O que é Transtorno de Personalidade Borderline? artigo de Bartholomeu de Aguiar Vieira
Não devemos estigmatizar o sofrimento humano de qualquer classe. O mais importante é procurar entender o que compõe esse quadro.
O transtorno de personalidade borderline é um quadro clínico já conhecido há muitos anos. Cada quadro de personalidade possui traços típicos que compõem sua constelação clínica.
Algumas características clássicas do transtorno borderline são a profunda hipersensibilidade nas relações interpessoais, a estável instabilidade das emoções, a irritabilidade e a impulsividade.
Por fora, temos um indivíduo com tempestades emocionais, com uma marcada e observável dependência dos outros e que, ao mesmo tempo, vive conflitos significativos nas relações interpessoais. Internamente, temos uma situação das mais dolorosas: indivíduos que sentem tanta dor emocional que seus recursos muitas vezes são a automutilação e o abuso de substâncias — na tentativa de calar a experiência de estar permanentemente em carne viva –, e, com certa frequência, nos casos mais graves, as tentativas de suicídio.
Se nos detivermos a observar apenas os sintomas apresentados quando tentamos entender o quadro clínico, estaremos incorrendo em uma descrição quase vaga, com marcada superficialidade e falta de empatia. O pouco que o público geral ganha ao aprender sobre listas de sintomas é a habilidade de identificar uma classificação capaz de fazê-lo buscar ajuda. Porém não devemos estigmatizar o sofrimento humano de qualquer classe. O mais importante é procurar entender o que compõe esse quadro, de modo menos deletério, sem reduzir o sofrimento desses pacientes ou minimizar a importância de suas queixas.
Sendo mais cuidadosos, a prática clínica e as pesquisas atuais mostram que, tanto nas situações mais brandas quanto nas mais graves, é notável um problema de falta de organização, coesão e visão integrada do que é a imagem do Eu do paciente e da imagem que se estabelece dos outros significativos.
De modo didático, prevalece, para o indivíduo, uma visão contraditória e caótica sobre si mesmo. O mesmo problema ocorre a respeito da imagem dos outros significativos: o paciente com transtorno borderline não tratado tem uma significativa dificuldade em manter em sua mente a experiência psicológica da permanência ou da continuidade do outro. O somatório desses dois elementos (não integração do Eu e do Outro) faz com que esse paciente dependa, no mais alto grau, do comportamento imediato da outra pessoa para avaliar a própria personalidade e mesmo a relação vivida entre eles. Em uma imagem, podemos traduzir tudo isso como uma pororoca.
Os pacientes borderline vivem como se fossem arremessados em estados emocionais extremos e frequentemente perdem a capacidade de juntar as pontas entre as emoções sentidas por eles, aquelas causadas nos outros e o que viria a ser a motivação alheia para comportamentos de todo tipo.
Apesar disso tudo, é importante afirmar que os indivíduos com transtorno de personalidade borderline perdem apenas brevemente a capacidade de diferenciar a realidade de suas emoções, mantendo a habilidade da empatia e respeitando os critérios sociais desse fenômeno, por mais paradoxais que possam ser seus episódios empáticos.
Como tais sujeitos passam a ser assim? Não existe uma opinião hegemônica entre os profissionais sobre isso. Mesmo com a tendência contemporânea de explicar os fenômenos humanos remetendo suas causas ao funcionamento do cérebro ou à genética, ainda não foi possível encontrar nesse método uma explicação suficiente para o transtorno. Sem dúvida, genes estão envolvidos, como estão envolvidos em tudo, mas genes não causam maus comportamentos, eles são uma das portas que permitem que esses fenômenos aconteçam.
Certamente não devemos descartar a importância dos avanços da neurociência ou das medicações para controle de humor ou da depressão, mas essas estratégias de tratamento, ao menos nos dias atuais, ainda são muito frágeis e podem, no melhor dos casos — o que não é pouco –, apaziguar o sofrimento dos pacientes. Contudo, o que deve ser visto aqui é o risco de criarmos um ciclo de esperança e frustração impulsionados por apostas na responsividade a uma medicação perfeita que ainda não existe. Assim, mais importante do que qualquer tentativa de solução do tipo deus ex machina, que faz apelo a uma possível causa orgânica, o que deve ser pensado são as dificuldades e os problemas que esses indivíduos viveram e vivem desde o começo de sua infância nas relações com os demais.
Passando ao largo de qualquer movimento de culpabilização taxativa de familiares ou dos próprios pacientes, devemos retornar à essência do problema. A personalidade do paciente e as formas como tais pessoas estão habituadas a lidar com os conflitos que vivem devem ser o alvo dos tratamentos. Trata-se, então, de um treinamento que o paciente precisa fazer para melhorar? Sim, mas não só. Os tratamentos que propõem “pedagogias” (técnicas e exercícios) podem ajudar nas situações mais básicas de regulação do humor e estabilização do comportamento, mas, uma vez criado esse solo básico de estabilidade, deve ser feito um investimento mais profundo e significativo na forma como o indivíduo com o transtorno borderline vive de modo extremado suas relações afetivas.
Aqui não estamos mais apontando os objetivos clínicos mais primários, ou seja, a mera diminuição de sintomas. Estamos fazendo uma aposta mais ousada, estamos dizendo que os pacientes com o transtorno de personalidade borderline podem construir vidas que valem a pena ser vividas, que podem atravessar e superar um estado depressivo conhecido por eles desde muito cedo.
Falar abertamente sobre o diagnóstico é fundamental para mudar o prognóstico drasticamente para melhor. Por muitos anos, a literatura especializada reportou apenas as dificuldades do tratamento dessa população clínica, que, por sua vez, era difícil de abordar por conta da própria técnica terapêutica inadequada que era usada nesses casos. Há trinta anos, os pacientes borderline eram evitados por conta de uma má compreensão; hoje, o cenário mudou radicalmente.
Quando se estabelece uma relação empática dos dois lados, quando acordos terapêuticos são feitos e uma vontade de melhorar se cria, o paciente com uma organização borderline da personalidade pode ser visto como o possuinte do transtorno mais tratável e com ótimo potencial de recuperação.
Bartholomeu de Aguiar Vieira
Professor de Psicopatologia, Estágios de Psicodiagnóstico e Avaliação da Personalidade do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS) da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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