Entidades e especialistas alertam: a fome pode voltar a ser um dos principais problemas do país
A gente também quer comida
EPSJV/Fiocruz
“Se o Brasil não conseguir retomar o crescimento econômico, gerar empregos de qualidade e ter um programa de segurança alimentar voltado especificamente para as zonas mais deprimidas, nós podemos, infelizmente, voltar a fazer parte do Mapa da Fome”. A declaração do brasileiro José Graziano, diretor-geral da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, feita em novembro em entrevista ao UOL, ecoou o alerta feito meses antes por mais de 20 entidades brasileiras da sociedade civil em um documento apresentado em julho na sede da ONU, em Nova Iorque.
O grupo monitora o cumprimento das metas de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, dentre as quais está a erradicação da fome e a diminuição da pobreza. O texto afirma que “o país saiu da rota” com o “enfrentamento equivocado do déficit fiscal” e o “descaso” com questões estruturais como a reforma tributária. Diz ainda que a Emenda Constitucional 95, aprovada no fim de 2016 com o propósito de congelar os gastos sociais por 20 anos no país, aliada às mudanças na legislação trabalhista e à agenda da reforma previdenciária, poderão impedir o acesso aos alimentos pelos mais pobres, agravando o cenário de insegurança alimentar.
“O relatório faz uma advertência. Embora não existam pesquisas oficiais atualizadas mostrando que a fome voltou ao Brasil, os indícios são contundentes. A crise econômica atingiu em cheio a população mais pobre. E a correlação entre pobreza e fome é muito forte”, explica o economista Chico Menezes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e da ActionAid, que participou da elaboração do documento. O alerta abriu caminho para que veículos nacionais e estrangeiros fossem às periferias de grandes cidades, constatando que é comum encontrar famílias que não sabem o que vão comer no dia seguinte.
Todos os anos, desde 1990, a FAO mapeia a situação da segurança alimentar da população mundial, fazendo diagnósticos por regiões e países. O Brasil saiu pela primeira vez da lista em 2014. O relatório se apoiou em dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad), que aplica de cinco em cinco anos a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), cujo grau mais extremo é a fome. A última pesquisa, feita em 2013, constatou que o número de pessoas que declarou viver em insegurança alimentar grave tinha chegado a 3,2% – ou 7,2 milhões de habitantes. O número é a metade do resultado obtido dez anos antes (6,5%), quando a Ebia começou a ser aplicada, em 2004. Um país com mais de 5% da população subalimentada entra no Mapa da Fome.
Depois de dez anos, a Ação da Cidadania, que foi responsável nos anos 1990 pela mobilização da sociedade brasileira no enfrentamento do problema, relançou a campanha Natal sem Fome. Procurada pela Poli, a assessoria de imprensa da ONG explicou que a iniciativa se deve ao termômetro dos mais de 250 comitês espalhados por 18 estados brasileiros e à própria mídia. Também pela primeira vez na década, a fome voltou a crescer no mundo: segundo a FAO, 815 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar grave. De acordo com o organismo internacional, a piora se deve a conflitos armados e à crise econômica.
A polêmica da distribuição da farinata, um composto feito com alimentos próximos do vencimento ou fora dos padrões de comercialização, em São Paulo colocou de vez os holofotes sobre o tema. Na opinião de especialistas ouvidos pela Poli, o país corre o risco de ser incluído novamente no Mapa da Fome. O diagnóstico parte de números, evidências empíricas e elementos da conjuntura.
O diagnóstico
Os levantamentos oficiais sobre insegurança alimentar vão até 2015, justamente quando, segundo diversas pesquisas, a crise econômica iniciada no ano anterior começou a atingir em cheio a população. “Trabalhamos com os últimos dados públicos, o que traz uma limitação nesse acompanhamento porque fica defasado no tempo. Mas nos baseamos, de um lado, nas informações da Pnad Contínua do IBGE que mostra que o desemprego está atingindo fortemente as camadas pobres da população, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. E, por outro lado, olhamos para a resposta do governo federal, que está descontinuando justamente aquelas políticas que foram fundamentais para o Brasil sair do Mapa da Fome”, afirma Chico Menezes.
“Desde antirreformas, como a trabalhista, à proposta do orçamento federal para 2018, o ajuste está reverberando nas políticas que tiveram um papel importante para o país sair do Mapa da Fome”, concorda a socióloga Maria Emília Pacheco, assessora nacional da Fase, a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, entidade que desde os anos 1970 acompanha o tema. “Não temos dados atualizados, mas se andarmos pelas ruas nas grandes cidades, mesmo nas pequenas, temos uma evidência empírica: mais pessoas estão pedindo comida, pedindo dinheiro. E se olharmos o que está se passando no campo, podemos concluir que a fome está rondando novamente o país”, reforça.
Os últimos dados da Pnad Contínua, divulgados no final de novembro, indicaram que metade dos trabalhadores brasileiros tem renda mensal inferior a um salário mínimo. São 44,5 milhões de pessoas que receberam em 2016, em média, R$ 747. O Nordeste exibe o pior quadro, com um rendimento mensal médio de apenas R$ 485, muito abaixo do mínimo, que está em R$ 937. Só no Sul a renda mensal supera o mínimo (R$ 949). Em 2015, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, voltou a crescer o número de famílias com rendimento per capita inferior a 25% do salário mínimo, a chamada pobreza extrema. Isso aconteceu após quatro anos de queda.
No início de 2017, o país chegou a 14,2 milhões de trabalhadores desempregados, um recorde. De lá para cá, houve melhora: em outubro, o número baixou para 12,7 milhões. Porém, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o ano vai fechar com a maior taxa de desemprego entre jovens desde 1991. O organismo estima que o desemprego deve atingir 30% dos jovens, mais que o dobro da média internacional, que está na faixa dos 13%. O número brasileiro se equipara com o da Síria (30,6%), país que está há seis anos em guerra civil. Entre 2004 e 2014, a taxa brasileira estava em torno dos 16%.
“Estamos em um momento de crise aguda. Certamente a insegurança alimentar aumentou porque aumentou o desemprego, caiu a renda familiar, temos três anos de recessão”, enumera a economista Lena Lavinas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para quem, contudo, é preciso olhar de forma crítica também para o passado recente: “As pessoas não estão se alimentando adequadamente porque os alimentos são caros, porque não há política social para subsidiar o transporte e a moradia e, portanto, as pessoas gastam uma parcela importante da sua renda com compra de alimentos. E elas vão cortar aí pois não podem deixar de pagar aluguel, ou pegar transporte porque têm que sair em busca de emprego. Tudo está associado. E é o perfil restritivo, focalizado, inadequado da política social que também gerou essa realidade porque, se não, a gente fica achando que antes estava tudo bem. Não estava tudo bem, esse é o ponto”.
Idas e vindas
Os especialistas ouvidos pela Poli se dividem entre aqueles que consideram que houve uma inflexão no combate à fome no país através de avanços institucionais que estão sendo desmontados com velocidade pelo governo e pela coalizão que apoia Michel Temer, e quem acredita que os governos do PT fizeram muito menos do que poderiam ter feito – e que, justamente por terem sido construídas sobre bases frágeis, as conquistas nesse plano podem não só ser perdidas como questionadas. Todos concordam num ponto: em um país desigual como o Brasil, ainda havia um caminho longo a ser trilhado em direção à segurança alimentar e nutricional da população.
Para entender o debate da fome hoje, é preciso refazer alguns desses passos. Embora já no fim do século 19 tenham surgido estudos que se debruçaram sobre como se alimentavam os brasileiros pobres e quais as doenças relacionadas à carestia, o governo federal só começou a endereçar o problema nos anos 1930, sob o embalo internacional – o termo ‘segurança alimentar’ foi criado no contexto das preocupações sobre a soberania dos países geradas pela Primeira Guerra Mundial – e nacional. Isso porque as pesquisas conduzidas por um médico pernambucano chamado Josué de Castro, que viria a presidir a FAO, mostraram que as famílias operárias gastavam muito da sua renda, cerca de 70%, para se alimentar mal e pouco. A dieta, pobre em vitaminas e sais minerais, era uma das grandes responsáveis pela alta mortalidade e baixa expectativa de vida da população. Segundo o pesquisador Francisco Vasconcellos, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a repercussão da descoberta serviu de base para a regulamentação da lei do salário mínimo, instituído por Getúlio Vargas.
Desde então, muitos programas de combate à fome foram criados para, em seguida, serem extintos pelo governo de ocasião. A ação do Estado brasileiro se materializou em ações pontuais e emergenciais. “Temos um passado longo em que se fala no combate à fome. Não podemos nunca esquecer o que representou a luta do Josué de Castro. Mas se a gente for pensar do ponto de vista das políticas públicas, o que predominou na nossa história foram medidas paliativas e assistencialistas”, avalia Maria Emília.
Na leitura de Chico Menezes, não se pode subestimar um fator subjetivo: “Até a década de 1990 havia uma crença generalizada de que a fome era uma fatalidade. Como se o país estivesse condenado para sempre a ter gente passando fome. Embora autores como Josué de Castro advertissem que a fome era o resultado de políticas públicas, ainda persistia a ideia de que não tínhamos como lutar contra isso”. Também no plano ideológico, durante muito tempo prevaleceu, inclusive em organismos internacionais como a FAO, a ideia de que o problema da fome tinha raiz na produção de alimentos. Uma vez que a agricultura desse um salto de produtividade – que, segundo essa lógica, teria de acontecer com o uso de insumos, agrotóxicos, sementes transgênicas, monoculturas, mecanização – a fome no mundo teria fim.
Foi assim que o Brasil chegou aos anos 1990 com uma população de 32 milhões de pessoas passando fome, um número que, na época, equivalia a toda a população da Argentina. A constatação foi feita pelo primeiro estudo amplo feito no país sobre a questão, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 1993, que destacou a contradição: a produção de alimentos do país era “superior às necessidades diárias de calorias e proteínas” dos brasileiros. Logo, o problema não estava na quantidade de alimentos produzidos, mas na sua lógica de produção e distribuição, assim como na barreira fundamental ao seu acesso: a renda. Novamente, a repercussão fez com que o governo se mobilizasse. Mas, desta vez, o protagonismo foi da sociedade civil, encabeçada pela ONG Ação da Cidadania, criada pelo sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho.
“A campanha liderada por Betinho teve uma importância muito grande ao plantar a ideia do direito à alimentação na sociedade brasileira. Mais do que a distribuição de alimentos, que teve uma força grande, ter ajudado a consolidar a compreensão de que a fome não era algo admissível e tinha que ser enfrentada foi o melhor fruto da Ação da Cidadania”, avalia Chico Menezes, que trabalhou com Betinho.
Os desdobramentos dessa mobilização foram a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), onde representantes da sociedade civil começaram a debater com o governo a implementação de um plano nacional para enfrentar a fome e a miséria. Mas, com a passagem do bastão de Itamar Franco para Fernando Henrique Cardoso, a descontinuidade deu novamente as caras: um dos primeiros atos do presidente eleito foi a extinção do Consea. FHC colocou no lugar o programa Comunidade Solidária, tocado por um conselho presidido pela primeira dama do país, Ruth Cardoso.
Contudo, com a adoção do Plano Real e o controle da inflação, começou a surgir um outro tipo de consenso, de que o ajuste na economia faria mais pelo combate à fome do que programas e ações. Ficou famoso o slogan de que com R$ 1 se comprava um frango. Lena Lavinas, que analisou o período de 1994 a 2002 em uma pesquisa nacional também publicada pelo Ipea, conta que o que mais contribuiu para elevar a segurança alimentar no país não foi a melhora nos altos índices de inflação, que teve como consequência a queda dos preços. “O fator determinante foi a elevação do rendimento das famílias”, diz. Mas pondera: “Embora tenha aumentado a acessibilidade aos alimentos, nem por isso as pessoas começaram a se alimentar melhor. Não basta olhar a ingestão calórica sem levar em conta o que as pessoas estão comendo”.
Com uma campanha marcada pela promessa de que todo brasileiro faria, no mínimo, três refeições diárias, Lula assume o Planalto em 2003. Segundo Maria Emília Pacheco e Chico Menezes, foi a partir daí que se constituiu um vetor que unificou iniciativas que estavam isoladas. “Até 2002 as medidas são muito fragmentadas. Não havia um projeto de enfrentamento dessa calamidade”, considera o economista, para quem o fato de o combate à fome ter sido declarado como prioridade de governo foi fundamental para que, em pouco tempo, o projeto se transformasse em política e, depois, em direito constitucional, o que aconteceu em 2006 e 2010 respectivamente. Esse arcabouço jurídico e institucional representou um “salto” na avaliação de Maria Emília. “Eu considero que demos passos muito mais arrojados a partir de 2003”, diz. “É muito importante entender que não foram só as políticas, mas a criação de uma base institucional capaz de operá-las”, completa Chico.
Além disso, ele destaca que prevaleceu a ideia de que o enfrentamento à fome deveria ser feito de forma intersetorial. “Não adiantava trabalhar pontualmente de um lado a agricultura, do outro a saúde, de um terceiro a educação. Era preciso estabelecer espaços de troca e de construção de políticas com todos esses setores”. A participação popular também era considerada fundamental para impulsionar e trazer a realidade para a prática dessas políticas, segundo os especialistas, que destacam que a recriação do Consea, em 2003 – do qual ambos foram presidentes – foi chave. Na avaliação deles, a base institucional aliada ao bom momento da economia e às políticas sociais propiciaram a saída do país do Mapa da Fome.
Mais uma reviravolta
Com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e a chegada de Michel Temer ao Planalto em meio a uma crise econômica e política sem precedentes, mais reviravoltas aconteceram nessa história cheia de idas e vindas. Uma reforma ministerial extinguiu a pasta do Desenvolvimento Agrário, responsável por vários programas de incentivo à agricultura familiar considerados por entidades e especialistas parte fundamental desse quebra-cabeça do combate à fome. Já o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome perdeu, de forma simbólica, a segunda parte do nome. No Itamaraty, a estrutura responsável pela cooperação internacional do Brasil no tema da segurança alimentar e nutricional foi extinta.
“No Congresso Nacional, ganhou ainda mais fôlego a pauta ruralista da flexibilização da legislação ambiental e sanitária, com a proposta que muda o termo agrotóxico por produtos fitossanitários, por exemplo. É tudo muito encadeado”, observa Maria Emília, que completa: “Na minha avaliação, esse desmonte é muito mais grave do que o que aconteceu na década de 1990 em razão dos passos que nós tínhamos dado”.
Os números das duas versões apresentadas pelo governo federal para o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2018 preocupam os especialistas. Chico Menezes fez as contas e constatou que, em alguns casos, a União reduziu tanto os recursos que algumas ações serão extintas na prática. É o caso do programa Cisternas, voltado para a região do semiárido, que sofreu nas duas versões da proposta orçamentária corte de 92%. “Gera perplexidade porque o semiárido brasileiro vive uma seca que já dura cinco anos”, diz ele, que pondera que embora a meta de construção de 1 milhão de cisternas para abastecimento das casas tenha sido ultrapassada em 200 mil, o programa tinha se direcionado para prover água para a produção de alimentos. “Esse programa acabou de ser premiado pela ONU, em setembro, como a segunda melhor experiência no enfrentamento da escassez de água envolvendo governo e sociedade. E o paradoxo é que este governo, que nada fez pelo programa e, agora, propõe um corte que na prática o liquida, recebeu o prêmio”, observa.
Já o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura familiar ; que estava numa situação ainda mais grave na primeira proposta de orçamento – com 99% de corte – escapou do risco de extinção, mas terá de se virar com menos 57% dos recursos previstos para 2017: terá R$ 5 milhões. Em 2015, o programa recebeu R$ 33 milhões. “O programa tem uma peculiaridade de, por um lado, fortalecer os agricultores familiares e, por outro, garantir uma alimentação de qualidade para a rede socioassistencial, para as escolas”, afirma Maria Emília.
Olhando para o PAA, a socióloga argumenta que a análise do desmonte dos programas não deve prescindir de um diagnóstico interno do que está sendo executado e o que está sendo cortado. “Não dá para dizer que o PAA está extinto. Mas se mantém uma modalidade, enquanto as demais estão à míngua”, critica. Ela se refere, por exemplo, à modalidade de compra com doação simultânea, voltada para os segmentos mais pobres do campesinato. “A modalidade da compra institucional, que é a venda dos agricultores para unidades do Exército, por exemplo, tem se mantido. Só que os agricultores mais pobres dificilmente conseguem se estruturar para atender a essa demanda que é grande do ponto de vista de quantidade, mas não de variedade”, explica.
Duas visões sobre o problema
“Parece que estava tudo resolvido nos últimos anos e que tudo se agrava agora. Eu diria que não. Eu diria que houve uma relativa miopia sobre a dimensão da insegurança alimentar que seguiu vigente no Brasil”, argumenta, por sua vez, Lena Lavinas. E completa: “Porque senão parece que tudo está acontecendo neste governo. Claro que as coisas se deterioram muito agora. Mas a gente não fez o que deveria ter feito para consolidar um sistema de proteção social mais forte, resistente e institucionalizado”.
Para ela, o primeiro ponto é que comer continuou custando caro no Brasil e comprometendo uma fração elevada da renda das famílias. Segundo o Dieese, que mensalmente divulga o valor das cestas básicas nas capitais brasileiras, em novembro um trabalhador que receba o salário mínimo comprometeu 42% da sua renda com a cesta básica, que chega a custar R$ 444,16 em Porto Alegre. “É muito mais caro comer no Brasil do que em outros países porque aqui não há uma política de desoneração completa dos alimentos. Na Inglaterra, nenhum imposto incide sobre nenhum tipo de alimento. Na Alemanha, com exceção de alimentos de luxo, como caviar, também. Na França, os impostos sobre alimentos ficam na faixa dos 7%, enquanto no Brasil esse número é de 20%”, compara Lena, que defende que uma política tributária adequada teria grande impacto na melhoria da segurança alimentar.
Contudo, a economista aponta que nada foi feito nesta direção. Em meio à alta dos preços e pouco antes da explosão de protestos em 2013, o governo Dilma Rousseff anunciou em cadeia nacional de rádio e televisão a retirada dos impostos federais da cesta básica, um impacto de R$ 5,5 bilhões em receitas, pouco se comparada aos quase R$ 105 bi concedidos em renúncias a empresas só naquele ano. “Foi absolutamente insuficiente”, taxa Lena, que observa que a maior parte dos impostos que incidem sobre os alimentos são estaduais, como o ICMS.
Pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas divulgada em setembro mostrou que a segunda maior razão de inadimplência, que atinge 54,9 milhões de pessoas, é a compra de alimentos. “A insegurança alimentar não pode ser encarada só da perspectiva da baixa ingestão calórica ou da ingestão de alimentos ruins. Como as pessoas vêm pagando muito mais caro em relação a sua renda para se alimentar, elas vão adquirindo e rolando dívidas para comprar comida”, diz Lena. A maioria dos brasileiros usa o cartão de crédito em supermercados (62%) e farmácias (49%), segundo o levantamento. As compras em supermercados são principalmente de mantimentos.Em 2014, 54% da população brasileira estava com sobrepeso, segundo relatório divulgado pela FAO e pela Organização Pan-Americana de Saúde no início de 2017. A obesidade entre adultos chegou a 20%, também em 2014. Um dos fatores, argumenta Lena, tem de novo a ver com o custo de vida no país. Comer implica também gastos com gás. Assim como a gasolina, o preço do gás vem sendo reajustados pela Petrobras. O preço médio do botijão no Rio, por exemplo, chegou a R$ 73,45 segundo a Agência Nacional de Petróleo. “As famílias, sobretudo as mais pobres, tendem a se alimentar de maneira a gastar menos gás. Optam por alimentos de cozimento rápido, pães e embutidos que têm altas taxas de sódio e conservantes”, descreve, para emendar: “Não adianta falar de volta da fome sem ter entendido antes que, apesar de ter aumentado a acessibilidade alimentar, ao longo dos anos 2000 a gente não enfrentou problemas que se agravaram”.
Embora deem destaque para os avanços do ponto de vista do marco legal e institucional, também para Chico Menezes e Maria Emília Pacheco foi um período de contradições. “É verdade que num processo que houve avanços, houve muitos equívocos também. Nós não conseguimos regular a publicidade de alimentos. O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Não fizemos reforma agrária. Os governos nesse período nunca ofereceram resistência ao agronegócio, pelo contrário. Sua governabilidade dependia da aliança com o agronegócio, até que pouco a pouco esse apoio dos ruralistas foi sendo retirado. Em suma, o que ocorreu em relação à questão da segurança alimentar não é diferente do que ocorreu no país”, afirma Chico, que cita um caso que, na sua avaliação, ilustra a correlação de forças do período.
O exemplo é a aprovação da lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). “Havia uma resistência enorme no Congresso em relação a dois pontos da lei: a previsão de que 30% da alimentação escolar seria fornecida pela agricultura familiar e a impossibilidade da terceirização da alimentação escolar. E a aprovação da lei só pôde ocorrer porque abrimos mão da proibição da terceirização”. Mesmo assim, argumenta, o marco legal avançou, por exemplo, recuperando perdas acumuladas por dez anos no valor per capita repassado pela União por aluno e estendendo o direito para o ensino médio. “Eram 45 milhões de alunos por dia se alimentando. Isso significou uma abertura de mercado para a agricultura familiar que, num primeiro momento, nem conseguiu dar conta”.
Em novembro, a notícia de que um menino desmaiou de fome em uma escola do Distrito Federal mostrou que o papel da merenda ainda é relevante na vida de famílias em situação de vulnerabilidade. A criança não tinha, na avaliação do governo do DF, direito a almoço porque estudava no turno da tarde. “O PNAE é parte das razões pelas quais o Brasil conseguiu sair do Mapa da Fome. Se o aluno não dispõe de alimentação na escola, vai haver sacrifício na alimentação para o conjunto da família, principalmente para as mães. Fome para os adultos e também, em muitos casos, fome para as crianças”, diz. E completa: “Acho que hoje precisamos cerrar fileiras de resistência à destruição do pouco que se conseguiu construir”.
Já Maria Emília observa que o país saiu do Mapa da Fome com um percentual alto de insegurança alimentar grave entre indígenas, quilombolas e segmentos da população negra. Para ela, a questão estrutural a ser enfrentada é fazer valer o direito à terra e ao território. “Sem isso, não rompemos com esse ciclo. Os indígenas e quilombolas têm sido impactados fortemente pela expansão do agronegócio, da mineração, de megaprojetos e não tivemos reconhecimento de terras indígenas”, diz, completando: “No caso brasileiro, temos que fazer um recorte de raça. Segmentos da população negra nas cidades também continuaram vivendo situação de fome”.
A socióloga também chama atenção para os chamados ‘desertos alimentares’, locais das cidades em que a população não tem acesso a alimentos de qualidade in natura. “A concentração vai da produção ao consumo. Tivemos uma reconfiguração no Brasil com a formação de oligopólios de redes de supermercados. Os pequenos mercados fecharam ou foram comprados por grandes empresas, transformando-se também em lugares onde são vendidos produtos alimentícios processados e ultraprocessados”, explica.
Quem passa fome hoje?
Mas, afinal de contas, quem são os brasileiros que passam fome hoje? Segundo José Graziano, em entrevista ao UOL, “a cara da fome no Brasil é de uma mulher, de meia idade, com muitas crianças e que vive no meio rural. Em geral, o marido migra e não a leva, resultando em grande parte no abandono da família”. Mas será que esse perfil pode se generalizar? No rastro do relatório da sociedade civil sobre a Agenda 2030, divulgado em julho, e da polêmica da distribuição da farinata, muitos veículos foram às ruas e constataram que não é difícil encontrar famílias em situação de insegurança alimentar grave em metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. São pessoas que moram nos bolsões de pobreza dessas cidades, em periferias, ocupações ou na rua, e relatam ter visto sua renda despencar com o desemprego. Muitas reportagens relatam que o corte do benefício do Bolsa Família e das complementações que os estados fazem a essa renda mensal tem agravado o cenário. Pesquisa do Ibase em 2008 apurou que 87% dos beneficiários do Bolsa Família tinham na alimentação o gasto principal com os recursos recebidos.
“A situação anterior era muito generalizada tanto no campo quanto na cidade”, relembra Maria Emília, que vê diferenças entre aquele período e hoje. Tomando como exemplo a região da caatinga, no semiárido nordestino, a pesquisadora afirma que, diferente do que aconteceu no passado, quando estiagens prolongadas provocavam tamanha carestia que os saques a supermercados eram comuns, hoje, embora a seca seja considerada a pior em 100 anos, não se vê mais isso. “A situação dos agricultores antes do programa ‘Um milhão de cisternas’ era muito mais grave”, diz, citando o programa federal que sofrerá um corte de 92% no ano que vem. “As políticas recentes conseguiram dar uma resposta a amplos setores, com algumas exceções. É difícil dizer hoje se predominará mais uma situação de fome no campo ou na cidade. Mas é verdade que nós temos no Brasil um maior número de mulheres chefiando famílias e, se o desemprego e a queda de renda estão chegando a esses lares. As mulheres serão as mais afetadas”.
Mas se não dá para saber ao certo o que virá, alguns cenários inéditos preocupam. É o caso da crise econômica do Rio de Janeiro, onde servidores públicos com salários sistematicamente atrasados enfrentam dificuldades em pagar as contas – e comprar comida. “Camadas médias também estão vivendo um período de privação. É muito grave o quadro brasileiro hoje”, constata Maria Emília. A próxima Pnad que vai medir a Escala Brasileira da Insegurança Alimentar e pode responder se a fome se generalizou ou não, se transformando novamente em um dos grandes problemas nacionais, deve ser feita no ano que vem e divulgada em 2019.
Por Maíra Mathias – EPSJV/Fiocruz
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 08/01/2018
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