFFP). Em 2015, Lovejoy concedeu duas entrevistas sobre sua trajetória (ambas em rede) a Kevin Dennehy, “Lovejoy, ‘Godfather’ of Biodiversity”, Reflects On 50 Years in the Amazon”. Yale School of Forestry & Environmental Studies, e a Maria Guimarães e Carlos Fioravanti, “Fifty years in Amazon”, publicada pela Revista Pesquisa FAPESP, março de 2015.
[IV] Cf. Rhett Butler, “10 Rainforest facts for 2017”. Mongabay, 2/I/2017.
[V] Cf. Claude Martin, On the Edge, 2015 (34o Report to the Club of Rome).
[VI] Cf. Jeff Tollefson, “Tropical forest losses outpace UN estimates”. Nature, 26/II/2015, baseado em Do-Hyung Kim, Joseph O. Sexton & John R. Townshend, “Accelerated deforestation in the humid tropics from the 1990s to the 2000s”. Geophysical Research Letters, 7/V/2015.
[VII] Cf. “Tropical Forest Alliance 2020 Annual Report 2015-2016 Partnering to produce deforestation-free commodities” (em rede).
[VIII] Cf. Global Forest Watch Water, 30/VIII/2016, com dados sobre desmatamento em 230 bacias hidrográficas (em rede).
[IX] Cf. Cf. Gerald Urquhart, Walter Chomentowski, David Skole, Chris Barber, “Tropical deforestation”. Earth Observatory (em rede); John Vidal, “We are destroying rainforests so quickliy they may be gone in 100 years”. The Guardian, 23/I/2017.
[X] Cf. Peter J. Bryant, Biodiversity and Conservation. A hypertext book, Univ. of California Irvine, 2003.
[XII] Cf. Hans ter Steege et al. “Estimating the global conservation status of more than 15,000 Amazonian tree species”. Science Advances, 1, 10, 20/XI/2015.
[XIII] Cf. Anthony D. Barnosky et al., “Approaching a state shift in Earth’s biosphere”. Nature, 486, 7/VI/2012, pp. 52-58.
[XIV] “Il faut un effort de guerre pour reboiser l’Amazonie”. Le Monde, 24/XI/2014.
[XV] Cf. Giuliana Miranda, “Novo Código Florestal contribuiu para aumento no desmatamento”. Folha de São Paulo, 12/12/2016.
[XVI] Cf. Global Witness, Defenders of the Earth. Global killings of land and environmental defenders, julho de 2017.
[XVII] Cf. “Durante cinco anos seguidos, Brasil é o país mais perigoso para ambientalistas”. Gestão pública eficiente, 13/VII/2017.
[XVIII] Cf. Eduardo Pegurier, “Como o bife no seu prato explica o desmatamento na Amazônia”. El País, 17/VII/2017.
[XIX] Cf. João Meirelles, “Você já comeu a Amazônia hoje?” (em rede).
[XX] “Pecuária é responsável por mais de 80% do desmatamento no Brasil”, Amazônia, 6/IX/2016 (em rede).
[XXI] Cf. Carolyn Gregoire, “Cows Are Way More Intelligent Than You Probably Thought”. Huffington Post, 28/VII/2015.
Texto LUIZ MARQUES
Fotos REPRODUÇÃO | Daniel Beltra – Greenpeace
Edição de imagem LUIS PAULO SILVA
Fotos REPRODUÇÃO | Daniel Beltra – Greenpeace
Edição de imagem LUIS PAULO SILVA
Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2a edição, 2016. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).
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