Surto de Febre Amarela está diretamente ligado à perda de biodiversidade
Surto de Febre Amarela está diretamente ligado à perda de biodiversidade. Entrevista especial com Marcia Chame
IHU
Até bem pouco tempo atrás, falar em Dengue no Brasil parecia algo distante porque o país parecia já ter encontrado forma de combater a doença. Entretanto, não só ressurge a Dengue como também somos apresentados à Zika e à Chikungunya. Mais recentemente, quem parece voltar com força é a Febre Amarela. A bióloga da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, Marcia Chame, explica que o reaparecimento dessas doenças vetoriais, guardadas particularidades de cada uma, tem algo em comum. “É importante entender que nossos movimentos humanos acabam trazendo espécies que se adaptam muito bem a outros ambientes”, explica.
O problema é que, segundo a pesquisadora, por mais que se combata essas doenças e seus vetores, é natural que os vírus e os agentes transmissores encontrem formas de vencer. “Antes de mais nada, temos que saber que, no mundo, vivemos num ambiente no qual não estamos sozinhos. Assim, os agentes infecciosos, os vetores e todos os hospedeiros também estão lutando pela sobrevivência”, destaca. Mas qual a saída? Para Marcia, o caminho é seguir sempre acompanhando esses movimentos no ambiente natural e, principalmente, preservar a biodiversidade. “Estamos espremendo os ambientes silvestres com nossas atividades. Cada vez mais a espécie humana entra em contato com a circulação de agentes infecciosos que deveriam estar na mata”, pontua.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, a professora analisa os casos recentes de Febre Amarela e a partir desse exemplo destaca a importância de se aliar controle sanitário e preservação ambiental para manter essas doenças vetoriais sob controle. Ela explica que, assim como há espécies que inoculam e transmitem ou fazem esses vírus circular, há outras que não tem esse potencial. Assim, preservando áreas com essa biodiversidade, se reduz os riscos de surtos. “É o efeito de diluição que a biodiversidade exerce sobre a transmissão de doenças. Quando existe a perda dessa biodiversidade, normalmente as espécies que conseguem se adaptar a ambientes degradados obviamente são boas transmissoras de agentes infecciosos porque essa é uma estratégia do vírus e do parasita”.
Marcia Chame | Foto: arquivo pessoal
Marcia Chame possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula – USU, no Rio de Janeiro, mestrado e doutorado em Ciências Biológicas, área zoologia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente é pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz e também atua como pesquisadora colaboradora da Fundação Museu do Homem Americano. É, ainda, membro titular representante do Ministério da Saúde no Conselho Nacional da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, e coordenadora do Programa Biodiversidade & Saúde da Fiocruz.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como compreender o frequente surgimento e ressurgimento de doenças vetoriais no Brasil, como no caso da Dengue, Febre Amarela, entre outras que já pareciam controladas?
Marcia Chame – A primeira coisa que precisamos entender é que são coisas distintas, mas que, no fundo, tem uma origem semelhante. A Dengue, a Zika e a Chikungunya são doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, que foi introduzido no Brasil e esse processo de circulação de pessoas acaba trazendo o vírus que se adapta e que é transmitido muito facilmente por um vetor que também foi introduzido no Brasil. O Aedes já havia sido introduzido no Brasil anteriormente e foi controlado, como no período em que o Aedes aegypti transmitia Febre Amarela nos grandes centros. Isso foi no fim do século XIX e início do século XX, foi totalmente controlado e não tivemos mais nenhum caso de Febre Amarela urbana transmitida por esse vetor desde a década de 1940.
É importante entender que nossos movimentos humanos acabam trazendo espécies que se adaptam muito bem a outros ambientes. Foi o que aconteceu com o Aedes aegypti, que encontrou nos nossos grandes centros urbanos um excelente lugar para se estabelecer com alta capacidade de transmitir diversos vírus. E é isso que a gente vê que vem acontecendo.
Febre Amarela
A Febre Amarela também decorre de um vírus que foi introduzido na época da colonização do Brasil e que conseguiu se adaptar muito bem às condições brasileiras, tanto que ele circula até hoje. É uma infecção que entrou no ciclo silvestre, ou seja, o vírus se adaptou muito bem aos nossos macacos e um grupo de espécie de mosquitos [os vetores desse vírus são algumas espécies do mosquito Haemagogus]. Esse vírus, então, se estabeleceu na área silvestre e nós controlamos a circulação na área urbana. O que nós vemos hoje são surtos da Febre Amarela Silvestre ocorrendo em algumas áreas urbanas do Brasil. O que não é novo também.
É importante entender que nossos movimentos humanos acabam trazendo espécies que se adaptam muito bem a outros ambientes
A Febre Amarela está estabelecida na região amazônica, do centro-oeste, e se acompanham surtos ao longo desse período. Em 1999 tivemos surtos, em 2009 tivemos surtos importantes no Rio Grande do Sul, em 2003 tivemos um surto nessa região de Minas Gerais em que está acontecendo agora. A questão é que, como não é uma doença que acontece sempre, e se tem os ciclos de estudos que são feitos desde 1999, se observa o surgimento a cada sete anos, mas em locais diferentes. Isso tudo faz com que as pessoas esqueçam e achem que é uma coisa nova. Mas, na verdade, o Brasil tem uma longa experiência com Febre Amarela.
IHU On-Line – Como essas doenças ressurgem nos seus ciclos, tem-se a impressão de que ressurgem por algo que não foi bem resolvido. Desde a perspectiva sanitária, como avalia as ações do Brasil nesse controle e prevenção de doenças vetoriais?
Marcia Chame – Antes de mais nada, temos que saber que, no mundo, vivemos num ambiente no qual não estamos sozinhos. Assim, os agentes infecciosos, os vetores e todos os hospedeiros também estão lutando pela sobrevivência, também sofrem um processo de adaptação às mudanças que nós provocamos. Isso é importante, pois, às vezes, questionamos: ‘não vamos resolver todos os problemas de doenças mundo?’. Não vamos, porque do mesmo jeito que a gente se adapta e buscamos soluções, as outras espécies também.
Agora, muitas vezes, nós criamos esses problemas, como esse estamos vivendo agora. Nós não conseguimos controlar o Aedes aegypti nos nossos centros urbanos porque nós criamos ambientes de proliferação desses mosquitos suficientemente bons para que se mantenham aí muito bem. E eles vão se adaptando cada vez mais e preferindo sangue humano, inclusive.
Degradação ambientes silvestres
Estamos espremendo os ambientes silvestres com nossas atividades. Cada vez mais a espécie humana entra em contato com a circulação de agentes infecciosos que deveriam estar na mata. Febre Amarela circula entre mosquitos e macacos no dossel [topo, emaranhado de galhos no alto das árvores] das árvores e é lá onde ela deveria ficar e ser mantida. Mas, todos nossos processos de degradação das matas, perdas de biodiversidade, de espécies de primatas faz também com que outros mosquitos participem desse ciclo, assim como outros primatas. Isso tudo faz com que esse ciclo saia do dossel e se estabeleça na borda das matas, onde as pessoas estão cada vez mais indo fazer suas atividades naquele processo de transição de áreas de florestadas, rurais e urbanas. E, com isso, nós entramos num ciclo silvestre. Somos hospedeiros acidentais de um ciclo que não é nosso.
IHU On-Line – E como avalia as respostas, as políticas sanitárias dos governos?
Marcia Chame – A saúde no Brasil é tripartite, temos as ações do governo federal, do governo do estado e dos municípios. A ponta de todos esse processo é o município, que é quem tem de desencadear, manter a vigilância dessas arboviroses [doenças transmitidas por insetos] e de outras doenças e notificar isso ao estado e ao governo federal para que as ações aconteçam. Já temos protocolos bem estabelecidos disponíveis on-line para o monitoramento de epizootias [conceito utilizado em veterinária e ecologia das populações para qualificar uma enfermidade contagiosa que ataca um número inusitado de animais ao mesmo tempo e na mesma região e que se propaga com rapidez], no caso a Febre Amarela, com todas as informações de como fazer o monitoramento dos primatas, como se coleta materiais, como se faz os diagnósticos.
Só não podemos deixar que isso caia no esquecimento a cada sete anos
Só não podemos deixar que isso caia no esquecimento a cada sete anos. Principalmente nas áreas que chamamos de áreas de silêncio, quando não tem nada acontecendo em determinado local e assim achamos que a doença não está lá. Na verdade, o vírus pode estar circulando sim, mas a gente não percebe as epizootias até perceber onde os macacos começam a morrer. Isso que chama atenção, até porque, muitas vezes, os macacos morrem e a gente não presta atenção. Por isso é muito importante que seja notificada a morte de macacos porque elas sempre ocorrem antes dos casos humanos. Eles são os nossos melhores sentinelas e todo mundo tem de estar atento e capacitado para lidar com isso, lembrando que sempre sai do município para o estado e do estado para a União.
IHU On-Line – Gostaria que a senhora detalhasse esse protocolo.
Marcia Chame – Vamos imaginar que moro numa área de fazenda ou sou guia de ecoturismo e me deparei com macacos mortos ou doentes, pois nem sempre o bicho já está morto. O que fazer? Primeira coisa: não coloque a mão nesse animal. Sabemos que a Febre Amarela não é transmitida pelo macaco, é transmitida somente pelo vetor, só pelo mosquito, mas outras doenças podem ser transmitias. A raiva, por exemplo, é uma delas.
A segunda coisa a fazer é avisar a Vigilância Sanitária de seu município, porque é ela quem tem de fazer a primeira ação. Nós, na Fiocruz, desenvolvemos um sistema de informação e saúde silvestre justamente com esse objetivo. É um aplicativo no celular que as pessoas podem baixar. Assim, encontrando uma situação como essa, pode entrar no aplicativo, tira uma fotografia, responde as questões que são feitas – perguntamos o que estão vendo, quanto macacos são, ou qualquer outro animais, porque o sistema foi feito para outras situações, se tem hemorragia ou não, se é macho ou fêmea, etc – e o celular vai dando a captura do georreferenciamento automático por satélite mesmo sem telefonia ou rede de dados, pois assim se garante que todos os dados fiquem ali. Quando a pessoa volta para cidade ou para um lugar que tenha rede disponível, é possível disparar as informações e a gente recebe em tempo real a informação de que foi encontrado um macaco morto ou doente.
Com isso, nós podemos repassar e mesmo reforçar essa informação aos municípios destacando que recebemos um alerta da sua região, dando a informação sobre a localização, o caso, a pessoa que encontrou. Assim, a gente pode auxiliar nesse processo de comunicação entre quem viu o animal e a vigilância. O aplicativo está disponível a qualquer um para baixar, se chama Siss-geo.
IHU On-Line – Há relação entre o desastre em Mariana com o ressurgimento de focos de Febre Amarela em Minas Gerais?
Marcia Chame – Ainda não temos informação suficiente para fazer essa correlação, e sabemos que há surtos em outros lugares do Brasil como São Paulo, Distrito Federal, Goiás, fora da área do desastre de Mariana. É importante sabermos que o que vem acontecendo se dá em áreas que são degradadas e sobre impactos ambientais. O caso de Mariana é um enorme impacto ambiental que precisa ser estudado, mas ainda não temos dados em mãos para fazer essa correlação.
IHU On-Line – Ou seja, o que se sabe que esses ressurgimentos se dão em áreas ou próximo a áreas degradadas.
Marcia Chame – É, quando os surtos estão ocorrendo nessas áreas fora da Amazônia, percebemos que vem acontecendo nas áreas onde os fragmentos de mata são muito pequenos. Isso é o que viemos observando. Não vemos isso ocorrer, tanto nas vezes anteriores como agora, nas grandes áreas de mata.
São muitas hipóteses que podemos pensar. Por exemplo: nessas áreas pequenas pode ocorrer uma densidade muito grande de macacos, o que favorece a transmissão pelos mosquitos. Essas é uma possibilidade bastante interessante. Outro exemplo: se passou por um período de seca importante e começa o período de chuvas, o que favorece o aparecimento de mosquitos naquela área. Sem dúvida nenhuma essa é outra questão importante. O aumento na temperatura é importante também, nós tivemos 2016 como o ano mais quente do mundo. Sabemos que uma alta temperatura favorece a transmissão e a incubação do vírus nos mosquitos e favorece também a infecção.
Observe como muitos fatores que estão correlacionados. E mais: nessas áreas de silêncio, tínhamos uma baixa cobertura vacinal das pessoas, o que favorece o transbordamento do surto em primatas para as pessoas. A população está cada vez mais dentro da mata e não pensa no que isso pode acarretar. Na verdade, é a situação de uma avaliação complexa.
IHU On-Line – No que esse episódio de reaparecimento de Febre Amarela, agora em 2016/2017, no Sudeste, tem de similaridade com o episódio ocorrido no Rio Grande do Sul em 2009?
Marcia Chame – É bastante similar. Temos um processo acontecendo ao longo de alguns trechos e com surtos com padrão bastante similar. Ocorre em macacos primeiro e depois em pessoas. E as áreas são sempre de fragmentos pequenos de mata.
IHU On-Line – Em que medida a degradação de ambientes naturais pode provocar maior incidência e até surgimento de doenças vetoriais?
Marcia Chame – Isso vem sendo estudado nos últimos tempos com dados bem interessantes, inclusive fora do Brasil e com outras doenças, mas doenças especificamente transmitidas por vetores. O que se observa é que, quando se tem ambientes com ecossistemas íntegros, ou seja, ambientes com alta biodiversidade, dentro desses ambientes existem espécies que são amplificadoras, boas incubadoras ou boas transmissoras de agentes infecciosos e existem outras espécies que não fazem isso de uma maneira competente.
Quando existe a perda dessa biodiversidade, normalmente as espécies que conseguem se adaptar a ambientes degradados obviamente são boas transmissoras de agentes infecciosos
Se temos esses conjuntos de espécies, os mosquitos e outros atropados, quando vão se alimentar do sangue e usa o de uma espécie que é incompetente pode até inocular esse vírus, mas não vai adiante. Isso dilui a capacidade de transmissão, é o efeito de diluição que a biodiversidade exerce sobre a transmissão de doenças. Quando existe a perda dessa biodiversidade, normalmente as espécies que conseguem se adaptar a ambientes degradados obviamente são boas transmissoras de agentes infecciosos porque essa é uma estratégia do vírus e do parasita. Ele também faz a busca para sobrevivência e, para ele, se adaptar numa espécie que tem alta capacidade de viver num ambiente degradado é o seu maior sucesso de sobrevivência.
Essa correlação é muito importante num país como o nosso. É importante que a sociedade perceba que as unidades de conservação, as reservas legais, as áreas de proteção ambiental são importantes também para a saúde e não só para nos fornecerem água e solo férteis e todas as coisas e serviços ambientais que comentamos. Esse fator de diluição é um serviço da natureza para a saúde humana.
IHU On-Line – Então, um caminho para controle das doenças vetoriais passa pela preservação ou recuperação de ambientes naturais? E como isso se dá hoje no Brasil?
Marcia Chame – Sempre discutimos como juntar essas duas coisas, controle de doenças e preservação. Isso tem ficado cada vez mais claro para todo mundo. Em 2014, por exemplo, pela primeira vez, a Organização Mundial da Saúde junto com a Convenção da Biodiversidade Brasileira elabora um documento que revela a grande contribuição do país relacionando essa ideia de que a biodiversidade está ligada a qualidade de vida de pessoas no mundo todo.
Temos que fazer com que todos os governos entendam muito claramente que a conservação da biodiversidade não impede o desenvolvimento
Hoje, temos que fazer com que todos os governos entendam muito claramente que a conservação da biodiversidade não impede o desenvolvimento do país. O Brasil tem uma enorme oportunidade de mostrar para o mundo como se desenvolver utilizando a sua biodiversidade, garantindo ambientes saudáveis. Uma coisa não impede a outra, talvez a gente tenha que mudar algumas formas de lidar com esse uso da biodiversidade e o uso da terra. Não podemos nos atrelar aquilo que dava certo no século passado porque precisamos visar o futuro, e isso é uma responsabilidade do governo e da sociedade. Qual é o futuro que deixamos para as novas gerações?
E esse futuro pode ser de muita riqueza porque a biodiversidade brasileira pode trazer muita riqueza para o povo brasileiro. Imagine que todos esses patógenos [qualquer organismo tal como um vírus, um fungo ou uma bactéria que causa uma doença em um outro organismo] podem nos trazer doenças, mas a partir deles podemos desenvolver vacinas, diagnósticos, novos tratamentos e isso é uso da biodiversidade com patente brasileira para o desenvolvimento que pode gerar receita para o país e benefícios para as comunidades pelo uso desse conhecimento tradicional que sabemos todos as nossas populações de povos tradicionais tem conhecimento de como usar essa biodiversidade.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Marcia Chame – Sobre a política sanitária há algo que se precisa reforçar. O governo tem enorme papel, é responsável pelas políticas sanitárias do Brasil, e a sociedade tem que cobrar essas políticas, mas tem também que participar disso. Essa ação só vai dar certo se for uma ação conjunta, de responsabilidade mútua.
IHU On-Line – E o maior exemplo disso é o monitoramento dos macacos, nesse caso da Febre Amarela. Correto?
Marcia Chame – Exatamente. Não temos, num país das dimensões continentais como o Brasil, gente da saúde em todos os lugares, andando o tempo todo. As pessoas que estão nessas áreas é que podem auxiliar no monitoramento. É algo muito, mas muito importante.
(EcoDebate, 13/02/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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