terça-feira, 13 de junho de 2017

UMA AVALIAÇÃO DA REFORMA TRABALHISTA

‘A sociedade não percebeu ainda o tamanho do impacto nos direitos sociais que a reforma trabalhista vai gerar’, entrevista com Paulo Joarês


A Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado aprovou, na terça-feira (6/06), o projeto de reforma trabalhista, por 14 votos a 11. O texto não sofreu nenhuma modificação em relação ao Projeto de Lei aprovado na Câmara dos Deputados no final de abril (PLC) 38/2017. O relator da matéria na CAE, senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), rejeitou todas as 242 emendas apresentadas pelos senadores da comissão, sob a justificativa de que isso significaria ter que remeter o texto novamente à Câmara. Em seu relatório, no entanto, o senador recomendou o veto, pelo presidente da República, de alguns pontos do projeto que ele mesmo considerou que precisam ser mais bem debatidos. O projeto segue agora para a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) para em seguida ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, antes de ir a plenário. Para o coordenador nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho do Ministério Público do Trabalho (Conafret/MPT), Paulo Joarês, é improvável que o projeto sofra alteração no Senado. Para ele, a discussão nas comissões vem se dando apenas como uma forma de dar uma “aparência democrática” à tramitação de um projeto de interesse das grandes entidades empresariais que dão sustentação ao governo. Nesta entrevista, ele denuncia manobras que impediram o debate sobre o texto e explica como aspectos da reforma trabalhista, como a prevalência do negociado sobre o legislado nos acordos coletivos, a autorização para a terceirização sem limites e as restrições que ela coloca para o acesso de trabalhadores à Justiça do Trabalho apontam para um cenário de perda de direitos e precarização das relações de trabalho no país.
Por André Antunes – EPSJV/Fiocruz
coordenador nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho do Ministério Público do Trabalho (Conafret/MPT), Paulo Joarês

Centrais sindicais e movimentos sociais críticos à proposta de reforma trabalhista têm denunciado que ela vem sendo votada de forma ‘atropelada’ no Congresso. Um dos questionamentos apresentados pelo MPT à proposta de reforma trabalhista em uma nota técnica em abril foi justamente em relação à celeridade da tramitação de uma matéria tão importante. O senhor vem acompanhando a votação no Senado: pode fazer uma avaliação sobre o processo de tramitação até agora, em especial a análise do PL na CAE?

O projeto chegou ao Congresso Nacional com sete artigos que alteravam alguns aspectos da CLT. Já havia alguns aspectos negativos. Esse projeto com sete artigos foi submetido a uma discussão, foram ouvidas muitas pessoas, mas, ao apresentar o seu relatório, o relator na verdade trouxe um substitutivo com mais de 117 artigos. Ou seja, ele ampliou o projeto inicial em mais de 100 artigos. E esse substitutivo da Câmara nunca foi discutido com a sociedade. Uma vez apresentado o substitutivo, ele tramitou por pouco mais de 90 horas na Câmara, foi aprovado em regime de urgência e chegou ao Senado. No Senado o que a gente tem assistido é que foram realizadas algumas poucas audiências públicas, inclusive com participação do Ministério Público do Trabalho, mas mesmo reconhecendo a existência de pontos que necessitam de alteração, o relator na CAE não aceitou modificar o projeto em nada, recomendando apenas que o presidente vete alguns aspectos e mencionando que será editada Medida Provisória para tratar desses pontos que serão vetados. Em que termos seria essa Medida Provisória a gente não sabe. Então, na verdade, nós temos um projeto que tramitou de maneira açodada na Câmara e que está sendo apenas ratificado no Senado, carimbado, exatamente como veio. Então, mesmo a discussão que está acontecendo é mais pro forma, não tem o objetivo de aprimorar o projeto. É para dar uma aparência de trâmite democrático, com discussão, mas na verdade nada está sendo considerado porque a intenção é que ele seja aprovado rigorosamente como chegou da Câmara.

O relator do projeto na CAE, senador Ricardo Ferraço, rejeitou as 242 emendas apresentadas, inclusive emendas relativas a artigos do projeto que ele próprio considerou que carecem de um melhor debate. Em alguns casos a justificativa para a rejeição foi a de que as emendas estariam contempladas nas partes do relatório que recomendam ao presidente da República o veto dos artigos e sua posterior regulamentação, inclusive por medida provisória. Do ponto de vista jurídico, o sr. acredita que haja irregularidades nesse procedimento? Ele não configura, na sua visão, uma distorção do processo legislativo?

Na verdade é uma questão política e não jurídica nesse momento. Porque juridicamente uma recomendação que o relator do projeto faça na Câmara não vincula de modo algum o presidente da República. O presidente fará a análise sua, do Executivo, sobre quais artigos vetar ou não. Não é algo que seja propriamente irregular juridicamente, mas não produz um efeito prático porque não vincula. O que tem sido dito é que existe um acordo político cujos termos não conhecemos, não se tem certeza que isso vai ser seguido exatamente assim. É um texto tão amplo, tão grande, que comportaria dez projetos de lei para permitir que os temas fossem discutidos realmente. Ou, se fosse fazer uma reforma tão ampla, que pelo menos houvesse uma discussão longa, porque são muitos detalhes, muitos aspectos que são modificados, alguns deles são difíceis de perceber nas primeiras leituras.
Agora, eu concordo com você, é uma coisa imprópria para o processo legislativo, porque o Senado, uma vez que considere que a norma tem que ser suprimida ou alterada, deveria ele próprio fazê-lo. O que ocorre é que com a pressa que há para que esse projeto seja aprovado, a intenção é evitar que ele retorne à Câmara, porque se ele sofrer modificações no Senado, ele precisa voltar à Câmara. Essa é a questão que está motivando esse movimento de sugerir o veto.

O relator sugeriu vetos em seis pontos do projeto: a possibilidade de que lactantes e gestantes trabalhem em locais insalubres, possibilidade de acordo individual para jornada de 12 horas com 36 horas de descanso, a criação do trabalho intermitente, a possibilidade de negociação do intervalo de almoço, a nomeação de um representante dos trabalhadores dentro da empresa e a revogação dos 15 minutos de descanso para mulheres antes que elas façam hora extra. Qual é a sua avaliação sobre as recomendações?

São todos pontos que deveriam ser excluídos do projeto. A questão dos representantes dos empregados nas empresas é uma questão que precisa ser regulamentada, inclusive é prevista na Constituição Federal. A questão é a forma como isso será regulamentado. O projeto como está é muito frágil, ele não contém claramente as atribuições desses empregados, as garantias, não prevê a forma como esses trabalhadores representantes vão se relacionar com o sindicato. Porque, veja, você pode criar os representantes dos trabalhadores integrados à estrutura sindical, que seria um reforço de representação, ou você pode criar de uma maneira em que essa representação seja concorrente ao sindicato, que com isso você gera um enfraquecimento da representação sindical.
Hoje nós temos a jornada 12 por 36 aceita em algumas atividades, como de vigilância, em hospitais, mas sempre mediante negociação coletiva. No momento em que você abre essa possibilidade para toda e qualquer atividade mediante acordo individual, você na prática está abrindo a possibilidade de que a empresa exija esse tipo de jornada de seus empregados em qualquer atividade, inclusive atividades com muito risco para a saúde, para a segurança. Isso seria bastante negativo realmente.

A proposta ainda tem que ser analisada pela Comissão de Assuntos Sociais e pela Comissão de Constituição e Justiça, antes de ir à votação em Plenário do Senado. Qual é sua expectativa? Acha que há possibilidade de um desfecho diferente nas outras comissões?

Hoje [8 de junho] foi fechado um acordo entre os líderes partidários estabelecendo um calendário de votações. Então será votado na CCJ no dia 28 e a partir de então estará pronto para ir a plenário. A gente tem uma avaliação do momento de que é muito provável a aprovação do projeto. O ambiente político é muito conturbado hoje, a gente não tem como avaliar com certeza o que vai ocorrer. Mas hoje infelizmente eu te diria que é provável a aprovação do projeto nos termos em que veio da Câmara. A minha avaliação é que esse é um projeto das grandes entidades empresariais muito mais do que um projeto do Executivo, do governo. Eu acredito que a movimentação e a aprovação desse projeto podem ser um pouco tumultuadas pelo ambiente político, mas não vai interromper porque os interessados na sua tramitação seguem os mesmos, embora possa acontecer uma eventual mudança no Executivo. Nos debates sobre o projeto promovidos pela mídia a gente tem a percepção de que têm sido colocadas quase que unanimemente as posições das pessoas que são favoráveis à aprovação da reforma. Então o ambiente nesse aspecto também é favorável à aprovação.

Diferente da proposta de reforma da Previdência, cuja tramitação vem sendo mais complicada…

Sim, embora na minha avaliação o impacto da reforma trabalhista na vida dos trabalhadores, na vida das pessoas vá ser muito maior do que o da reforma da Previdência. Só que como esse debate não está sendo aprofundado, a sociedade ainda não percebeu o tamanho do impacto nos direitos sociais que a reforma trabalhista vai gerar. É um projeto muito complexo, são muitos artigos, com alguns aspectos extremamente preocupantes como a dificuldade de acesso à Justiça pelo trabalhador.

O excesso de processos na Justiça do Trabalho vem sendo utilizado como justificativa para medidas que, como apontou a nota técnica do MPT em abril, não terão os efeitos pretendidos e ainda devem dificultar o acesso à Justiça do Trabalho. A nota ainda pondera que, ao mesmo tempo em que dificulta o acesso à Justiça pelos trabalhadores, principalmente os mais pobres, o projeto facilita a defesa dos empregadores em caso de litígio. Por quê?

Hoje, quando o trabalhador rescinde o seu contrato, ele faz uma homologação da rescisão no sindicato, a empresa tem um prazo de dez dias para pagar as verbas rescisórias. Se tiver sofrido alguma lesão durante o contrato, ele pode buscar a Justiça do Trabalho para reparar. Pelo projeto, ele não terá mais a homologação no sindicato, então perderá esse auxílio, esse apoio, inclusive para apontar para ele eventuais irregularidades que existam nos pagamentos da empresa. Mas não é só isso. Está se criando também uma possibilidade de que durante o contrato de trabalho o empregador e o empregado compareçam ao sindicato anualmente e o empregado dê quitação de todas as parcelas do ano anterior. Uma vez que ele assine essa quitação do ano anterior, ele não pode mais reclamar aquele período na Justiça do Trabalho. No curso do contrato de trabalho o empregado, sob subordinação, necessitando de salário, vai ter muita dificuldade em resistir a esse pedido de quitação apresentado pelo empregador. Então, ao final do contrato, provavelmente ele já terá muito pouco tempo de contrato para que possa reclamar. Mesmo assim foi criada a figura do acordo extrajudicial. O que significa? Significa que, sem que exista um processo, o empregado e o empregador podem apresentar uma petição ao juiz firmando um acordo para pagamento de verbas, provavelmente com quitação total do contrato. Você abre a possibilidade para que o empregador não pague as verbas rescisórias no momento em que ele dispensa o empregado e o empregado, necessitando do dinheiro, aceite fazer essa petição de acordo que o juiz terá 15 dias para homologar. Uma vez homologado esse acordo, dada a quitação do contrato, o empregado não terá mais possibilidade de reclamar nada na Justiça do Trabalho.
Foram criadas dificuldades processuais para o trabalhador. A obtenção da justiça gratuita se tornaria bem mais difícil do que no processo civil, por exemplo, porque no processo civil basta que a pessoa declare que não tem condições de suportar os custos do processo, e ela somente terá que apresentar prova disso se essa alegação for impugnada pela outra parte. No sistema que está sendo criado, para todos os pedidos daqueles empregados que ganhem mais do que R$ 2 mil vai ter que se apresentar essa prova. Mas mesmo que ele obtenha, está se criando a obrigação do pagamento de custas processuais, de honorários periciais, de honorários advocatícios e sucumbência, inclusive com a obrigação de que o trabalhador apresente o valor já determinado de seu pedido. Por exemplo, se ele for pedir uma indenização por dano moral e fixar um valor alto – e é difícil fixar o valor porque a gente não sabe em quanto o juiz vai aferir – e perder esse pedido, ele vai ter que pagar honorários advocatícios sobre o valor que ele pediu. Hoje o empregado não paga honorários advocatícios.
Outro elemento bem relevante do projeto de reforma trabalhista é se o trabalhador faltar a uma audiência. Porque não tem Justiça do Trabalho em todas as cidades do país, tem só nas cidades de maior porte. Muitos trabalhadores vão para a audiência e saem de uma cidade para outra, de transporte público, sujeitos a atrasar, chegando à cidade têm que localizar o prédio, a sala de audiência… Então não é raro que o trabalhador chegue atrasado ou perca a audiência. Nesse caso, mesmo que tenha sido concedido o benefício da justiça gratuita, ele tem que pagar as custas do processo. Com isso, grande parte dos trabalhadores que perderem a audiência não terão condições de fazer um segundo processo. Na mesma situação, a consequência para o empregador é que, se o advogado dele estiver presente, o advogado pode apresentar a defesa e os documentos. E no caso do trabalhador que não comparecer à audiência, mesmo que o advogado dele esteja presente, o processo dele é extinto e para ingressar de novo ele tem que pagar as custas.

Essa reforma deve reduzir o número de processos na Justiça do Trabalho?

O primeiro aspecto é o seguinte: de todos os projetos que existem no Brasil, os trabalhistas representam cerca de 14%. Então você veja que esse argumento em torno do excesso de processos na verdade revela um preconceito, porque os outros 86% dos processos não são considerados um problema. Já os 14% dos que são movidos pelos trabalhadores são colocados como inaceitáveis, como excessivos, como abusivos. Mas o que vai acontecer com essa reforma, no meu ponto de vista, é que nós teremos muito menos processos reais para discutir os direitos realmente dos trabalhadores e teremos um grande volume desses processos para homologação de acordos, convertendo a Justiça do Trabalho num órgão homologador de rescisões contratuais, para impedir que o trabalhador possa ingressar com um processo em que ele realmente busque a reparação dos bens que ele teve lesados no contrato.
Os pedidos mais frequentes hoje são de verbas rescisórias. A verba mais postulada de todas, com quase 50% dos processos, é o aviso prévio. Você veja que o aviso prévio é um item que se comprova mediante recibo: ou o empregador pagou ou não pagou, é um tema simples. Então o que a gente tem na verdade é um nível elevadíssimo de descumprimento da legislação trabalhista, de descumprimento das obrigações trabalhistas. Não é que o número de processos seja excessivo. Na verdade chega à justiça apenas uma parte das situações de descumprimento das obrigações. Boa parte dos trabalhadores sofre prejuízo e não vai à Justiça. Veja que nessa questão das contas inativas do FGTS a Procuradoria da Fazenda Nacional divulgou que cerca de 7 milhões de trabalhadores não tiveram depositados os valores nas suas contas de FGTS. Se todos eles fossem buscar esse direito na Justiça, já seriam 7 milhões de ações. Mas o problema não estaria nas ações e sim nas empresas que não recolheram. Ao invés de combater o descumprimento da lei, procura-se evitar que a pessoa que foi lesada busque a justiça para ser reparado seu prejuízo.

A prevalência do negociado sobre o legislado é um dos pontos principais da reforma, ponto que o MPT considerou como uma “evidente inconstitucionalidade”. Por quê?

Na verdade, a Constituição Federal prevê a negociação coletiva para melhoria das condições de trabalho dos trabalhadores. E o negociado sobre o legislado já existe, só que existe apenas para elevar a condição dos trabalhadores, acrescer benefícios e direitos. Hoje não se admite a redução de direitos a não ser em hipóteses específicas previstas na própria Constituição Federal, que são duas ou três situações. O que o projeto está criando é a possibilidade do negociado sobre o legislado para retirar direitos ou para diminuir direitos. Aí é que reside a inconstitucionalidade. E num momento de grande crise econômica e de desemprego tão elevado como o que nós estamos vivendo, a negociação coletiva se torna extremamente desigual, porque é muito difícil para o sindicato dos trabalhadores negociar condições de trabalho podendo reduzir o que está na lei num momento em que a situação de desemprego é tremenda e que o que a maior preocupação dos trabalhadores é manter os postos de trabalho.

Para o MPT, quais são os pontos que seriam passíveis de negociação que são mais críticos?

O projeto separou o 611 A e B e no 611-B ele diz o que não pode ser negociado, o que está excluído. O que não estiver no 611-B, todos os outros aspectos, podem ser negociados. Porque no artigo 611-A diz o seguinte: “a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho tem prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre…”. Foi incluída essa expressão “entre outros”. Ou seja, essa relação que está aqui passou a ser só exemplificativa. Poderá ir muito além do que está previsto aqui. Ele retira alguns direitos expressamente e outros implicitamente, através de uma estratégia que é na verdade de esvaziar direitos previstos na Constituição, esvaziar o conteúdo desses direitos e criar obstáculos para que o trabalhador não consiga acessar esses direitos.

Outro ponto considerado problemático pelo MPT e também pelo Tribunal Superior do Trabalho foi sobre como a terceirização está colocada no projeto, com a autorização para a terceirização da atividade-fim, e também com a possibilidade de que a isonomia salarial entre empregados da contratante e da contratada seja facultativa. Quais os problemas que o senhor identifica nessas propostas?

Hoje nós temos um regramento em que proíbe a terceirização na atividade-fim. Com isso só podem ser terceirizadas as atividades consideradas meio e especializadas. Com a liberação ampla e geral da terceirização na atividade-fim, a empresa vai poder contratar livremente um trabalhador terceirizado para trabalhar na sua atividade finalística, muitas vezes ao lado de um empregado próprio. E aí que a gente acentua a quebra da isonomia, porque você terá um empregado direto recebendo um salário X e ao seu lado trabalhando nas mesmas atividades um empregado terceirizado ganhando menos do que isso. E não apenas o salário nominal. Cada vez mais são relevantes os benefícios indiretos, plano de saúde, auxílio-alimentação, uma serie de benefícios indiretos e que as empresas terceirizadas não concedem nos mesmos patamares que a empresa que contrata diretamente. Quando se começou a discutir terceirização a alegação é que as empresas queriam terceirizar atividades acessórias para se concentrar na sua atividade-fim. Hoje esse discurso foi completamente abandonado porque o objetivo é terceirizar a própria atividade-fim. E isso só se justifica para precarizar as relações de trabalho, para reduzir as condições de trabalho e a remuneração dos trabalhadores.

E os dados sobre terceirização apontam para essa vinculação entre terceirização e precarização?

Sem dúvida. Em todos os aspectos em que se analisa, o trabalhador terceirizado tem reduzidas suas condições de trabalho. Existem vários estudos que mostram que os terceirizados se acidentam mais, em algumas áreas de atividade econômica chega a 80% o número de mortos por acidente de trabalho entre os terceirizados e 20% entre os empregados diretos das empresas. Eles recebem em torno de 20% a 40% menos do que os contratados diretamente, trabalham um número maior de horas, têm contratos mais curtos.

A nota do MPT também critica o que denuncia como um incentivo à fraudes na relação de emprego, com a criação da figura do autônomo que presta serviços contínuos e com exclusividade para uma empresa, o que seria um desvirtuamento do trabalho autônomo. Senadores da oposição criticaram que isso seria um incentivo à chamada pejotização. Qual é sua avaliação?

Na verdade o trabalhador autônomo típico é aquele que não se vincula a um tomador. Ele estabelece o preço do seu trabalho, tem clientes variados, define seus horários, sua forma de trabalho, não fica vinculado a uma empresa. Essas são as características básicas do trabalho autônomo. Por outro lado, se um trabalhador presta serviços com exclusividade para uma empresa, continuamente, ou seja, se essa relação se estende ao longo do tempo indefinidamente e ele recebe remuneração, essas são características típicas de um empregado. O objetivo da lei é claramente permitir que as empresas denominem de autônomos trabalhadores que na verdade são empregados. Nesse caso nem existiria a pessoa jurídica, seria a pessoa física que seria denominada de autônomo. O grande problema disso é que com essa denominação de autônomo o trabalhador perde todos os direitos previstos na Constituição e na CLT, desde férias, 13º… Ele passa a não ter nenhum direito. A impressão que a gente tem é que o projeto busca dar um cartel de possibilidades para que a empresa escolha como quer contratar seu empregado. Se ela quer registrar, se ela quer terceirizar, contratar como temporário, como intermitente, como autônomo, como PJ, enfim, um cardápio de alternativas, digamos assim, para o empregador escolher. E sem dúvida, a pejotização é conceitualmente uma fraude, é quando você transforma uma pessoa que na realidade é um empregado em uma fictícia pessoa jurídica. A pessoa presta serviços em caráter pessoal, remunerado, mas firma um contrato como PJ com aquele tomador e passa a receber mediante emissão de nota fiscal, mais uma vez perdendo todos seus direitos.

O MPT questionou o fato de que o projeto enfraquece entidades sindicais, restringindo a fonte de financiamento das entidades representativas dos trabalhadores, por meio do fim da obrigatoriedade da contribuição sindical, ao mesmo tempo em que permite que as negociações coletivas restrinjam ou suprimam direitos previstos em lei, mesmo dos trabalhadores não sindicalizados. Que tipo de distorções isso pode gerar?

O problema da questão do financiamento das entidades sindicais é isso ser colocado isoladamente, sem uma reforma sindical mais ampla, e num momento em que se dá exatamente mais poderes ao sindicato para negociação ampla e redução de direitos. Então, no momento em que você amplia o poder de negociação, você reduz a capacidade de organização, que também é vinculada à capacidade financeira. E isso não atinge da mesma maneira as entidades profissionais e as entidades patronais, porque as entidades patronais se abastecem em grande parte de recursos oriundos do Sistema S. As taxas de administração sobre o Sistema S alcançam mais de 60% do seu orçamento. As entidades patronais se manterão fortes e as entidades de trabalhadores serão enfraquecidas financeiramente.
A questão da reforma está muito relacionada à liberdade sindical, que é prevista na convenção 87 da OIT e que o Brasil nunca implementou. No sistema que está, se você trabalha em uma determinada profissão em determinada área territorial, o sindicato existente naquela área vai obrigatoriamente representar você, mesmo que você não queira ser sócio, que não queira ser representado. A norma coletiva que o sindicato firmar vai vincular a sua relação de trabalho. Mesmo que o sindicato, por exemplo, não quisesse prestar assistência a esse trabalhador que não é seu associado, pelo nosso modelo ele também é obrigado. Então é um modelo que vincula compulsoriamente o trabalhador a um sindicato daquela base territorial. E o projeto de reforma trabalhista tende a ampliar os impactos negativos do nosso sistema sindical contraditório.

Além dos pontos que discutimos, quais outras questões o senhor considera preocupantes que permanecem no projeto?

São muitos realmente. Uma delas é a tarifação do dano extrapatrimonial que, simplificando, é o dano moral. O projeto coloca limites para a indenização do dano moral para os trabalhadores em quatro faixas: danos leves, médios, graves e gravíssimos, e calculado sempre com base no salário: três vezes o último salário contratual no leve até 50 vezes o salário do ofendido no caso do dano gravíssimo. No nosso ponto de vista, isso é claramente inconstitucional porque a Constituição Federal assegura a reparação integral do dano. Isso quer dizer que a pessoa tem direito a receber uma reparação integral daquele dano que ela sofreu. A lei não pode estabelecer limites. O valor dessa lesão tem que ser avaliado em um processo para o caso de cada uma das pessoas. Além disso, esse tipo de norma quebra a regra da isonomia. Exemplo: se vai um cliente de uma construtora visitar um edifício que está em construção para comprar um apartamento e acompanhando ele vai um operário da construtora, os dois sofrem um acidente em conjunto, qualquer natureza de lesão, os dois quebram a perna, o braço, por exemplo. O máximo de indenização que o operário vai poder receber é 50 vezes o salário dele. Suponha que ele ganhasse mil reais; ele ganharia R$ 50 mil no máximo. Para o cliente da construtora que sofreu a lesão idêntica não haveria limite algum. Ele poderá receber o valor que o juiz avaliar adequado: 100, 200, 300, 400, 500 mil reais, conforme o caso. Então nós teríamos dois cidadãos sofrendo o mesmo acidente, a mesma lesão, só que o cidadão trabalhador tem uma limitação no que ele pode ser indenizado e o cidadão cliente, consumidor, não tem nenhuma. A única categoria social que passará a ter essa limitação pelo projeto é a categoria dos trabalhadores. Nenhuma outra categoria social sofre esse tipo de limitação.

O MPT, assim como a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), é citado no relatório do senador Ferraço, que em sua argumentação procura refutar a crítica apresentada pelas entidades de que a flexibilização da legislação trabalhista não é sinônimo de geração de empregos. O senhor poderia falar sobre quais as evidências empíricas que apontam para essa conclusão apresentada pelo MPT e pela Anamatra?

Na verdade esse tipo de alteração legislativa já foi tentada em vários outros países. O que a gente está apontando são as experiências e estudos que foram realizados em relação a esses outros países todos, inclusive estudos da OIT, OCDE, não são afirmações apenas pelo que a gente acha que vai ser. É a constatação do que já aconteceu. Inclusive essa conclusão de que a redução de direitos trabalhistas não gera emprego é da OIT, por exemplo, em estudo realizado em inúmeros países. As experiências de México e da Espanha, que têm sistemas parecidos com o nosso, mostram isso de maneira evidente. O que aconteceu não foi a geração de empregos, mas a transformação de empregos mais protegidos em empregos precarizados Isso é demonstrado em números nesses países. É muito provável que esse seja o cenário esperado no Brasil.

O relatório também menciona a participação do MPT, na figura do procurador-geral do trabalho Ronaldo Fleury, nas reuniões realizadas na CAE para debate do projeto. O conteúdo das notas técnicas produzidas sobre o tema pelo MPT, sobre as quais o senhor falou nesta entrevista, foram levadas ao conhecimento dos senadores durante essas reuniões? Qual foi o retorno que o MPT obteve dos parlamentares?

Nós distribuímos nossas teses a todos os parlamentares e vários deles nos solicitaram auxílio. Temos atuado intensamente no sentido de tentar esclarecer os parlamentares sobre o real conteúdo do projeto, sua amplitude, consequências. O Ministério Público tem tentado conversar com todos, sem preferência partidária. procuramos conversar com todos os parlamentares porque nosso interesse é esclarecer sobre o projeto e exercer nossa função de defesa dos direitos sociais dos trabalhadores. A gente fez várias reuniões para esclarecer aspectos do projeto, que inclusive geraram a apresentação de emendas, tiveram um retorno positivo nesse sentido. Mas como você viu até aqui, todas as emendas foram rejeitadas.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 12/06/2017

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