A renda dos 100 mais ricos poderia acabar com a pobreza no mundo
curiosando.com.br
A renda líquida obtida em 2012 pelas 100 pessoas mais ricas do
mundo, 240 bilhões de dólares, poderia acabar quatro vezes com a extrema
pobreza no planeta. A conclusão está num relatório publicado no fim de
semana pela ONG britânica Oxfam. A entidade não entra
em detalhes a respeito das contas que fez para chegar ao dado, mas os
números servem como alerta para a intensa e crescente desigualdade
social no mundo.
A reportagem foi publicada na revista Carta Capital, 22-01-2013.
O documento serve para chamar a atenção para os debates do Fórum Econômico Mundial, que começa nesta terça-feira 22 em Davos, na Suíça.
A desigualdade ganhou um painel próprio no encontro, marcado para
sexta-feira 25, mas tanto suas conclusões quanto os avisos da Oxfam
devem cair em ouvidos moucos. O mundo hoje está construído para ampliar a
desigualdade e não há sinais de mudança.
O relatório da Oxfam ecoa estudos e análises
econômicas recentes sobre a desigualdade. Hoje, as diferenças entre os
países estão diminuindo, mas a desigualdade entre os mais ricos e os
mais pobres dentro de cada nação está crescendo. Essa é a regra na maior
parte das nações em desenvolvimento e também nas desenvolvidas.
Nos Estados Unidos, a desigualdade social é tão grande hoje em dia que, nas palavras da revista The Economist,
supera a das últimas décadas do século XIX, a chamada “Era Dourada” do
capitalismo norte-americano. A porcentagem da renda nacional que vai
para o 1% mais rico da população dobrou desde 1980, de 10% para 20%.
Para o 0,01% mais rico, a bonança foi maior: sua renda quadruplicou.
Na União Europeia, a situação também é ruim. No livro Inequality and Instability (Desigualdade e Instabilidade, em tradução livre), o economista James Galbraith mostrou que, se tomada como um conjunto, a UE supera os Estados Unidos
em desigualdade. Isso se explica, em parte, pelas diferenças entre os
diversos países do bloco. Ainda assim, se tomadas separadamente, as
nações europeias também têm observado aumento da desigualdade. Um estudo
sobre o tema publicado em 2012 pela OCDE, concluiu que
“desde a metade dos anos 1980″, os 10% mais ricos de cada país
“capturam uma crescente parte da renda gerada pela economia, enquanto os
10% mais pobres estão perdendo terreno”. No Japão,
onde 100 milhões de pessoas se diziam de classe média, estudos mostram,
desde o fim da década de 1990, o aumento da desigualdade a partir da
metade dos anos 1980.
A política sequestrada
Não é uma coincidência o aumento da desigualdade no mundo
desenvolvido desde os anos 1980. Foi nesta época que começaram a ter
efeito as políticas lideradas pelos governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1981-1989) e Margaret Thatcher (1979-1990) no Reino Unido, mas adotadas em boa parte do mundo por outros governantes, como Helmut Kohl (Alemanha), Ruud Lubbers (Holanda) e Bob Hawke (Austrália):
impostos mais baixos, desregulamentação do sistema financeiro, redução
do papel do governo e outras medidas integrantes do receituário
neoliberal. Essa política, arrimo da globalização, teve alguns efeitos
positivos, mas foi levada a extremos por quem se beneficia delas. Para
manter as políticas desejadas, que aumentavam sua riqueza (e também a
desigualdade) esses grupos de interesse se encrustaram nos círculos de
poder. Eles sequestraram a política.
Este fenômeno é analisado no livro Winner-Take-All Politics (Política do vencedor leva tudo, em tradução livre), dos professores Jacob S. Hacker, de Yale, e Paul Pierson, da Universidade da Califórnia. Em artigo de capa da revista Foreign Affairs em dezembro de 2011, o jornalista George Packer resume
o argumento do livro em duas palavras: dinheiro organizado. Foi no fim
dos anos 1970 e início dos anos 1980 que as grandes corporações de
diversos setores da economia passaram a financiar as campanhas
eleitorais, dando início a uma “maciça transferência de riqueza para os
americanos mais ricos”.
Este modelo de política, e de fazer política, grassou no mundo
desenvolvido e foi transplantado para os países em desenvolvimento, onde
foi emulado com maestria pelas elites econômicas locais. Não é uma
surpresa, então, que a desigualdade esteja aumentando também nesta
região. A Índia acumula diversos bilionários, mas continua sendo o país
com mais pobres no mundo. A África do Sul é mais desigual hoje do que
era no fim do regime segregacionista do Apartheid. Na China, onde não é
preciso sequestrar a política, apenas pertencer ou ter um bom
relacionamento com o Partido Comunista, a desigualdade é semelhante à
sul-africana: os 10% mais ricos ficam com 60% da renda.
A América Latina e o caso do Brasil
O único lugar do mundo onde a desigualdade está caindo de forma sistemática é a América Latina,
justamente a região mais desigual do mundo. Isso ocorreu nos últimos
anos por dois motivos. O modelo neoliberal, e a ascensão do “dinheiro
organizado”, também chegaram aos países latino-americanos, mas em alguma
medida entraram em choque com forças políticas contrárias a uma parte
importante do receituário, a não-intervenção do Estado na economia.
Assim, os governos da região, entre eles o de Luiz Inácio Lula da Silva
no Brasil, conseguiram estabelecer a redução da desigualdade social
como uma prioridade. Em segundo lugar, os países da região, também
incluindo o Brasil, foram muito beneficiados pelo rápido crescimento
econômico provocado pela existência de um mundo faminto por commodities.
Há, entretanto, inúmeras dúvidas a respeito da sustentabilidade do
modelo latino-americano de redução da desigualdade, especialmente quando
a economia começar a desacelerar, situação em que o Brasil já se encontra. Como notou o colunista Vladimir Safatle em edição de dezembro de CartaCapital, o capitalismo de Estado do governo Lula
promoveu um processo de oligopolização e cartelização da economia, o
que favorece a concentração de renda nas mãos de pequenos grupos. Ao
mesmo tempo, Lula não fez, e Dilma Rousseff não dá
indícios de que promoverá, a universalização e qualificação dos sistemas
públicos de educação de saúde. Sem essas reformas, a classe média
seguirá gastando metade de sua renda com esses dois serviços básicos e
os pobres continuarão com acesso a escolas e hospitais precários. Os
ricos, por sua vez, não terão problemas. A desigualdade de renda poderá
cair ainda mais, mas a desigualdade de oportunidades vai perseverar, e a
imensa maioria dos pobres continuará pobre.
Para fazer essas reformas, e outras potencialmente capazes de reduzir
a desigualdade, como a taxação de grandes fortunas e de heranças e
reformas estruturais, o Brasil e outros países latino-americanos
enfrentarão as mesmas questões do mundo desenvolvido. Em grande medida, a
política latina foi sequestrada pelo “dinheiro organizado”.
Levantamento do repórter Piero Locatelli mostra que, em
2010, 47,8% das doações eleitorais no Brasil foram feitas por empresas e
que apenas 1% dos doadores foram responsáveis por 73,6% do
financiamento da campanha.
O resultado disso, seja nos Estados Unidos, na Europa, na Índia ou no Brasil,
é uma grave crise de representação. O cidadão não consegue participar
da vida pública e ter seus anseios ouvidos pelo governantes. Os
partidos, à esquerda e à direita, caminham cada vez mais para o centro
e, como diz o filósofo esloveno Slavoj Zizek, fica cada
vez mais difícil diferenciá-los. A esquerda, supostamente contrária aos
absurdos do liberalismo econômico, ou aderiu a ele e também tem suas
campanhas financiadas por grandes corporações ou não tem um modelo
alternativo e crível a apresentar.
Em seu relatório, a Oxfam pede aos governos para
tomar medidas que, ao menos, reduzam os níveis atuais de desigualdade
social aos de 1990. É bastante improvável que os política e
economicamente poderosos resolvam fazer isso do dia para a noite. Estão
aí os brasileiros que chamam o Bolsa Família de bolsa-esmola e o ator francês Gerard Depardieu,
que preferiu dar apoio a um ditador a correr o risco de pagar impostos
de 75%, para provar isso. Talvez apenas o entendimento de que, como diz a
ONG britânica, a desigualdade social é economicamente ineficiente,
politicamente corrosiva e socialmente divisiva, provoque mudanças. Para
isso, no entanto, é preciso que os poderosos entendam os riscos da
desigualdade.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
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