‘Ser contra a vacinação é ser contra a vida’, entrevista com Akira Homma
Não tem do que duvidar. As vacinas não só previnem doenças como, prevenindo doenças, previnem dores, tristezas, todo aquele custo de tratamento, sequelas…
Pesquisador de Bio-Manguinhos/Fiocruz alerta para o risco de volta de doenças e fala sobre o projeto que vai ajudar os municípios a reconquistarem as altas coberturas vacinais
Por Cátia Guimarães – EPSJV/Fiocruz
‘Reconquista das altas coberturas’: esse é o nome de um novo projeto coordenado pela Fiocruz, em parceria com a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde, e dá dimensão do tamanho desafio – o país precisa, urgentemente, voltar a ter taxas de vacinação que protejam o conjunto da sociedade e evitem a volta de doenças já controladas ou mesmo erradicadas.
Há dez anos, a cobertura vacina média no Brasil era de 96,5%, enquanto, em 2021, caiu para menos de 68%. Um dos profissionais à frente dessa empreitada é Akira Homma, pesquisador de Bio-Manguinhos, Fiocruz.
Nesta entrevista, produzida para a matéria de capa da revista Poli nº 85, ele explica as situações em que há diferença na imunização de crianças e adultos, ressalta as sequelas que doenças para as quais já existem vacinas podem provocar e garante que as vacinas aplicadas no Brasil são seguras. Sobre a iniciativa que vai tentar ampliar as coberturas vacinais no país, destaca que o esforço principal tem sido ir até os municípios, sentar para dialogar com todos que atuam na saúde daquele território e entender que os protagonistas dessa ‘reconquista’ são os profissionais locais.
Uma boa parte do calendário do PNI, o Programa Nacional de Imunizações, é formada por vacinas voltadas apenas para crianças. Por quê?
O que hoje nós chamamos de Programa Nacional de Imunizações não é só para crianças, tem vacinas para crianças, adolescentes, adultos e idosos. Todas as faixas etárias da população estão contempladas no PNI. Agora, certamente a imunização é feita muito mais em crianças do que em adolescentes ou adultos porque, vacinando desde bebê, você protege a criança contra diferentes doenças imunopreveníveis. Tornando-se adolescente, a criança já está protegida. Mas nenhuma vacina que nós temos protege pela vida inteira. E nós temos vacinas especificamente recomendadas para adolescentes, adultos e vacinas para idosos. São mais de 19 tipos de vacinas que estão presentes no Programa Nacional de Imunizações. E existe o Centro de Imunobiológicos Especiais (CRIE), que tem vacinas especiais para populações especiais, por exemplo, para pessoas com comorbidades que não podem receber algum tipo de vacina, que precisam de vacinas com menos reações adversas.
Não tem do que duvidar. As vacinas não só previnem doenças como, prevenindo doenças, previnem dores, tristezas, todo aquele custo de tratamento, sequelas…
Existe diferença, do ponto de vista da produção e da vigilância de eventos adversos, entre vacinas que são exclusivas para crianças e aquelas que valem para crianças e adultos? Existem especificidades quando o público são crianças?
Não. O sistema de vigilância de eventos adversos é o mesmo para crianças, adolescentes, adultos e idosos. Agora, nós falamos em reações adversas porque é necessário ser transparente com a população. Nós não estamos aqui escondendo nada, estamos falando que a vacina protege sim, mas pode apresentar algumas reações adversas. A maioria das reações adversas são transitórias, em dois ou três dias estão passando. São raríssimos casos de reações adversas graves, mas em geral o custo-benefício das vacinas é muito melhor, muito alto para as vacinas, porque elas previnem as doenças. Tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera esse programa das vacinações como um dos maiores benefícios de saúde pública, comparável aos benefícios causados pela água potável. Não tem do que duvidar. As vacinas não só previnem doenças como, prevenindo doenças, previnem dores, tristezas, todo aquele custo de tratamento, sequelas… Propicia realmente melhoria da qualidade de vida, sem falar que as vacinações têm sido uma das formas que possibilitam o aumento da expectativa de vida das populações. É preciso dizer que todas as vacinas que o Programa Nacional de Imunizações contempla no seu calendário são de altíssima qualidade. Os laboratórios que produzem as vacinas são aprovados pela Organização Mundial da Saúde e as vacinas produzidas sofrem duplo, triplo testes, além do controle de qualidade do próprio fabricante. Elas passam pelo INCQS [Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, da Fiocruz] para serem liberadas, com autorização da Anvisa. Há um cuidado muito grande com a qualidade das vacinas que são colocadas para a população.
Mas a vacina contra a Covid-19, por exemplo, é diferente para crianças e adultos. De um modo geral, quando se vai pensar nos critérios para o desenvolvimento de um imunizante, existem elementos que podem constar de uma vacina para adultos e não podem constar de uma vacina para crianças? Qual é a diferença?
No geral, não existe essa diferença. Mas no caso, por exemplo, da pneumocócica, a recomendada para crianças é uma vacina conjugada entre polissacarídeos do Streptococcus pneumoniae e uma proteína. E nós temos vacina com dez sorotipos diferentes para pneumonia para crianças aqui no Brasil. Já para idosos, tem uma vacina de pneumococcus com 23 sorotipos, mas apenas de polissacarídeos. Não é conjugada. Por quê? Porque a vacina só de polissacarídeo não protege crianças, então tem que ser conjugada, já para idosos ela dá uma resposta razoável. Em outras vacinas, no geral, não tem grande diferença.
E no caso da vacina contra Covid-19, tem alguma diferença?
Veja, a Covid-19 é uma doença nova, só tem dois anos que nós estamos vencendo essa doença. A vacina foi desenvolvida com uma estratégia absolutamente diferente das outras, que levaram dez, 15, 20 anos para serem desenvolvidas. A primeira vacina da Covid foi desenvolvida em menos de um ano. As reações que são menos presentes só aparecem quando se vacina um enorme número da população, milhões de pessoas, são tão raras que você não consegue detectar quando faz o estudo com dez mil ou quinze mil voluntários. Existe a farmacovigilância, que faz esse estudo para acompanhar reações que surgem depois de longo tempo com a vacinação. Em crianças, esse tempo de estudo ainda é bastante curto. A vacina para crianças de cinco a 11 anos, por exemplo, só dois laboratórios conseguiram ver os dados que mostram se a vacina é segura, se não determina reações adversas de monta ou irreversíveis, e também se é eficaz – porque efetividade você vai ver com o tempo também. Viu-se que a vacina mostra eficácia acima de 80%, quer dizer, as crianças que são vacinadas não sofrem doenças graves, não têm sintomas graves. Não temos ainda nenhuma vacina que ofereça prevenção da infecção, mas todas as vacinas de que nós dispomos previnem sintomas graves. Então, é importante sim vacinar as crianças. Porque, com a alta cobertura dos idosos e dos adultos, temos visto casos nas crianças, porque elas estão desprotegidas. É preciso também mais esforço para vacinar adolescentes, com as primeira e segunda doses, e a dose de reforço para os adultos precisa ser reforçada. Mas nessa população a taxa de infecção caiu, os números de casos graves estão baixos e os números de mortes também caíram bastante. Mas o vírus está presente ainda. É necessário diminuir a circulação e transmissão do vírus, por isso é necessário vacinar também as crianças.
Mas, no caso da Covid-19, especificamente, o fato de as crianças apresentarem casos menos graves, e o número de mortes ser menor faz com que muita gente relativize inclusive a necessidade de vacinar as crianças…
Na população em geral, não só entre as crianças, quem estava vacinada, quem recebeu a dose de reforço e tudo mais, se se contamina, tem sintomas mais leves. Então, é importante vacinar as crianças para também evitar a disseminação do vírus para toda a população, não só para proteção das crianças. É claro que desde o início a gente sabia que na Covid-19 a criança tem menos reações graves, mas tem centenas de mortes de crianças. Mortes que são evitáveis com vacinação. É muito importante que se vacinem as crianças.
Todos os aspectos que nós temos são favoráveis à vacinação
A maior parte das doenças imunopreveníveis, aquelas para as quais existe vacina no calendário do PNI, são vistas como menos danosas, sem grandes riscos à saúde, com exceção, talvez, da poliomielite. Isso é verdade?
Eu falei logo no início que a vacinação previne doenças que, se não causarem morte, podem determinar sequelas importantes. Por exemplo, pessoas com poliomielite que não conseguem caminhar. As sequelas que o sarampo pode causar, como surdez, são terríveis, e ele causa morte também. Nós conseguimos eliminar o sarampo em 2016, mas em 2018 voltou, tivemos dez mil e tantos casos. Em 2019 foram vinte mil e tantos casos, em 2020 caiu, em 2021 caiu um pouco, mas com mortes. São mortes evitáveis. E aqueles que ficaram doentes podem ficar com sequela. É necessário considerar que as vacinações têm valores intangíveis por proporcionar melhor qualidade de vida da população. É uma população que deixa de ter sofrimento, deixa de ter dores, deixa de ter custos adicionais com hospitalização. E melhora integralmente a qualidade de vida. Não tem como discutir: todos os aspectos que nós temos são favoráveis à vacinação. Ser contra a vacinação é ser contra a vida. Se você deixa de vacinar não só está deixando a criança vulnerável, mas também está deixando um ponto que pode disseminar doença para os outros, para a sociedade.
Tem que vacinar e proteger a população para não ter casos de poliomielite no país outra vez
O sr. falou do sarampo, mas a poliomielite foi eliminada do país há muito tempo e agora corremos o risco de vê-la voltar…
Há mais de 30 anos nós não temos casos de poliomielite. E recebemos também o certificado de eliminação da poliomielite, com campanhas nacionais de vacinação que tivemos no início dos anos 1980, com mobilização de toda a sociedade brasileira. Toda a sociedade brasileira se mobilizou com milhares de voluntários para vacinar as crianças. Noventa e cinco por cento da população suscetível de cinco anos para baixo foi imunizada. Nós conseguimos eliminar. Mas agora estamos numa situação bastante difícil, porque a vacinação da poliomielite vem caindo nos últimos cinco anos. Nos últimos anos, o Plano Nacional de Vacinação recomenda três aplicações de vacina nas crianças, mas vacina inativada, de vírus morto, para não disseminar o vírus no meio ambiente. Porque hoje no mundo são pouquíssimos casos de poliomielite determinado por vírus selvagem, e tem uma dúzia de casos causada por vírus derivado de vacinas. Isso acontece porque, em populações de baixa cobertura vacinal, quando você dá a vacina de vírus vivos atenuados tipo Sabin, a criança [que recebe a vacina] é imunizada, mas elimina o vírus no meio ambiente e esse vírus eliminado no meio ambiente infecta outras crianças suscetíveis. Em três, quatro, cinco passagens, o vírus faz mutação. Por isso já se está preconizando que, em vez de três vacinas inativadas da poliomielite, se tome quatro injeções de vacina inativada, porque a quarta dose ainda hoje é de vírus vivos tipos I e III, não se vacina mais com o tipo II porque já há anos o mundo não vê nenhum caso de poliomielite causada por ele. Agora, apenas para lembrar, Israel, que é um país supervacinado, teve um caso do tipo III de poliomielite recentemente. É para todo mundo ficar alerta. Tem que vacinar e proteger a população para não ter casos de poliomielite no país outra vez. Por isso a campanha de poliomielite que está sendo preconizada no Ministério da Saúde tem que dar resultado. As últimas campanhas que nós tivemos de multivacinação não alcançaram o resultado esperado, a cobertura foi muito baixa. Então você vai perguntar: ‘Por que nós estamos com essa cobertura tão baixa, se o governo coloca a vacina disponível, de graça?’. Por que a população não vai vacinar?
Por quê?
Um dos motivos é que o PNI é vítima do próprio sucesso. Porque a população não vê mais nenhum surto de sarampo, meningite ou coisa assim, então não leva para vacinar porque acha que está tudo controlado. Está controlado mas não está livre, o agente [da doença] continua por aí. Para a gente ter certeza de que não vai ter nenhum surto mais, nenhum caso, tem que vacinar. A segunda questão tem a ver com a dificuldade de acesso da população e com a falta de informação. É preciso levar para o interior a informação, a população tem que ser sensibilizada. Você não pode colocar só a informação de que tal dia vai vacinar, sem explicar por que, sem sensibilizar e motivar a população. Tem que fortalecer todo o sistema de vigilância também, para detectar qualquer caso da doença que surgir. E [a baixa cobertura vacinal hoje] também tem a ver com a complexidade do calendário nacional de vacinação: tem muitas vacinas e as mães hoje também têm que trabalhar, têm seus problemas de agenda… Deveria ter uma forma de oferecer à população a vacina de porta em porta nessas regiões mais remotas.
Então, tem uma série de questões que a gente já tem que trabalhar. E é isso que nós estamos fazendo com esse projeto de Reconquista de Altas Coberturas. Nós estamos trabalhando no município, lá no interior. Fomos para o Amapá, inclusive porque nós temos projetos de pesquisa clínica já feitos lá, e conhecemos todo o pessoal, os profissionais da secretaria de saúde em alguns municípios. Também fomos à Paraíba. Temos apoio e participação direta do PNI com a Secretaria de Vigilância em Saúde, SVS, e da Sociedade Brasileira de Imunizações, Sociedade Brasileira de Pediatria, Conass [Conselho Nacional dos Secretários de Saúde] e Conasems [Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde]. Temos discutido direto com eles sobre isso tudo. Esse é um projeto muito importante para se conseguir a volta de altas coberturas vacinais.
Esses profissionais que estão lá na ponta são os verdadeiros batalhadores, são os verdadeiros combatentes para buscar a alta cobertura
O primeiro ponto entre os objetivos específicos do projeto de Reconquista das Coberturas Vacinais fala na importância de se garantir financiamento. Queria que o sr. falasse um pouquinho sobre isso: vocês identificam que a falta de recursos, pelo menos nos lugares mais remotos, é um dos motivos da queda de cobertura? O que precisa ser fortalecido?
Entre vários outros, esse também é um dos problemas. Por isso a primeira ação foi preparar, junto com eles, um plano de ação de cada município. Estivemos em reunião com coordenadores de imunização e de atenção primária de cada município, coordenador do PNI de cada município, e eles prepararam um plano de ação. Tem municípios que estão melhores, mas outros estão com infraestrutura muito carente e precisam de apoio nessa área. Estamos trabalhando com esse plano de ação junto com o Ministério da Saúde, junto com o PNI. E, tendo esse plano de ação aprovado junto ao PNI, junto ao governo central, certamente teremos mecanismos e formas de trabalhar junto com esses municípios. São os municípios que vão realizar o trabalho, por isso o nosso esforço para mostrar o protagonismo desse pessoal que está lá na ponta. Esses profissionais que estão lá na ponta são os verdadeiros batalhadores, são os verdadeiros combatentes para buscar a alta cobertura. Com esse plano de ação, a gente vai conseguir reverter essa situação. E, revertendo essa situação nesses 41 municípios, nós temos a esperança de que haverá sensibilização de outros municípios brasileiros para buscar a reversão das coberturas vacinais.
Há centenas de trabalhos publicados, eu mesmo botei alguns trabalhos meus em conferência, andei falando sobre baixa cobertura, da importância de reverter essa situação. Mas é preciso meter a mão na massa, é necessário ir lá na ponta e conversar com o pessoal, ver o que está faltando, do que estão precisando, levar informação, capacitar o pessoal. São eles que têm que fazer porque serão os verdadeiros protagonistas dessa reversão de baixa cobertura.
Uma vez devidamente aprovados esses planos de ação, que já foram construídos em parceria, o programa prevê uma linha de financiamento para fortalecer do ponto de vista financeiro as ações naqueles municípios?
Claro, tem que ter contrapartida. Tem toda uma sistemática em que os governos federal, estadual e municipal trabalham as questões. Tem que ter um ‘de acordo’ do governo estadual e do governo municipal. Porque não queremos fazer uma atividade que a gente sai e as baixas coberturas continuam, nós queremos um projeto que seja autossustentável. A gente já teve altas coberturas vacinais aqui por anos, dez anos atrás nós tivemos sempre altas coberturas, queremos retomar essas altas coberturas na sustentabilidade da vacinação.
Convencer que a vacinação previne a doença é uma atividade de saúde pública
O projeto enfoca bastante a interação do PNI com a atenção básica. Pegando a experiência do que vocês já fizeram, o que se tem pensado como mudança necessária na atenção básica nos diversos municípios para que ela contribua mais para o aumento da coberturavacinal?
A gente sentiu que é preciso ter mais informação para todos sobre a importância da vacinação. O sucesso das vacinações é um dos grandes inimigos da baixa cobertura porque todo mundo acha que já foi feito, que não precisa convencer a população e todos que estão envolvidos. Tem questões políticas também envolvidas, mas convencer que a vacinação previne a doença é uma atividade de saúde pública, interessa a toda a sociedade. Levar essa mensagem para todos é uma das formas que a gente pretende fazer. E isso é bastante complexo porque é um momento difícil que estamos passando: tem a pandemia, tem a questão econômica, cada um está tendo problemas, muita gente sem emprego, enfim, há outras prioridades. Então, é necessário ter toda a sociedade convencida e mobilizada para reverter essa baixa cobertura. E esse projeto está mobilizando toda a Fiocruz, todas as unidades técnicas da Fiocruz estão sendo contatadas para participarem desse momento, porque esse movimento tem que ser nacional. A Organização Mundial da Saúde em 2019 considerou as baixas coberturas vacinais como um dos dez maiores problemas de saúde pública do mundo, para você ver que realmente é uma coisa importante. Precisamos da colaboração de todo mundo.
*Esta entrevista foi produzida para subsidiar a matéria de capa da Revista Poli nº 83, sobre queda das coberturas vacinais
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 16/05/2022
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