quarta-feira, 13 de março de 2024

AS ÁRVORES SÃO GUARDIÃS DAS HISTÓRIAS DOS NOSSOS ANCESTRAIS .

 árvores

As árvores são guardiãs das histórias dos nossos ancestrais, artigo Rosângela Trajano

Se você é capaz de plantar árvores dentro da sua alma e de rir das suas próprias histórias, então seja bem-vindo a este texto e eu lhe desejo uma boa leitura

Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído, é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardim por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles.”, versos do nosso querido escritor e poeta Rubem Alves.

Sim, se você não consegue cultivar um jardim dentro da sua alma não tente cultivá-lo fora de si. Do mesmo jeito é se você não consegue escrever a história da sua vida não tente buscar as histórias dos seus ancestrais, elas de nada servirão para você.

Mas, se você é capaz de plantar árvores dentro da sua alma e de rir das suas próprias histórias, então seja bem-vindo a este texto e eu lhe desejo uma boa leitura, pois para sentir a vida com todos os cinco sentidos é preciso saber amá-la e conhecer a história daqueles que vieram antes de nós e nos trouxeram, de alguma forma, até aqui.

As árvores com as suas raízes apontando para a infinitude da terra e os seus galhos apontando para a luz do sol, a luz da sabedoria infinita do filósofo Platão. Elas sabem bem o que é sabedoria, pois muitas delas contam séculos de existência e até mesmo as mais novas já vivenciaram muitas experiências ricas e emocionantes, sim porque árvore também tem sentimento e se emociona. Chega a chorar a nossa dor, as nossas perdas, as nossas angústias e aflições quando nos abraçamos a elas. São sentimentais por demais.

Somos filhos das árvores que brotam do solo e saem se enraizando terra adentro mostrando os seus frutos, folhas e galhos que se alimentam dos seus nutrientes. Assim são as nossas histórias, ou seja, somos entrelaçados por um fio invisível que vai tecendo a nossa existência no presente, alimentado pelo passado e com a esperança no futuro breve como breve é a vida.

Quando um fruto dessa árvore cai no chão, nasce com ele um novo ser que carrega as características dos nossos ancestrais, nossas memórias, nossas histórias e experiências seculares.

Carregamos dos nossos ancestrais características físicas, tipo: cor do cabelo, cor da pele, formato do nariz, nosso modo de pensar, nossas crenças, a cor dos nossos olhos. Nossos ancestrais são a árvore secular que nos dão a possibilidade de fazermos escolhas, de traçarmos os nossos caminhos, de escolhermos o nosso futuro.

As árvores carregam em seus troncos e nas suas raízes mais profundas as sabedorias dos tempos dos nossos ancestrais que não puderam deixar nada por escrito porque ainda não existia a escrita ou porque não sabiam escrever ainda. Para elas foram contadas sabedorias que não se encontram nas pessoas próximas da gente e que ainda estão vivas, mesmo as mais velhas não têm a sabedoria de uma árvore milenar.

Quantas histórias não vivem as nossas árvores dos canteiros da nossa cidade sejam elas de amor, de amizade, de paz, de guerras, de poesia e até mesmo de opressão. Ali, parecidas quietas, as árvores escutam e vivenciam junto conosco as mais diferentes histórias dos homens e até mesmo chegam a dar conselhos através dos balanços dos seus galhos ou de um fruto seu que nos alimentamos e adquirimos energia para seguirmos adiante.

Elas sabem das histórias dos nossos colonizadores, da opressão sofrida pelos nossos indígenas, foram testemunhas do grande desflorestamento na época do nosso descobrimento quando levaram do nosso país muitas árvores Pau-Brasil. Guardam todos esses acontecimentos para que um dia possam nos lembrar das nossas ancestralidades.

Para que não esqueçamos dos nossos ancestrais, de onde viemos, como surgimos e os motivos que nos trouxeram até aqui. As árvores sabem que os nossos passados podem nos ajudar a construirmos um amanhã melhor para nós e para os nossos filhos porque elas sabem das lutas dos nossos ancestrais, elas conheceram e vivenciaram as batalhas, as guerras, as transformações sociais, culturais e políticas pelas quais passaram as nossas infinitas gerações.

Olhar essas histórias que as árvores nos contam requer coragem e um mergulho profundo em nossas raízes para compreendermos quem somos. Saber de onde viemos é o primeiro passo para traçarmos os nossos objetivos e planos para o amanhã e também para passarmos a nos conhecermos melhor e identificarmos a nossa essência.

Assim como a nossa história possui grandes nomes como Robespierre, Voltaire, Descartes e tantos outros importantes que influenciaram o mundo e outros que a história oficial não conta, assim também temos as histórias dos nossos ancestrais que tiveram seus nomes e sobrenomes apagados e a terra de onde vieram.

O apagamento das nossas memórias é uma estratégia dos nossos colonizadores! Precisamos buscar pelas histórias e significados dos nomes dos nossos ancestrais, esse apagamento nos conta o quanto ainda trazemos os costumes e tradições dos nossos colonizadores. O quanto fomos afetados pelos seus modos de pensarem e de se vestirem, desses europeus que aqui estiveram e deixaram um lastro de violência e lutas por uma terra que já era povoada muito antes deles aqui chegarem. Não me refiro somente ao Brasil, mas aos países do continente africano que também foram “colonizados”, quando antes dos europeus chegarem já existiam povos com as suas culturas e costumes. Todos fomos verdadeiramente invadidos por esses homens.

Este é um processo de embranquecimento das nossas histórias que nos afasta das nossas origens africanas e dos nossos ancestrais, os indígenas. As árvores milenares viveram todas essas histórias de lutas e opressão e sabem como ninguém nos alertar sobre os riscos de sermos invadidos novamente, de termos os nossos pensamentos apagados pela branquitude, de sermos sequestrados de nós mesmos pelo aparato tecnológico que o europeu cria e nós usamos de forma abusiva deixando os nossos filhos e jovens viciados em jogos e redes sociais com algoritmos programados para que façam o que eles desejam.

As árvores não estão nos nossos terreiros ou na frente das nossas casas apenas para decorarem, nos darem sombras e frutos. Elas também podem nos mostrar como a realidade é mascarada todos os dias pela ignorância, pela falta de princípios éticos e morais que tomam os mais diversos governos no mundo inteiro.

Quando o vento passa pelas árvores balançando os seus galhos eles trazem notícias de longe que ficam presas nas suas copas. Dali, as informações são processadas e cada folha seca que cai de uma árvore contém milhas de informações que podem nos ajudar na busca por um amanhã melhor.

É preciso reconhecer que em nossas famílias vivemos histórias de lutas, daqueles que vieram antes de nós, resistências, opressão, violência, afetos, tradições e costumes em que é preciso honrar todas essas histórias que as árvores guardam nas profundezas das suas raízes e nos seus enormes troncos cuidando delas com carinho e zelo para que possamos mais tarde ou num futuro próximo aprendermos a valorizar todas essas sabedorias das árvores para nos ajudar nas escolhas que precisaremos fazer quando o mundo exigir da gente decisões sérias e importantes à vida.

Honrar significa tratar com respeito e reverência tanto as árvores quanto o que elas trazem dentro de si que são as histórias dos nossos ancestrais. Nem todas as histórias são bonitas e lúdicas. Existem histórias de lutas difíceis de serem contadas. Histórias que as árvores nos fazem chorar quando nos lembram que os nossos ancestrais precisaram passar por dificuldades grandes para que nós pudéssemos estar aqui.

Saber ouvir as histórias das árvores não é difícil. Basta se acomodar no silêncio da natureza, encostar o ouvido no seu tronco e mentalizar os seus ancestrais. Aqueles que você ainda se lembra e aos poucos as árvores trarão outros pensamentos, outras histórias que já foram esquecidas por você ou que nunca lhe foram contadas. As árvores sabem contar histórias como mais ninguém.

O importante é que não paramos mais para ouvir nada e nem ninguém. Estamos sempre caminhando apressados pelas ruas. Parecemos máquinas. Andamos cabisbaixos, com passadas apressadas sem olharmos adiante ou ao nosso redor. As árvores, muitas vezes, gritam os nossos nomes, querem um pouco de atenção, mas não nos acostumamos a ouvi-las e achamos que elas nunca falam conosco.

Engana-se quem pensa que árvore não fala. Elas falam, gritam, gemem, cantam e até ninam. Elas sabem contar histórias verdadeiras e imaginárias. Elas alegram as crianças que as procuram para ouvirem histórias que inventam na hora da birra, da incompreensão e da dor da criança. As suas histórias trazem sempre um pouco de emoção, um lado lúdico e poético, mas com ensinamentos cheios de gratidão à vida e a natureza por estarmos aqui e podermos desfrutar deste planeta tão maravilhoso que é a Terra.

Nossas histórias de resistência, mais do que grandes feitos ou aventuras, são as histórias do cotidiano. Aquelas que vivemos no caminho para a vendinha do bairro, na rotina, nas manias e nos encontros de família em que o assunto é falar dos parentes distantes ou que sempre dão uma desculpa para não comparecerem aqueles encontros.

Fico imaginando nas histórias seculares que a árvore da minha rua deve saber sobre as conversas das pessoas todas as tardes embaixo dela. Faz tantos anos que ela está ali apenas nos ouvindo, sem nunca ter sido questionada sobre as suas verdadeiras histórias.

Também fico me questionando sobre as diversas coisas que acontecem embaixo de uma árvore: menino brincando de carrinho, mulheres fofocando, casais namorando, velhinhas fazendo crochê, um desconhecido se amparando do sol, uma criança puxando uma pipa presa na copa e tantas outras cenas do cotidiano que as árvores devem guardar dentro de si para construírem histórias para os nossos netos no amanhã.

Devemos ensinar às nossas crianças a ouvirem as árvores. Muitas delas estão cheias de histórias para nos contarem. Estão quase explodindo com tantas histórias. Elas são verdadeiras fábricas de histórias e sabem quase tudo que se passa próximo delas porque o vento nunca deixa de passar por elas e sempre que passa deixa um pouco de si e leva um pouco delas para compartilhar com outras árvores histórias que os homens nunca ouviram, mas que entre si elas escutam.

As crianças que aprendem a ouvir as árvores passam a ser mais felizes e sabem ser gratas à natureza. Não! Não é loucura parar um instante e encostar o ouvido no tronco de uma árvore para ouvi-la contar uma rápida história. Você vai se sentir bem, muito bem mesmo. Eu já vivi essa experiência várias vezes e confesso que é um momento eterno. Parece que nunca vai se acabar aquele instante com o ouvido colado no tronco da árvore.

Muitas têm a voz grossa outras têm a voz fina, cada uma do seu jeito. Tem algumas que roncam quando estão falando conosco, parecem que sem querer elas adormecem. Mas, logo acordam e voltam para o mesmo ponto da história. As árvores são bem engraçadas e não há melhor contador de histórias no mundo do que elas. Experimente ouvir a história dos seus ancestrais através de uma delas.

Talvez depois de ouvir a sua história você sinta que não alcançou muita coisa e desanime, mas pense e lembre que o lugar ocupado ainda exige muitas lutas. Há ainda muitas barreiras e conflitos para vencermos. Não desista de ouvir a sua árvore. Estamos avançando e chegaremos aonde desejamos. As nossas histórias não são nada fáceis. Elas nos fazem lembrar do quanto precisamos ser fortes e corajosos todos os dias para enfrentarmos os desafios e as intempéries de um mundo cheio de incompreensões.

Você tem construído degraus e sua história também será contada por aqueles que virão depois de você. Ser ancestral para os povos africanos e afrodescendentes é viver o sentido de coletividade. Existimos porque o outro existe. E a morte para nós não é um fim já que a vida brota a cada nascimento e mantém a nossa árvore de pé. Assim, de ancestral em ancestral caminhamos por esta terra.

Não devemos desistir nunca das nossas histórias e de ouvirmos as nossas árvores. Sempre que pudermos pedir um conselho também é bom. Elas são amigas e gostam de cuidar de nós com carinho. Ficam tristes quando não nos cuidamos. Quando damos mais atenção ao outro do que a nós próprios. Quando apesar de tantas vivências e experiências ainda assim não aprendemos a nos conhecer por inteiro.

Ouça a história dos seus ancestrais e conheça um pouco das suas raízes. Ademais, entrar em contato com a nossa ancestralidade é, antes de tudo, uma estratégia de resistência e um resgate necessário para compreendermos quem somos, de onde viemos e para onde queremos e precisamos caminhar. A árvore da sua calçada pode lhe contar muita coisa interessante que você precisa saber.

Finalizo com os versos do poeta português Fernando Pessoa que nos diz “Sejamos simples e calmos, / Como os regatos e as árvores, / E Deus amar-nos-á fazendo de nós / Belos como as árvores e os regatos, / E dar-nos-á verdor na sua primavera, / E um rio aonde ir ter quando acabemos!…” Sim, sejamos calmos e cuidemos de manter os nossos espíritos sempre serenos para que possamos assim ouvir o que as árvores têm para nos contar das histórias dos nossos ancestrais até os dias de hoje. Se nós queremos ser ouvidos, as árvores também querem. Ouçamos as árvores com alegria.

Rosângela Trajano é professora, ativista ambiental, escritora e poeta.

 

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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