Mundo islâmico
Alauítas: a minoria síria que mata por temer ser aniquilada
Entenda as origens da etnia do ditador Bashar Assad, suas divergências com a maioria sunita e o apoio aparentemente cego dos parceiros Irã, Rússia e China
Cecília Araújo
Enterro de massa das vítimas do massacre das forças sírias em Hula (Reuters/VEJA)
Com armas pesadas, tanques e helicópteros, as forças do ditador Bashar Assad mataram mais de 200 pessoas em Treimsa, na província de Hama, na última quinta-feira. No dia seguinte, o emissário internacional Kofi Annan condenou as "atrocidades", dizendo-se "horrorizado" e "consternado" com o número de mortos. Para o Conselho Nacional Sírio (CNS), a principal coalizão opositora, o massacre é "o mais infame dos genocídios cometidos pelo regime sírio". Desde março, os opositores do regime protestam para derrubar Assad, e os conflitos no país já deixaram, de acordo com a ONU, cerca de 10.000 mortos - ativistas falam em mais de 17 mil. Um dos principais motivos para a dificuldade de se chegar a um acordo com o governo é a origem religiosa dessa guerra civil: a minoria alauíta - da qual Assad faz parte - teme ser arrancada do poder pela maioria sunita, que promete buscar uma revanche igualmente sangrenta.
Na década de 1920, a França estabeleceu a Síria como seu protetorado - uma espécie de colônia moderna. Na tentativa de enfraquecer a unidade árabe no Oriente Médio, tentou instaurar microestados na região, que seriam autogovernados por diferentes grupos étnicos, inclusive as minorias alauíta, cristã e drusa. A preocupação da França era a de evitar o fortalecimento da maioria sunita em um país tão diverso em termos étnicos e religiosos. Ainda assim, as minorias se mantiveram relativamente sufocadas politicamente até a década de 1960, quando dois golpes de estado finalmente colocaram os alauítas no poder. Sob o império Otomano, os únicos alauítas tolerados nas cidades eram os empregados domésticos. Até o início do século, a maioria deles não passava de montanheses que serviam à burguesia sunita. Só nos anos 1950 muitos passaram a integrar academias militares e na década de 1970 aderiram à ideologia pan-arabista e laica do partido Baath - atualmente no poder.
As crenças dos alauítas
A doutrina alauíta - uma variante heterodoxa e esotérica do xiismo - foi elaborada no Iraque no século IX por Mohammad ben Nusseir, discípulo do 10º imã Ali Hadi, que entrou em dissidência. Assim como os xiitas, que veneram Ali, primo e genro do profeta Maomé, os alauítas o idolatram. Para eles, Maomé não é mais que um véu que esconde "a essência" encarnada por Ali. O terceiro personagem desta trindade é Salman Pak, um companheiro de Maomé considerado a "porta" do conhecimento. Seus seguidores acreditam na reencarnação, em geral carecem de mesquitas, ignoram o jejum e a peregrinação a Meca, toleram o álcool e suas mulheres não utilizam véu. Celebram as festas muçulmanas e também as cristãs. A minoria é tida por herética e mesmo como não-muçulmana por diversas correntes sunitas.
Em 1971, o alauíta Hafez Assad - pai do atual governante, Bashar Assad - se tornou presidente, permanecendo como tal por longos 30 anos. Desde então, os alauítas, que representam apenas 12% dos 22 milhões de sírios, passaram a privilegiar outras minorias, fortalecendo sua relação com os cristãos ortodoxos (10% da população) e os drusos (3%) e ofuscando a importância dos sunitas, majoritários (74%) - o que despertou a ira desses. Com o passar do tempo, as minorias se tornaram mais ricas, ganharam um papel de relevância nas forças armadas e ocuparam postos importantes no estado. Aos poucos, foi sedimentada uma imensa rede de favorecimentos, que funcionou ao longo das últimas décadas apesar da insatisfação da maioria. Até que esse sistema se transformou em uma verdadeira ditadura, levando os sunitas ao limite da tolerância.
Temendo uma revolta sunita, os Assad se armaram com um sistema "antigolpe de estado", com ênfase no Exército e nos serviços secretos. Foi criado um aparato de segurança para controlar a população, o Mukhabarat (Agência de Inteligência, em árabe). No país, há diferentes agências de inteligência que vigiam umas às outras, o que impede a formação de um golpe de estado. Além disso, os serviços secretos estão sempre de olho em forças de oposição, ainda que incipientes. Recentemente - com a repressão sangrenta do regime alauíta contra os opositores -, a luta se tornou identitária: cada um por sua própria preservação e existência.
Disputa entre sunitas em alauítas no Líbano
Medo - Prestes a serem arrancados do poder, os alauítas temem o aniquilamento de sua comunidade - medo compartilhado por cristãos e drusos, que ainda apoiam o regime. “O que está em jogo para os grupos minoritários é sua própria identidade. A sensação é de que sua existência está em risco. Isso faz com que o enfrentamento com os sunitas seja tão duro”, diz Danny Zahreddine, coordenador do curso de Relações Internacionais da PUC Minas. “Implantar um processo de transição poderia criar salvaguardas para os alauítas, mas eles têm medo de deixar o poder.” Ao mesmo tempo, os sunitas estão vendo dezenas de milhares dos seus morrerem com a violência do regime. “É uma questão existencial para ambos os lados”, diz o acadêmico. Esse medo extrapolou a fronteira da Síria e tem provocado disputas étnicas entre sunitas e alauítas também em Trípoli, a segunda maior cidade do Líbano.
Enquanto a economia síria é dominada por grupos privilegiados e ligações políticas, o país não tem capacidade de criar empregos para uma população jovem e empobrecida. Qualquer tentativa de repartição de poderes implicaria o fim da hegemonia alauíta. Para se salvar, as unidades militares de elite compostas ou controladas pelos alauítas lutam para não acabar como os harkis, soldados que durante a guerra da Argélia lutaram com o Exército francês e foram massacrados após a independência e obrigados a se exilar na França. O desafio ao poder dos Assad também é comparado às revoltas lideradas pela Irmandade Muçulmana entre 1979 e 1982, que culminaram no massacre de milhares de opositores na cidade de Hama. Especialistas acreditam que, no caso da queda de Assad do poder, os alauítas tentariam recuar para a região costeira e criar um enclave independente.
Enquanto a economia síria é dominada por grupos privilegiados e ligações políticas, o país não tem capacidade de criar empregos para uma população jovem e empobrecida. Qualquer tentativa de repartição de poderes implicaria o fim da hegemonia alauíta. Para se salvar, as unidades militares de elite compostas ou controladas pelos alauítas lutam para não acabar como os harkis, soldados que durante a guerra da Argélia lutaram com o Exército francês e foram massacrados após a independência e obrigados a se exilar na França. O desafio ao poder dos Assad também é comparado às revoltas lideradas pela Irmandade Muçulmana entre 1979 e 1982, que culminaram no massacre de milhares de opositores na cidade de Hama. Especialistas acreditam que, no caso da queda de Assad do poder, os alauítas tentariam recuar para a região costeira e criar um enclave independente.
Oportunismo - Para se manter no poder, Assad se apoia em alianças internacionais: as potências orientais se negam a condenar o regime apesar da crescente pressão internacional. Do ponto de vista político, para a Rússia e a China, a Síria é como o último bastião de resistência à influência dos Estados Unidos no Oriente Médio. Por priorizar o comércio com as potências orientais em detrimento das ocidentais, o governo sírio se tornou um contraponto estratégico na região. “Há certo grau de oportunismo político por parte das elites políticas dentro da própria Síria e das potências orientais que apoiam o país. Se a briga fosse apenas em torno das etnias e religiões, provavelmente a Rússia e a China não iriam vetar as punições aprovadas por outros países da comunidade internacional. Para eles, a disputa é política: entre ocidentais e orientais”, explica Zahreddine. Enquanto isso, aqueles que aprovam uma intervenção ocidental têm motivações que não são apenas humanitárias, mas estratégicas - como enfraquecer o Irã na região.
Apesar de disputar com a Síria o posto de grande liderança antiamericana e anti-israelense no Oriente Médio, o Irã teme que a Turquia participe de uma campanha encabeçada pelos EUA, juntamente com a Arábia Saudita, o Catar e outros países, para derrubar Assad e isolar ainda mais os iranianos na região. O fim do regime de Assad abriria espaço para a ação liderada pelos Estados Unidos com o objetivo de diminuir consideravelmente a influência geopolítica do Irã. O atual governo de Damasco parece a única esperança para os aiatolás manterem essa influência. Além dos iranianos, o Hezbollah libanês também é um aliado local da Síria. O grupo recebeu apoio durante sua criação e agora - já praticamente independente - serve como apoio terrorista. Uma eventual desagregação política na Síria alteraria a força relativa dos aliados libaneses de Damasco, xiitas do Hezbollah e drusos, afetando ainda a sorte dos islamitas sunitas do Hamas em Gaza.
Kofi Annan e Ban Ki-moon já alertaram o governo sobre sua responsabilidade diante de uma "provável" guerra civil - para muitos, ela já está acontecendo. A pressão é crescente e, até agora, o governo de Assad apenas tentou realizar pequenas reformas que de nada adiantaram. O regime nunca deu um passo para resolver a principal questão síria: a distribuição de poder. O controle repressor da minoria, que abafa as demais facções políticas e étnicas, é insustentável. Enquanto uma solução política parece impossível, a União Europeia e os Estados Unidos se encontram diante do dilema de negociar com uma Síria cada vez mais orientada pela aliança com o Irã.
Fonte : Revista Veja
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