EMBORA A HUMANIDADE conheça o ato de tirar a própria vida desde tempos imemoriais, o tema permanece um tabu e, muitas vezes, escapa ao conhecimento das autoridades de saúde pública. Contudo, para responder à recente alta nas taxas de suicídio, especialmente entre os jovens, o Brasil precisa de uma nova abordagem, mais aberta e preventiva. É o que defende José Manoel Bertolote, de 66 anos, professor do Departamento de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu, e do Australian Institute for Suicide Research and Prevention, da Griffith University. Referência nacional sobre o tema, Bertolote é autor de O Suicídio e Sua Prevenção, publicado em 2012 pela Editora Unesp, um dos únicos livros disponíveis sobre o assunto no País. Atraído ainda na adolescência pelo que chama de “lado bonito do suicídio”, presente na Literatura e no teatro, o médico ampliou horizontes ao entrar em contato com o drama da morte e do sofrimento daqueles que ficam. Há 25 anos trabalhando com o tema, ele falou a Carta na Escola sobre o aumento dos casos no Brasil, políticas públicas de prevenção e a importância de se estabelecer vínculos afetivos na escola para antever os problemas dos jovens.
Carta na Escola: Acompanhada pela OMS desde 1948, a mortalidade por suicídio mostra crescimento em quase todos os países analisados. É possível aferir os motivos do aumento?
José Manoel Bertolote: A razão exata é complicada de saber, porque são países distintos. De modo geral, em países com política ou estratégia nacional de prevenção, as taxas estão caindo. Do ponto de vista da saúde pública, isso é importante. Se não existe um programa nacional ou mesmo estadual, fica muito difícil a coordenação das ações.
CE: Historicamente, quais são os grupos com mais propensão a tirar a própria vida e por quê?
JMB: Os homens idosos, com mais de 75 anos, têm taxas mais altas no mundo, com raríssimas exceções. São várias razões para isso. O suicídio é considerado um problema multicausal. Os idosos têm uma taxa mais alta de depressão, de outros transtornos mentais e também mais incidência sobre problemas físicos e doenças crônicas ou incuráveis. Além disso, têm cada vez menos contatos sociais. O homem idoso não tem quem cuide dele nem foi preparado para se cuidar. Fica muito vulnerável. Isso não acontece com a mulher, que tem mais relações afetivas válidas e mantém uma rede social de apoio. O homem perde essa rede ao longo da vida. São elementos de ordem psicológica, física e social.
CE: No entanto, as taxas de suicídio entre jovens estão aumentando e são hoje a terceira causa de morte mais frequente entre 15 e 25 anos.
JMB: No mundo inteiro, diga-se. Mas é preciso considerar que os jovens estão morrendo por suicídio, porque não sofrem mais com as causas naturais de antes. Ninguém mais morre de difteria ou de paralisia infantil. Que doença mata os jovens hoje? Câncer, principalmente linfoma. As outras duas causas comuns são acidente e suicídio. Isso não quer dizer que o suicídio cresceu, mas sim que as outras causas foram prevenidas.
CE: Apesar de existirem registros desde tempos imemoriais, o assunto ainda é pouco discutido. Por que tanto silêncio?
JMB: O tabu normalmente decorre de fatores religiosos. As religiões monoteístas colocam uma restrição muito grande ao suicídio. Essa questão funciona de forma muito perversa. Até recentemente os cemitérios tinham uma área específica para enterrar suicidas. Tudo isso tem um peso enorme na formação do tabu.
CE: O tabu se deve, portanto, à religião?
JMB: Com quase toda certeza. Há outro fator curioso que persiste até hoje. Na Inglaterra medieval, se alguém se suicidasse, todas as propriedades iam para a Coroa. Então os parentes tinham todo o interesse em ocultar o suicídio. E foi justamente na Inglaterra da época que começaram os primeiros processos de verificação do suicídio, já que havia uma implicação legal.
CE: Existe alguma estimativa sobre quantas pessoas morrem a cada ano por suicídio?
JMB: A Organização Mundial da Saúde (OMS) recebe notificações de óbitos de todas as causas de todos os países. Esses dados são processados e deles é extraído um relatório. A OMS, porém, tem 194 países membros, mas só 120 conseguem notificar a causa do óbito. Isso significa que existem quase 80 países, principalmente na África e no Sudeste Asiático, em que não há registros. Mas, fazendo uma projeção para todos os países, calcula-se que existam quase 900 mil óbitos por ano. É um caso de suicídio a cada 45 ou 50 segundos.
CE: No Brasil, houve um aumento de 10 vezes em 20 anos nas taxas de suicídio entre jovens de 15 a 25 anos. Como o senhor analisa isso?
JMB: O aumento entre jovens do sexo masculino no Brasil foi acima de 300% nos últimos oito anos. Essa é a visão a partir de dados do Departamento de Informações do SUS. Mas há estudos no estado de São Paulo capazes de confirmar esse dado como sendo ainda mais alto. Então não é somente um acidente estatístico, há realmente uma ampliação no suicídio de jovens do sexo masculino e uma estabilização em todas as faixas de mulheres.
CE: Assim como nos homens acima de 75 anos, é possível apontar as causas do suicídio de jovens?
JMB: Para os jovens é mais difícil. Tenho uma hipótese pessoal, sem validade científica. As mortes por violência dessa população também estão aumentando assustadoramente. É como se houvesse uma banalização da violência. Em São Paulo, são três homicídios por dia, enquanto existem países com dez homicídios por ano. E o suicídio, apesar de ser uma coisa específica, é um comportamento violento. Essa banalização é a minha hipótese para explicar o aumento. Por outro lado, temos outros fatores, principalmente o uso exagerado de álcool e drogas. Há ainda o estado de abandono das classes mais pobres. Os jovens desses estratos não têm perspectiva de futuro. Mesmo que estude e consiga um emprego, um rapaz pobre de 15 anos vai ganhar um salário mínimo. Ele não tem interesse em ir para a escola nem em ganhar essa quantia, e a vida fica uma coisa muito sem valor. Essa conjuntura acaba pesando na cabeça das pessoas.
CE: É possível prevenir o suicídio? Existem políticas públicas no Brasil para essa questão?
JMB: Aqui no Brasil existe uma política criada em 2005 ou 2006, mas que nunca foi posta em prática. Está lá em alguma gaveta no Ministério da Saúde. É uma política muito benfeita e organizada, baseada nas recomendações clássicas da OMS.
CE: Quais são elas?
JMB: A primeira é um tratamento adequado para os transtornos mentais. No mundo ocidental, mais de 90% dos que se suicidam têm um transtorno mental, e os dois mais comuns são a depressão e o alcoolismo. No Brasil, infelizmente não temos uma rede eficaz para enfrentar o problema. A segunda, de difícil aplicação no País, é a limitação de acesso aos meios de suicídio. Aqui o método mais empregado é o de enforcamento, difícil de controlar. A terceira é a atuação responsável da imprensa, no sentido de evitar sensacionalizar o suicídio. Especialmente quando se trata de uma celebridade, a tendência é glorificar isso. A OMS lançou uma cartilha de orientação para jornalistas sobre como abordar o suicídio. A Associação Brasileira de Psiquiatria a adaptou para a realidade do Brasil. Uma das recomendações em reportagens sobre suicídio é sempre indicar que pode ser evitado ou prevenido e indicar como.
CE: Quais são as ferramentas de prevenção disponíveis no Brasil?
JMB: Nós temos o CVV (sigla para a ONG de prevenção ao suicídio Centro de Valorização da Vida), com um telefone em cada cidade e também atendimento pela internet. O CVV não só fala com o indivíduo em crise, mas também pode ajudar educadores que queiram apoio para alguma intervenção específica.
CE: Existem programas específicos de prevenção em escolas?
JMB: Aqui não existe e há poucos no mundo. Em geral são programas controversos: ao lado de projetos eficazes, há aqueles que até aumentaram a taxa de suicídio, pela forma inadequada como trataram o problema. Existe um programa internacional chamado Amigos do Zippy, voltado para escolas e crianças pequenas. Ele não fala de suicídio diretamente, mas ajuda as crianças a identificar seus estados emocionais e a saber o que fazer com eles. No meu entendimento, esse programa é muito adequado para a prevenção de suicídio e outros comportamentos.
CE: O que um professor que veja sinais em um de seus alunos pode fazer?
JMB: Quando uma criança mostra sinal de suicídio, isso significa que ele deu antes muitos outros sinais de que não estava bem. O que é necessário é que a escola tenha uma proximidade afetiva com seus alunos e crie um mecanismo de escuta. A disponibilidade de ouvir é fundamental, não só na escola, mas também no trabalho ou entre amigos. Ao perceber que alguém não está bem, é preciso se dispor a escutar e a procurar uma solução juntos. Provavelmente a resposta a uma crise suicida de um estudante não está na escola, mas é lá que o problema vai ser identificado. E a escola tem a responsabilidade de lidar com isso. 
Fonte : Carta Escola