quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

ÁGUA POTÁVEL : A INSUSTENTÁVEL SITUAÇÃO DO SANEAMENTO NO BRASIL.

Água potável: a insustentável situação do saneamento no Brasil


Água potável : a insustentável situação do saneamento no Brasil. Entrevista especial com Iene Christie Figueiredo

Por João Vitor Santos . Edição: Ricardo Machado . IHU
A cidade do Rio de Janeiro ocupou as manchetes de jornais em todo o Brasil e no mundo nas primeiras semanas de 2020, mas não foi por conta de suas belas paisagens litorâneas, senão pela qualidade da água disponibilizada às pessoas. O problema histórico nas regiões periféricas de todo o Brasil chegou à classe média carioca e ganhou status de calamidade. Essa é só a ponta do iceberg do descaso do saneamento básico no país. “Todos os afluentes ao rio Guandu se encontram em estado avançado de degradação da sua qualidade, uma vez que cortam regiões/municípios com crescente adensamento populacional e sem qualquer serviço de esgotamento sanitário prestado de forma efetiva. Ou seja, todo esgoto doméstico gerado nessa região vai para os cursos d’água sem qualquer tipo de tratamento”, explica a professora doutora Iene Christie Figueiredo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
O descalabro do fornecimento de água suja e contaminada é resultado da negligência dos poderes públicos, tanto em fiscalizar e cobrar o cumprimento da lei, quanto da falta de investimentos suficientes na gestão dos recursos hídricos. “A real aplicação dos requisitos legais, e a adequada fiscalização/regulação dos serviços de Saneamento são fundamentais para a segurança hídrica. Apenas 46,3% dos esgotos gerados no Brasil em 2018 foram conduzidos ao tratamento (não podemos afirmar que o tratamento foi adequado/suficiente para atender aos padrões de lançamento). Considerando que a Política Nacional de Saneamento é de 2007, fica claro nosso descaso com a problemática com a devida prestação destes serviços”, pondera a entrevistada.
O atual contexto de crise climática sugere que atualizemos nossa compreensão sobre o que compreendemos como colapso, o que não é um destino para o qual caminhamos, senão uma realidade fática em muitos contextos. “Cada região terá sua condição atual e capacidade de reversão diferentes. Mas acho que já nos encontramos em colapso, mesmo que de forma esporádica, em muitas regiões”, complementa.
Iene Christie Figueiredo possui graduação em Engenharia Civil e mestrado em Engenharia Ambiental pela Universidade Federal do Espírito Santo, doutorado em Engenharia Civil – Tecnologia de Saneamento Ambiental pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia / Universidade Federal do Rio de Janeiro – COPPE/UFRJ. É professora Adjunta da Escola Politécnica/UFRJ, vinculada também aos mestrados Profissionais em Engenharia Ambiental e Engenharia Urbana desta instituição. Tem experiência na área de Engenharia Ambiental e Sanitária, atuando principalmente nos seguintes temas: processos de tratamento de água e de esgoto, poluição e qualidade das águas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que esse episódio do início de 2020, envolvendo a qualidade da água ofertada para consumo no Rio de Janeiro, revela sobre a segurança hídrica da cidade e de toda região?
Iene Christie Figueiredo – Neste momento estamos questionando a segurança hídrica em relação a qualidade. Uma a discussão sobre a quantidade precisa considerar também o fato da Região Metropolitana do Rio de Janeiro – RMRJ ser quase integralmente dependente do Rio Guandu (cerca de 80% da demanda de água potável produzida nessa região depende do Guandu que, por sua vez depende da transposição do rio Paraíba do Sul, importante manancial também para Minas e São Paulo).
Voltando à questão da qualidade (objeto da questão atual), todos os afluentes ao rio Guandu (com destaque àqueles que estão próximos da captação da Estação de Tratamento de Água Guandu) se encontram em estado avançado de degradação da sua qualidade, uma vez que cortam regiões/municípios com crescente adensamento populacional e sem qualquer serviço de esgotamento sanitário prestado de forma efetiva. Ou seja, todo esgoto doméstico gerado nessa região vai para os cursos d’água sem qualquer tipo de tratamento.
IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre esse caso do Rio de Janeiro com a segurança hídrica das grandes metrópoles brasileiras?
Iene Christie Figueiredo – A situação do Rio é similar a tantas outras regiões metropolitanas que se encontram instaladas nos trechos finais dos seus mananciais abastecedores: uma histórica deficiência na prestação dos serviços de saneamento, com a contaminação cotidiana desses corpos d’água por esgotos, drenagem e resíduos sólidos. Estes contaminantes são arrastados sem o adequado tratamento para as captações dos sistemas de abastecimento de água e, dependo da capacidade de diluição do rio, requer readequação do processo de potabilização para garantir a produção de água de qualidade.
IHU On-Line – Em que medida a segurança hídrica é ameaçada no Rio de Janeiro por ineficiência de sistema de governança de recursos hídricos? Como superar essa ineficiência?
Iene Christie Figueiredo – Prestar os serviços de saneamento é uma obrigação constitucional do município, que pode prestá-lo de forma direta ou indireta, ou concedê-lo para empresas públicas ou privadas. Os municípios têm se mostrado omissos, seja na prestação dos serviços ou na fiscalização da concessão. A forma real de mudar este cenário é aplicar a lei, principalmente aquela que trata do Saneamento Básico (lei 11445/2007).
IHU On-Line – No que consiste um eficiente sistema de governança de recursos hídricos, tanto do ponto de vista do tratamento de água para consumo como para preservação ambiental?
Iene Christie Figueiredo – Como disse, tanto a qualidade da água potável (água para consumo humano) como a prestação dos serviços de Saneamento (abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana e manejo dos resíduos sólidos) já são regulados por leis específicas. Nelas são definidos não só critérios de qualidade, mas também direitos e deveres da prestação e fiscalização dos serviços. A real aplicação dos requisitos legais, e a adequada fiscalização/regulação dos serviços de Saneamento são fundamentais para a segurança hídrica.
Além disso, precisamos fazer a mesma observação quando falamos das leis que regem os recursos hídricos: é importante cumprir padrões de lançamento, gestão da bacia com a efetiva participação dos comitês de bacia, etc.
IHU On-Line – Em nota conjunta, docentes da UFRJ indicam que “todas as medidas apontadas como necessárias para garantir a segurança hídrica da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro não implicam em desenvolvimento de novas tecnologias e já são bastante conhecidas”. Que tecnologias são essas e quais seus limites?
Iene Christie Figueiredo – As tecnologias são diversas, considerando não só os processos de potabilização (e os diferentes produtos que podem ser associados aos processos convencionais) mas também em relação ao tratamento de efluentes domésticos (a comunidade científica brasileira disponibiliza um leque imenso de possibilidades de tratamento adequadas às nossas condições climáticas, sociais e econômicas). O importante aqui não é elencar tecnologias (essa discussão é profundamente técnica, densa e longa), mas sim dizer que o já fazemos (ou sabemos fazer) e suficiente para dar solução a esta situação. No entanto, qualquer solução depende de vontade política associada ao investimento, e tempo para que os resultados aconteçam.
IHU On-Line – O episódio do Rio de Janeiro também trouxe à tona a informação de que a Estação de Tratamento de Água de Guandu recebe praticamente esgoto e tem de transformar em água potável. Como avalia esse cenário? Essa também é a realidade de outras estações de tratamento de água de outras metrópoles brasileiras?
Iene Christie Figueiredo – Além do que já foi dito anteriormente, deve-se destacar aqui que a ETA Guandu começou a operar nos anos 1950 entregando água de qualidade para a população. Situações como esta, observadas em outras regiões do país, são decorrentes da contaminação da água bruta associada a elevada radiação e longos períodos de estiagem. Ou seja, a presença de esgotos/nutrientes é a principal razão da ocorrência de algas e/ou cianobactérias (sua remoção é, portanto, fundamental para controle destes eventos), mas é necessário que outros fatores sejam associados a esta contaminação que o abastecimento seja comprometido.
Ponto de captação de águas na ETA do Rio Guandu na Baixada Fluminense, no Rio, e a poluição da água (Foto: Divulgação | Comitê Guandu)Ponto de captação de águas na ETA do Rio Guandu na Baixada Fluminense, no Rio, e a poluição da água
(Foto: Divulgação | Comitê Guandu)
IHU On-Line – Qual a situação do tratamento de esgotos no Brasil de 2020?
Iene Christie Figueiredo – Ainda não apresentamos resultados positivos neste sentido. Segundo a última publicação do Sistema Nacional de Informação em Saneamento – SNIS, 2019, apenas 46,3% dos esgotos gerados no Brasil em 2018 foram conduzidos ao tratamento (não podemos afirmar que o tratamento foi adequado/suficiente para atender aos padrões de lançamento). Considerando que a Política Nacional de Saneamento é de 2007, fica claro nosso descaso com a problemática com a devida prestação destes serviços.
IHU On-Line – Técnicos apontam que, atualmente, o esgoto doméstico traz também uma carga elevada de pesticidas, protetor solar, repelentes, remédios como antibióticos, hormônios, antidepressivos e vários outros fármacos. Quais os desafios para se tratar a matriz do esgoto atualmente? A maioria das estações em operação no Brasil hoje dão conta de tratar esses resíduos?
Iene Christie Figueiredo – Essa problemática é real, mas num país em que não temos investimentos suficientes para tratar/remover o mínimo (matéria orgânica e nutrientes), falar disso agora é utópico. Os problemas no abastecimento como o que vivemos agora são decorrentes da presença destes contaminantes básicos (matéria orgânica e nutrientes). Creio que devemos resolver problemas básicos para então partir para uma nova demanda ambiental.
Neste ponto não estou desprezando ou minimizando o problema da presença destes contaminantes emergentes nos esgotos (isso é real), mas sim priorizando ações básicas em detrimento das mais complexas. Isso dá muita discussão dependendo da forma que colocamos.
IHU On-Line – No atual contexto brasileiro, como assegurar água de qualidade e em quantidade suficiente para consumo humano nas grandes cidades? Que ações são necessárias, tanto do ponto de vista do Estado como da sociedade em geral?
Iene Christie Figueiredo – Reforço o já dito: aplicação real e responsável das leis e das políticas públicas já existentes. O estado por um lado, a participação popular por outro, precisam se comprometer com este sério problema. Enquanto Saneamento Básico e Gestão dos Recursos Hídricos não assumirem sua importância para a vida da sociedade, estaremos mais distantes da ‘água de qualidade e em quantidade’.
IHU On-Line – Se o atual cenário não for alterado, em quanto tempo o Brasil entrará em colapso no que diz respeito à segurança hídrica?
Iene Christie Figueiredo – É difícil ser determinístico nisso. Cada região terá sua condição atual e capacidade de reversão diferentes. Mas acho que já nos encontramos em colapso, mesmo que de forma esporádica, em muitas regiões – e este pode ser o caso da RMRJ. Cada vez mais teremos relatos destes eventos no país, graças a herança de descaso com nossos recursos hídricos.
(EcoDebate, 06/02/2020) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

O SOL ESTÁ CAUSANDO O AQUECIMENTO GLOBAL? NÃO !

O Sol está causando o aquecimento global? NÃO!



Temperatura vs Atividade Solar
O gráfico acima compara as mudanças globais de temperatura da superfície (linha vermelha) e a energia do Sol recebida pela Terra (linha amarela) em watts (unidades de energia) por metro quadrado desde 1880.
As linhas mais claras / mais finas mostram os níveis anuais enquanto as mais pesadas / linhas mais grossas mostram as tendências médias de 11 anos. As médias de onze anos são usadas para reduzir o ruído natural de um ano para outro nos dados, tornando as tendências subjacentes mais óbvias.
A quantidade de energia solar recebida pela Terra seguiu o ciclo natural de 11 anos de pequenos altos e baixos do Sol, sem aumento líquido desde os anos 50. Durante o mesmo período, a temperatura global aumentou acentuadamente. Portanto, é extremamente improvável que o Sol tenha causado a tendência de aquecimento global observada nos últimos meio século.
O Sol pode influenciar o clima da Terra, mas não é responsável pela tendência de aquecimento que vimos nas últimas décadas. O Sol é um doador da vida; ajuda a manter o planeta quente o suficiente para sobrevivermos. Sabemos que mudanças sutis na órbita da Terra ao redor do Sol são responsáveis pelas idas e vindas das eras glaciais. Mas o aquecimento que vimos nas últimas décadas é rápido demais para ser associado a mudanças na órbita da Terra e grande demais para ser causado pela atividade solar.
Uma demonstração que nos diz que o Sol não está causando o aquecimento global vem da observação da quantidade de energia do Sol que atinge o topo da atmosfera. Desde 1978, os cientistas monitoram isso usando sensores em satélites e o que eles nos dizem é que não houve tendência de aumento na quantidade de energia do Sol que chega à Terra.
Uma segunda demonstração é que, se o Sol fosse responsável pelo aquecimento global, esperaríamos ver aquecimento em todas as camadas da atmosfera, desde a superfície até a atmosfera superior (estratosfera). Mas o que realmente vemos é o aquecimento na superfície e o resfriamento na estratosfera. Isso é consistente com o aquecimento causado por um acúmulo de gases que retêm o calor perto da superfície da Terra, e não pelo sol ficando “mais quente”.
*Informe da NASA Climate, com tradução e edição de Henrique Cortez, EcoDebate.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 06/02/2020

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

A INFLEXÃO DA ANTÁRTIDA : AQUECIMENTO E ACELERAÇÃO DE DEGELO.

A inflexão da Antártida: aquecimento e aceleração do degelo, artigo de José Eustáquio Diniz Alves


[EcoDebate] Os últimos 6 anos foram os mais quentes já registrados e a década 2011-20 é a mais quente da série histórica. O Planeta está com febre e não só está esquentando, com aquece a taxas crescentes. Por isso, o aquecimento global não é um problema como outro qualquer, mas sim o evento que engloba e potencializa todos os demais e obriga a humanidade a repensar suas prioridades diante da possibilidade de um armagedon ecológico. Indubitavelmente, uma catástrofe ambiental será o prenúncio de uma catástrofe social. Se as temperaturas continuarem subindo de forma acelerada o mundo pode chegar à situação denominada “Terra Estufa”, onde diversas áreas do Planeta se tornariam inóspitas e inabitáveis.
As consequências devastadoras do aquecimento global deixaram de ser uma agrura prevista para o futuro e se transformaram em “emergência climática”, presente no cotidiano das atuais gerações. O desequilíbrio já assola o Planeta de Leste a Oeste e de Norte a Sul – em graus diferenciados – e causa danos crescentes, embora esteja apenas em seu começo. Seguindo as tendências das últimas décadas, a Terra caminha para um “ponto de inflexão global” (alguns dizem que já ultrapassou o ponto de não retorno) que pode ser o início de um efeito dominó – capaz de gerar uma série de acontecimentos desagradáveis em cascata. A catástrofe climática está no horizonte e só será evitada se forem adotadas ações concretas para reduzir e zerar as emissões de gases de efeito estufa.
Uma das consequências inexoráveis do aquecimento global é o degelo dos polos, da Groenlândia e dos glaciares que tem o potencial, no longo prazo, de elevar o nível dos oceanos em mais de 70 metros. Mesmo algo como 10% de degelo já seria suficiente para os oceanos subirem 7 metros, o que seria devastador para as áreas costeiras e para as cidades litorâneas.
Estudo realizado por Gudmundsson et. al., publicado na revista Geophysical Research Letters (20/11/2019), mostra que a taxa atual de derretimento da camada de gelo antártico (AIS) está contribuindo para o aumento do nível do mar em nível crescente. O aumento da troca de calor oceano-gelo tem o potencial de induzir uma perda substancial de massa através do derretimento de suas prateleiras de gelo.
perda de massa de gelo antártico
Os autores usaram um modelo numérico de placas de gelo em combinação com observações de satélite de afinamento das plataformas de gelo entre 1994 e 2017 para quantificar alterações instantâneas no fluxo de gelo em todas as linhas de aterramento do AIS, resultantes de alterações apenas no suporte das plataformas de gelo. As previsões baseadas em processos estão de acordo com os padrões espaciais observados de perda de gelo, fornecendo suporte para a noção de que uma parcela significativa do degelo atual do AIS é causada pelo aquecimento do oceano e por uma redução no suporte da plataforma de gelo (conforme figura acima).
Artigo de Eric Post et. al. (04/12/2019) mostra que, na última década, o Ártico aqueceu 0,75º C, superando em muito a média global, enquanto as temperaturas antárticas permaneceram comparativamente estáveis. À medida que a Terra se aproxima do aquecimento de 2 ° C, o Ártico e a Antártida podem atingir um aquecimento anual de 4º C e 2º C, mas atingindo temperaturas no inverno de 7º C e 3º C acima da média, respectivamente. As consequências incluem a perda contínua de gelo terrestre e marinho, ameaças à vida selvagem, aumento das emissões de metano, clima extremo em latitudes mais baixas e elevação rápida do nível dos oceanos.
Artigo de Claire Parkinson, publicado em Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS, 24/05/2019), mostra que após mais de 3 décadas de aumentos graduais, mas desiguais, na cobertura do gelo marinho, as extensões médias anuais na Antártica atingiram um recorde em 2014, seguido por um declínio muito acentuado, especialmente a partir de 2016. Comparando com a cobertura de gelo do Ártico, que demorou 3 décadas para registrar uma perda tão grande na extensão média anual de gelo, a situação da Antártida é realmente marcante.
O gráfico abaixo, da National Snow and Ice Data Center (NSIDC) da NASA, mostra as variações mensais da extensão mensal do gelo marinho da Antártida, para os meses de novembro entre 1978 e 2019. Nota-se que a reta de tendência era positiva, especialmente até 2015, mas com a grande redução do gelo marinho ocorrida entre 2016 e 2019, a reta de tendência passou a ser negativa, pela primeira vez em 2019.
Entre 1978 e 2016 a inclinação da reta era de 0,4 + ou – 0,8% por década. Entre 1978 e 2018 a inclinação foi 0 (zero), mostrando estabilidade total. Mas entre 1978 e 2019, pela primeira vez, a inclinação da reta ficou negativa, marcando -0,1, sendo que, nos últimos 4 anos, a extensão de gelo na Antártida ficou abaixo da média histórica. Em novembro de 2019, a extensão de gelo ficou em 14,9 milhões de km2, sendo que a média de 1981-2010 foi de 15,9 milhões de km2. Portanto, a redução foi de 1 milhão de km2.
gráfico de anomalia da extensão do gelo marinho
O relatório “The Ocean and Cryosphere in a Changing Climate” do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado, no dia 25 de setembro de 2019, analisa e sintetiza as descobertas científicas mais recentes sobre a crise climática, os oceanos e a criosfera (superfície terrestre coberta permanentemente por gelo e neve). O relatório contou com a coordenação de mais de 100 especialistas de 30 países e foi estruturado para apresentar os diversos cenários sobre como o aquecimento global pode afetar os oceanos, as calotas polares e os glaciares.
Em relação ao hemisfério meridional, o IPCC mostra que o derretimento contínuo da camada de gelo da Antártica Ocidental está progredindo mais rápido do que o previsto, e o aumento resultante do nível do mar terá um impacto global. Evidências observacionais mostram que um grande setor da camada de gelo da Antártida Ocidental entrou em declínio irreversível. A causa são ventos mais fortes, possivelmente resultantes do aquecimento global, que estão alterando as correntes do Oceano Antártico e empurrando água mais quente sob as geleiras costeiras que formam o limite do manto de gelo. Desassociadas do fundo do mar, as geleiras derretem mais rapidamente, permitindo que pedaços da camada de gelo de 100.000 quilômetros quadrados caiam no mar, adicionando milhões de galões de água doce aos oceanos do mundo.
O artigo “Climate tipping points — too risky to bet against”, publicado na influente revista Nature (27/11/2019), mostra que entre os “pontos de inflexão” que estão levando a Terra a um “estado de emergência planetária”, estão os degelos dos polos e dos glaciares que vão liberar mais gases de efeito estufa e elevar o nível dos oceanos.
Os autores do artigo mostram que a estabilidade do Mar de Amundsen, na Antártida Ocidental, pode ter passado do ponto de inflexão, pois a ‘linha de aterramento’ onde o gelo, o oceano e a rocha se encontram está recuando irreversivelmente. Um estudo-modelo indica que, quando esse setor entra em colapso, pode desestabilizar o restante do manto de gelo da Antártica Ocidental. Este efeito dominó pode elevar o nível dos oceanos em até 3 metros.
Também a parte da camada de gelo da Antártica Oriental – a Bacia de Wilkes – está ficando igualmente instável. O trabalho de modelagem sugere que ela poderia adicionar outros 3 a 4 m ao nível do mar em escalas de tempo além de um século. Soma-se o fato de que a camada de gelo da Groenlândia está derretendo a uma taxa acelerada.
Isto quer dizer que as gerações futuras estão condenadas a viver com aumentos do nível do mar de cerca de 10 m ao longo dos próximos séculos. A taxa de fusão depende da magnitude do aquecimento acima do ponto de inflexão, pois quanto mais alto for a temperatura média da Terra, mais rápido será o degelo.
Os últimos 4 anos estão sendo marcados por declínios acentuados da extensão do gelo da Antártida, que, embora esteja ocorrendo mais recentemente, acontece em velocidade mais rápida do que no Ártico, como mostrou Claire Parkinson (PNAS, 24/05/2019). A Antártida perde gelo no continente e começou a perder extensão de gelo no mar. E o degelo antártico é um importante indicador das mudanças climáticas e impulsionador do aumento do nível dos oceanos.
Recentemente foi anunciado que o maior iceberg do mundo, chamado de A68, está prestes a chegar ao mar aberto. O bloco se desprendeu da Antártida em 2017, e tem a altura equivalente a um prédio de 40 andares, pesando 1 trilhão de toneladas e com área de 5,8 mil km², o equivalente ao tamanho do Distrito Federal. O A68 se aproxima do limite do Círculo Polar Antártico, de onde deve seguir para o Oceano Austral. Os dados mais recentes confirmam a gravidade da situação da Antártida. O gráfico abaixo, da NSIDC, mostra que a extensão de gelo marinho na Antártida, nos últimos 4 anos, é a menor da série histórica.
extensão do gelo marinho da Antártida
Artigo de Shepherd et. al. , E. et al., publicado na Revista Nature (24/04/2018) mostra que o balanço de massa de superfície indica uma perda de 2.720 ± 1.390 bilhões de toneladas de gelo entre 1992 e 2017, o que corresponde a um aumento no nível médio do mar de 7,6 ± 3,9 milímetros. Durante esse período, o derretimento causado pelo oceano fez com que as taxas de perda de gelo da Antártida Ocidental aumentassem de 53 ± 29 bilhões para 159 ± 26 bilhões de toneladas por ano; o colapso das prateleiras de gelo aumentou a taxa de perda de gelo da Península Antártica de 7 ± 13 bilhões para 33 ± 16 bilhões de toneladas por ano.
A figura abaixo mostra que a contribuição do degelo da Antártida para o aumento do nível dos oceanos é crescente, embora um pouco menor do que a contribuição da Groenlândia. O climatologista da Universidade de Liège, Xavier Fettweis, destacou a grande perda de gelo no dia 24 de dezembro de 2019, a maior extensão de derretimento na Antártida na era moderna.
O fato incontestável é vivemos uma emergência climática e que o degelo dos polos e dos glaciares fará o nível do mar subir vários metros, dependendo do tempo a considerar e dos níveis das emissões futuras. As gerações que ainda vão nascer vão herdar um mundo mais inóspito, podendo haver uma mobilidade social descendente em um mundo com muitas injustiças ambientais, apartheid climático e conflitos de diversas ordens. Indubitavelmente, o degelo da Antártida já começou, passou o seu ponto de inflexão e tende a se acelerar nas próximas décadas. Muitas áreas litorâneas vão ficar debaixo d’água e os danos sociais e econômicos serão de grande monta.
contribuição do degelo no nível global dos oceanos
Artigo de Justin Rowlatt, correspondente-chefe de Meio Ambiente da BBC, mostra que a geleira Thwaites do Oeste da Antártida, do tamanho da Grã-Bretanha – e conhecida como “geleira do apocalipse” – já responde por 4% do aumento do nível do mar a cada ano – um número enorme para uma única geleira – e os dados de satélite mostram que está derretendo cada vez mais rapidamente. Ela tem água acumulada suficiente para elevar o nível do mar em mais de meio metro. Mas o pior é que ela fica como uma pedra angular no centro da camada de gelo da Antártica Ocidental – uma vasta bacia de gelo que contém água suficiente para elevar o nível do mar em mais de 3 metros.
redução do gelo na Antártida ocidental
No seu ponto mais profundo, a base da geleira fica a mais de um quilômetro abaixo do nível do mar e há outro quilômetro de gelo em cima disso. A razão pela qual os cientistas estão tão preocupados com a geleira Thwaites é por causa da água quente e profunda do oceano que está fluindo para a costa e para a frente de gelo, derretendo a geleira.
geleira na Antártida
No dia 06 de fevereiro de 2020 a Antártida bateu o recorde de temperatura, registrando 18,3º C, marca superior ao recorde anterior que era de 17,5ºC, estabelecido em 2015. A Organização Meteorológica Mundial confirma que a temperatura de 18,3° é a maior já registrada, o que acende um alerta para a situação do continente meridional.
O jornalista David Wallace-Wells tem escrito sobre a possibilidade de uma catástrofe ambiental. Seu livro “The uninhabitable Earth: life after warming” (2019), começa com a frase: “É pior, muito pior do que você pensa”. Ele mostra que o aquecimento global vai ser abrangente, terá um impacto muito rápido e vai durar muito tempo. Isso quer dizer que os efeitos danosos das mudanças climáticas vão se agravar com o tempo e, embora todas as gerações já estejam sendo atingidas, são as crianças e jovens que nasceram e vão nascer no século XXI que vão sentir as maiores consequências do colapso ambiental. A degradação ambiental vai ocorrer em várias áreas, com a acidificação dos solos, águas e oceanos, a precarização dos ecossistemas e os desastres climáticos extremos (secas, chuvas, furacões e inundações de grandes proporções), tornando muitos lugares da Terra bastante inóspitos ou inabitáveis (Alves, 2020)
O tempo é curto e a humanidade já está passando do ponto para evitar os piores cenários. Em dezembro de 2020 vai ocorrer a COP26, em Glasgow. Talvez seja a última oportunidade para se adotar as medidas necessárias para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e para evitar um grande colapso ambiental. Mas antes disto vai haver uma grande mobilização global, nos dias 22 a 24 de abril de 2020, por ocasião do Dia da Terra. Só com a juventude na rua pressionando, a governança global será obrigada a começar a agir.
José Eustáquio Diniz Alves
Colunista do EcoDebate.
Doutor em demografia, link do CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. A dinâmica demográfica global em uma “Terra inabitável”. RELAP, Vol. 14 – Número 26, Janeiro de 2020 https://revistarelap.org/index.php/relap/article/view/239/350
IPCC. The Ocean and Cryosphere in a Changing Climate. This Summary for Policymakers was formally approved at the Second Joint Session of Working Groups I and II of the IPCC and accepted by the 51th Session of the IPCC, Principality of Monaco, 24th September 2019
G. Hilmar Gudmundsson et. al. Instantaneous Antarctic ice-sheet mass loss driven by thinning ice shelves, Geophysical Research Letters, 20/11/2019
Eric Post et. al. The polar regions in a 2°C warmer world, Science Advances, Vol. 5, no. 12, eaaw9883, 04 Dec 2019 https://advances.sciencemag.org/content/5/12/eaaw9883
Shepherd, A., Ivins, E., Rignot, E. et al. Mass balance of the Antarctic Ice Sheet from 1992 to 2017. Nature 558, 219–222 (2018) doi:10.1038/s41586-018-0179-y, 24 April 2018
Claire L. Parkinson. A 40-y record reveals gradual Antarctic sea ice increases followed by decreases at rates far exceeding the rates seen in the Arctic, PNAS, 24/05/2019
Bethan Davies. An introduction to Glacier Mass Balance, 07/11/2018
Climainfo. O que precisa ser feito em cada setor para limitar o aquecimento global em 1,5°C? 21/10/2018 http://climainfo.org.br/2018/10/21/como-limitar-aquecimento-em-15oc/
Justin Rowlatt. Antarctica melting: Journey to the ‘doomsday glacier’, BBC, 28/01/2020
O colapso do gelo na Antártida, Climate State https://vimeo.com/climatestate
National Snow and Ice Data Center (NSIDC) https://nsidc.org/data/seaice_index/

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/02/2020