sábado, 22 de agosto de 2015

ÁGUA : PLANETA EM CRISE. IV

Edição do dia 20/08/2015
21/08/2015 01h06 - Atualizado em 21/08/2015 01h36

Água que bebemos todo dia é a mesma de milhões de anos atrás

Austrália, Cingapura e Estados Unidos são exemplos de países que 
usam a água com eficiência e de forma eficaz para as próximas gerações.

Reportagem de Tonico FerreiraEm parceria com Globo Natureza
A água que bebemos hoje é a mesma de milhões de anos atrás. Ela foi se reciclando, voltou para a natureza para ser reusada.
Na quarta reportagem de Tonico Ferreira na série "Água - Planeta em Crise", conheça a tecnologia desenvolvida pelos países para reutilizar a água e vai ver que o Brasil tem pesquisas e soluções para o reúso, mas pouco aproveita. A série é uma parceria do Jornal da Globo com o Globo Natureza.
Abrir a torneira e sair água limpa é tão natural que não nos damos conta do caminho que a água percorre para entrar na nossa casa e depois sair, em geral, na forma de esgoto.
É preciso uma crise de abastecimento para se ter ideia da complexidade da estrutura envolvida: represas, adutoras, bombas, canais e redes de distribuição. O professor David Sedlak, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, em seu livro clássico sobre o recurso mais valioso do mundo, diz que para chegar onde está hoje, o sistema de distribuição de água passou por uma série de revoluções nos últimos 2,5 mil anos.
Os romanos fizeram a primeira revolução: construir aquedutos e importar água de longe para abastecer suas cidades. A segunda, no século 19, foi tratar a água porque ela havia se tornado uma fonte de doenças, contaminada pelo esgoto da própria cidade, e a terceira revolução, em meados do século passado, tratou esse esgoto antes dele ser jogado no meio ambiente.
No Brasil, essa revolução ainda não se completou porque aqui a maior parte do esgoto, 61%, vai direto para os rios, lagos e mar. A quarta revolução é a atual e vem da escassez crescente: usar água com eficiência.
O reúso é um exemplo: a água entra na cidade, vira esgoto, que é tratado para se transformar em água potável pronta para ser reusada. A ideia é reciclar, manter dentro da cidade o máximo de água que chega até ela.
Nesta quarta fase, Sedlak diz que é preciso investir em novas tecnologias, mesmo em países em desenvolvimento, como o Brasil. “Os danos econômicos associados à falta d'água são muito maiores do que os investimentos para se ter um suprimento seguro de água”, ele explica.
É o que fez o Condado de Orange, no litoral da Califórnia. Quando a água salgada do mar começou a invadir o aquífero, a água subterrânea, que abastece a cidade, a solução tecnológica foi bombear água doce para dentro dele, aumentar a pressão e criar uma espécie de barreira protetora contra a água salgada.
E como Orange não tem fonte natural de água, construiu o maior sistema de purificação de água do mundo. “Nós podemos produzir essa água mais barata que a água importada. Nós podemos produzir pela metade do custo da água dessalinizada”, diz Sedlak.
DO ESGOTO À ÁGUA PURA
Em uma ponta entra o esgoto da cidade, que passa por microfiltros com orifícios minúsculos. Um fio de cabelo é 300 vezes mais largo. Partículas, bactérias e até vírus ficam para trás. Em seguida, em um processo chamado de osmose reversa, a água é pressionada para atravessar uma membrana que só deixa passar as moléculas de água. O último estágio é um banho de raios ultravioleta e o que sai na ponta final é água pura.
Na busca da autossuficiência no suprimento de água, Cingapura decidiu que tinha que investir em ciência. No desenvolvimento de tecnologias avançadas. O Instituto Newri, criado há apenas oito anos, já é uma referência mundial na pesquisa de água e meio ambiente.
Um dos objetivos dos cientistas é fabricar membranas sintéticas que purifiquem água com gasto mínimo de energia. “É tentar imitar o rim humano no processo de filtragem do sangue”, diz o professor Chong Tzyy Hour.
A professora Zhou Yan pesquisa o processo de converter bactérias em gás metano para produzir energia elétrica para purificar a água. O diretor e fundador do instituto, professor Wun Jern, diz que o Newri segue a doutrina das universidades de Cingapura, que é trabalhar sem preconceitos com as empresas privadas para transformar pesquisa em desenvolvimento.
HÁ PESQUISAS NO BRASIL
O Brasil tem pesquisa com membrana faz tempo. O laboratório da Universidade Federal do Rio de Janeiro tem condições de oferecer um projeto nacional de fabricação de membranas tanto para tratamento de esgoto como para dessalinizar água do mar. Mas alguém pediu ajuda ao laboratório neste momento de crise?
“Se fomos procurados por governantes para discutir a crise hídrica e usar a tecnologia que já está desenvolvida no país? Não. Nós não fomos procurados por esses governantes”, diz Cristiano Borges, do Coppe.
Em uma estação de produção de água de reuso a partir de esgoto doméstico que fica em São Paulo, tudo é bem moderno, a prova de que é possível fazer aqui o mesmo processo que existe em países mais avançados. Não há impedimento tecnológico. Se quiser fazer, dá para fazer.
A produção é suficiente para atender uma cidade de 300 mil habitantes. A água é potável, mas por enquanto, só tem uso industrial. É levada por uma adutora com 17 km de comprimento para o polo petroquímico do ABC, onde é usada em torres de resfriamento e caldeiras. Os clientes estão satisfeitos.
O governo de São Paulo anunciou um projeto para aumentar a produção de água de reúso na Grande São Paulo, mas vai demorar dois anos e meio. Por enquanto, esta é a única grande usina de reuso no Brasil. Faltou interesse em fazer mais.
COMO FUNCIONA NA AUSTRÁLIA
Sidnei, na Austrália, com ¼ da população de São Paulo, tem 13 estações de reciclagem de água para uso industrial, recuperação de rios e também uso residencial. A estação de Rouse Hill alimenta o rio da região com água limpa e fornece água reciclada para quase 20 mil residências.
As casas têm duas entradas de água, uma para potável, que vem dos reservatórios da cidade, e outra para água reciclada. O sistema exige que todas as casas tenham uma rede de canos dupla. A água reciclada serve para regar jardim, lavar roupa e nas descargas dos vasos sanitários. A gerente de produção diz que os consumidores podem usar o quanto quiserem, sem limites.
A água que bebemos hoje de manhã pode ter sido usada uma semana, um mês ou um século atrás. Pode ter sido bebida por um construtor das pirâmides ou por um dinossauro há 65 milhões de anos.
A verdade é que toda água é água reusada. A que vai para o ralo da pia pode estar indo para uma fonte de água de uma outra comunidade. Todos nós vivemos rio abaixo de alguém e, em um mundo onde a demanda por água potável cresce, a reciclagem é a chave para um abastecimento sustentável.
Fonte : Jornal da Globo

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