segunda-feira, 27 de julho de 2020

OS CEM ANOS DE CELSO FURTADO E O MITO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO.

Os 100 anos de Celso Furtado e o mito do desenvolvimento econômico


Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
[EcoDebate] No dia 26 de julho de 2020, Celso Furtado (1920-2004) completaria 100 anos. Ele nasceu em Pombal, na Paraíba, formou-se em Direito no Rio de Janeiro, serviu na Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), doutorou-se em Economia na França no pós-guerra e, em 1949, mudou-se para Santiago, no Chile, para integrar os quadros da recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão da ONU voltado para o desenvolvimento regional.
Em 1959 publicou o influente livro “Formação Econômica do Brasil”, que se tornou um clássico da interpretação do subdesenvolvimento brasileiro, mostrando que o país não vivia apenas uma etapa na linha da evolução do desenvolvimento, mas tinha um caráter histórico e que estava inserido em uma divisão social do trabalho, com profundas desigualdades entre o “centro” e a “periferia” da economia internacional.
pegada ecológica e biocapacidade total - mundo
Mas no livro “O mito do desenvolvimento econômico”, de 1974, Celso Furtado vai mais longe e mostra os limites do sonho do desenvolvimento e do crescimento econômico ilimitado em um Planeta finito. Ele foi influenciado por Kenneth Boulding (1910-1993) – que disse a famosa frase provocativa: “Acreditar que o crescimento econômico exponencial pode continuar infinitamente num mundo finito é coisa de louco ou de economista”.
Também influenciado por outros autores fundadores da escola da Economia Ecológica, Celso Furtado chamou a atenção para o fato de que os países da periferia do sistema capitalista seriam incapazes de reproduzir o padrão de consumo dos países ricos, pois o padrão de desenvolvimento afluente não seria generalizável para a maioria da população mundial. Na passagem abaixo ele alerta para a possibilidade de um colapso ambiental:
(…) que acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chegar efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos ricos chegam efetivamente a universalizar-se? A resposta a essa pergunta é clara, sem ambiguidades: se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso (Furtado, 1974, p. 19).
Furtado, de forma inovadora para o pensamento brasileiro, mostra que o padrão de produção e consumo hegemônico no mundo seria impossível de se generalizar, pois o crescimento ilimitado da economia seria inviável em decorrência dos limites da ecologia:
O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida, é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana. (…) a ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos – é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. (…) Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito” (Furtado, 1974, p. 75).
Estas palavras foram publicadas em 1974, ano em que a população mundial atingiu 4 bilhões de pessoas e os países desenvolvidos tinham menos de um bilhão de habitantes. Para Celso Furtado, o desenvolvimento seria uma possibilidade para os poucos países do Primeiro Mundo, mas um mito inalcançável para a maioria dos países do Terceiro Mundo, pois com a pressão sobre os recursos naturais não haveria como satisfazer toda a demanda global.
Na verdade, Celso Furtado cita Nicholas Georgescu-Roegen mostrando que o crescimento ilimitado da economia e da população não se sustentava diante da lei da entropia. Por isto era preciso repensar o “mito do desenvolvimento” e como diria Georgescu-Roegen, seria preciso ousar falar em “decrescimento”. Como mostrou Cavalcanti (2001), Furtado percebe que o desenvolvimento é um mito, pois na prática provoca “destruição ambiental, a ampliação da dependência e o crescimento predatório”.
Mas esta parte do pensamento de Celso Furtado nunca teve a repercussão necessária no território nacional. Ao contrário, Celso Furtado foi “acusado” de ter fraquejado e ter aderido ao neomalthusianismo ou então, simplesmente, seria um descuido temporário e passageiro. Por Exemplo, Antônio Barros de Castro fez uma resenha na Revista Pesquisa e Planejamento Econômico (dez/1974) onde nega a contribuição original de Furtado, dizendo que ele foi influenciado pelo Clube de Roma, mas diz que esta passagem do livro é “um mero expediente”:
É evidente, porém, que o autor não compartilha fundamentalmente da visão catastrófica daquela equipe. Nem no referente ao crescimento populacional nem no que toca às barreiras físicas ao crescimento (esgotamento) de recursos e poluição insuportável, já que a aceitação desse fato levaria a prever o estancamento (ou a catástrofe) das próprias economias centrais. Deixemos, pois, de lado as páginas que derivam de Limits do Growth; elas parecem ser um mero expediente de que se vale o autor para chamar a atenção sobre o que é realmente relevante: a ilusão do desenvolvimento” (Castro, 1974, p.740).
Ou seja, alguns economistas brasileiros encontraram uma maneira de contornar o pensamento de Celso Furtado, enquanto outros simplesmente o acusaram de ser neomalthusiano e rejeitaram suas contribuições. Especialmente os autores da chamada corrente “histórico-estrutural” estranharam o livro de Celso Furtado e contribuíram para interditar o debate.
Paul Singer, por exemplo, gastou mais de 30 anos para fazer uma autocrítica, quando em entrevista ao IHU, em 2008, disse: “Em 1974, o Celso Furtado escreveu um livro chamado O mito do desenvolvimento (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974), em que ele sustentava a tese de que era um mito imaginar que através do desenvolvimento econômico o mundo inteiro desfrutaria algum dia do padrão de consumo dos estadunidenses. Ele tinha certeza, assim como embasamento, para afirmar que tal fato não aconteceria nunca. E que, portanto, o desenvolvimento não se poderia gerar por falta de recursos naturais. Ele disse isso há 34 anos. Nessa época, eu li e achei que ele teve um ataque de malthusianismo. Isso porque Malthus, há 200 anos, dizia que a Terra era finita, que os recursos naturais acabariam e que o aumento da população resultaria em fome etc., na medida em que estávamos indo para além da capacidade da Terra. A tese do Malthus foi várias vezes refutada porque houve diversos avanços científicos que permitiram a utilização de recursos naturais e que na época dele não existiam. Em 1974, nós acreditávamos que o Celso estava um pouco pessimista demais porque, na medida em que os recursos naturais se esgotavam, outros substitutos eram encontrados. Tipicamente, no lugar do petróleo que está acabando, nós desenvolveríamos biocombustíveis, energia eólica, energia solar, e assim por diante. Só que o Celso estava certo e nós errados, isto é, ele não estava sendo excessivamente pessimista. Chegou o momento em que a pressão da demanda está muito mais forte do que a capacidade do avanço científico de resolver, através de novas tecnologias, esses impasses” (IHU, 2008).
Portanto, está na hora dos brasileiros acordarem e entenderem sobre os males que o crescimento demoeconômico tem feito ao Planeta, nesta Era do Antropoceno. A perda de biodiversidade, a degradação dos ecossistemas e aquecimento global estão rompendo com o equilíbrio homeostático do Planeta a estabilidade climática do Holoceno.
O economista e pesquisador Clóvis Cavalcanti (2012), com base nos princípios da economia ecológica, caracteriza o atual modelo hegemônico de desenvolvimento como “Extrai-Produz-Descarta”. Ele explica como funciona o modelo: “O que a economia moderna faz, na verdade, em última análise, é cavar um buraco eterno que não para de aumentar (extração de matéria e energia de baixa entropia). Cumprido o processo do transumo, os recursos terão virado inevitavelmente dejetos – matéria neutra, detritos, poeira, cinzas, sucata, energia dissipada – que não servem para quase absolutamente nada (matéria e energia de alta entropia). Amontoam-se formando um lixão, também eterno, que não para de crescer. Assim, a extração de recursos e a deposição de lixo deixam como legado uma pegada ecológica cada vez maior” (p. 40).
Em síntese: é necessário mudar o modelo “Extrai-Produz-Descarta” e iniciar um decrescimento demoeconômico para colocar a Pegada Ecológica em equilíbrio com a Biocapacidade até se chegar ao Estado Estacionário, ecologicamente sustentável, com regeneração ecológica e aumento da resiliência, evitando um desastre global. E embora John Stuart Mill já tenha tocado nestes assuntos em 1848, Furtado foi muito corajoso de retomar este assunto tão desafiador naquele momento histórico brasileiro.
Desta forma, nos 100 anos do nascimento de Celso Furtado é essencial lembrar deste aspecto fundamental do livro “O mito do desenvolvimento econômico”, lembrando que o mesmo vale para a nova ilusão, prevalecente no século XXI, já que um “desenvolvimento sustentável” sustentado em crescimento demoeconômico continuado não passa de um mito.
José Eustáquio Diniz Alves
Colunista do EcoDebate.
Doutor em demografia, link do CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

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