“Se você vai discutir a ordem metropolitana, é preciso discutir toda a complexidade das representações culturais, políticas e econômicas na dimensão de uma metrópole”, afirma o sociólogo.
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As disputas políticas e sociais fazem com que a
metrópole “se torne um campo permanente de conflitos”, pontua
José Claudio Alves, que há anos estuda as tensões urbanas e as intervenções policiais nas favelas do Rio de Janeiro. Para ele, na organização da metrópole, a polícia ocupa um lugar central enquanto organização “preparada, instruída, qualificada e, por isso mesmo,
militarizada para intervir unilateralmente na proteção, na segurança, na prevenção, na garantia da ordem de determinados grupos”. A ordem da organização social, reitera, “não se estabelece a partir da metrópole; ao contrário, é uma ordem estabelecida a partir dos que dominam os interesses econômicos e políticos dentro da metrópole”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à
IHU On-Line, o professor comenta a atual situação das
Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs instaladas em algumas favelas cariocas, e enfatiza que os policiais foram “transformados” pelo “modus operandi da estrutura policial anterior”. Para ele, “isso explica por que as Unidades Pacificadoras são o atual fracasso de uma política de segurança. Achou-se que meramente colocando pessoas com uma formação mínima dentro dessa estrutura toda, seria possível alterar a estrutura. Mas, pelo contrário, essa estrutura toda engoliu a estrutura de Polícia Pacificadora, reproduziu a lógica da repressão”.
Entre os desafios das metrópoles brasileiras, Alves menciona a necessidade de “quebrar a estrutura de segregação, a clivagem ideológica, política e econômica sobre determinados estratos sociais” e “(re)estabelecer um diálogo com esta outra face da sociedade”.
José Claudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e membro do ISER Assessoria.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - Qual é o papel da polícia na metrópole?
José Claudio Alves - É uma perspectiva bem mais complexa daquela que possamos imaginar, já que na metrópole se dá a relação entre diferentes grupos e espaços sociais, uma relação espacial com dimensões muito mais amplas, com um montante de pessoas aglutinadas em áreas específicas,
espaços de segregação, espaços de hipervalorização por parte do capital, áreas controladas com interesses de manutenção de setores de poder, poder político, inclusive. Tudo isso faz com que a metrópole se torne um campo permanente de conflitos dos mais diferentes segmentos, das mais diferentes forças que estão ali disputando essa dimensão.
O papel que a polícia cumpre hoje é praticamente unilateral, é unidimensional, se estabelece a partir de uma lógica militarizada, que é a que predomina na sua formação. Teoricamente, ela está ali para garantir a ordem, a segurança, mas na verdade trata-se de um papel do Estado de garantir, sim, interesses em determinadas estruturas, determinados segmentos, determinados espaços sociais, econômicos e políticos que estão presentes ali.
Tipos de violência
Então, essa polícia, de forma alguma, cumpre algum papel mais comum ou mais amplamente falando de garantia, de proteção e, sobretudo, de preservação da vida. Pelo contrário, ela tem sido uma polícia preparada, instruída, qualificada e, por isso mesmo,
militarizada para intervir unilateralmente na proteção, na segurança, na prevenção, na garantia da ordem de determinados grupos. Não é uma polícia capaz de compreender quem é o outro, quem ela combate. Isso, normalmente, tem se confundido ao longo da história da polícia: os fatos mais recentes de
confronto da polícia com manifestantes,
como professores, estudantes ou outros segmentos de classe média que se manifestaram mais recentemente, levaram também a uma maior percepção dessa forma unilateral e dessas dimensões muito frágeis que a polícia possui na sua práxis. E ela é uma instituição de tal maneira blindada, fechada e organizada, que simplesmente não participa de nenhuma outra forma de reflexão, permanecendo estruturada dessa maneira sem se alterar. Em relação à população de classe média, branca, em espaços urbanos privilegiados, a polícia usa gás, bala de borracha e bombas de efeito moral, mas em espaços segregados, com população pobre, de pessoas negras, de periferias e favelas, há uma
violência descomunal, que tem gerado neste país os índices mais altos de homicídio no mundo.
O Brasil registra hoje
índices de violência superiores a várias áreas que têm conflito aberto em forma de guerra. Então, essa polícia não serve mais, não tem a menor capacidade de alterar-se a si mesma. A polícia vive hoje essa grande contradição: não é capaz de fazer essa reflexão, e por conta disso se transforma em um dos maiores empecilhos, dos maiores problemas, a meu ver, de uma compreensão mais plural, mais diversificada, mais complexa, buscando uma maior igualdade e participação dentro das cidades. Sobretudo porque o papel do Estado no Brasil é cada vez mais marcadamente a favor de grandes grupos, de grandes estruturas, sobretudo os financiadores de campanha, que são aqueles que irão bancar o padrão eleitoral atual e que terão seus porta-vozes ouvidos dentro do aparelho do Estado e a quem a polícia irá servir.
"O papel que a polícia cumpre hoje é praticamente unilateral, é unidimensional, se estabelece a partir de uma lógica militarizada"
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IHU On-Line - No que consiste essa normatização da polícia?
José Claudio Alves – Essa normatização é direcionada para os modelos de ganho e de dominação dentro desses espaços. Então, é possível se ter a atuação da polícia, por exemplo, para arrancar uma população específica de uma área de preservação ambiental onde a legislação irá dizer que aquela comunidade não pode se estabelecer ali e, ao mesmo tempo, essa mesma legislação irá dizer que um BRT — que é modelo de transporte coletivo — pode passar exatamente sobre aquela área e causar o mesmo dano sem que haja alguma intervenção policial ou coisa parecida. A polícia, no fundo, serve a uma estrutura jurídica que está baseada e voltada para o favorecimento daqueles que detêm o capital. Então, essa polícia atua, dentro do espaço urbano, no reconhecimento, na imposição e na valorização desses que têm a estrutura jurídica em suas mãos, os quais controlam a estrutura jurídica. Logo, ela não é uma polícia que visa ao bem comum; ela vê a metrópole na sua complexidade ou ela estabelece uma outra relação de ouvir, dialogar ou estabelecer algum tipo de interlocução com os segmentos sociais diferenciados daqueles para quem eles trabalham.
Os policiais cumprem ordem e isso faz parte também da
lógica militarizada, onde há uma hierarquização imensa. Esses espaços hierarquizados se impõem e a polícia se torna um cumpridor de ordens. Pouco importa se ela é a
polícia que mais mata, portanto é homicida, e também é suicida, porque é a que mais morre. Pouco importam, inclusive, os efeitos que essa lógica tem até mesmo sobre o próprio policial. O que acontece mesmo é a manutenção desse modelo de uma ordem específica para grupos específicos.
Ordem metropolitana
Se você vai discutir a ordem metropolitana, é preciso discutir toda a complexidade das representações culturais, políticas, econômicas na dimensão de uma metrópole. Não é isso que é feito. Existe uma normatização a partir do jurídico, do legal, do processo jurídico em si mesmo, e a polícia simplesmente cumpre um papel nessa estrutura toda. Não estou isentando a polícia, só estou mostrando o lugar que ela ocupa e, portanto, das próprias limitações e mesmo da própria afirmação positiva do seu papel extremamente repressivo, agressivo e violento, por assim dizer, em relação aos que se diferenciam dentro do espaço metropolitano da lógica dominante daquele espaço. É assim que vejo essa estrutura policial. Há uma ordem, sim, mas não é uma ordem que se estabelece a partir da metrópole; ao contrário, é uma ordem estabelecida a partir dos que dominam os interesses econômicos e políticos dentro de uma metrópole.
IHU On-Line – Em que consiste o conceito de militarização da polícia? Quais as implicações da militarização?
José Claudio Alves – Essa lógica ou essa concepção militarizada da estrutura policial assumiu as proporções atuais a partir do
Golpe Civil-Militar de 1964 — claro que anteriormente houve também essa mesma construção, estamos falando de mais de 200 anos de polícia no Brasil, e desde seu início creio que essa
concepção militarizada esteve sempre presente. Então, na vigência desse modelo, essa polícia foi transformada, sim, em um braço ostensivo, em um braço cooperativo e para o funcionamento da própria estrutura da Ditadura Militar, para o seu controle. É um braço armado em permanente monitoramento, como um braço ostensivo que estará atuando permanentemente — essa era a lógica da ditadura. E isso permanece até os dias de hoje, só que, ao invés da guerra à subversão, da guerra à revolução, da guerra aos grupos clandestinos armados, essa polícia agora assume uma mesma lógica de guerra junto ao que se chama de “
o crime organizado”. Grosso modo, sobretudo, trata-se da estrutura do tráfico de drogas.
"A polícia, no fundo, serve a uma estrutura jurídica que está baseada e voltada para o favorecimento daqueles que detêm o capital"
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Nessa concepção de guerra ao tráfico, o que se tem é uma estrutura cada vez mais fortalecida em termos de equipamentos, veículos, armamentos e comunicação. Há uma estrutura que avança progressivamente nessas áreas em uma concepção de que o inimigo terá que ser vencido em uma lógica de guerra. A militarização caminha nessa direção, a militarização é a estrutura preparada para uma guerra; ela existe como o melhor modelo milenar das estruturas que foram sendo criadas em torno de processos de guerra. Ele funciona, basicamente, prioritariamente, em uma estrutura de guerra. E fazendo isso há um aumento crescente das operações onde a polícia tem que sair vitoriosa quando se confronta com o inimigo. Um confronto com o inimigo é determinante, é decisivo para todos, para a hierarquia, para os comandantes, para os praças, os soldados. O único alvo a ser alcançado é a vitória sobre o inimigo.
Indústria bélica e o processo de militarização
Essa vitória é determinante ainda para a indústria bélica; ela é fundamental para o estabelecimento desse modelo de segurança e de paz. Chamamos de
Pax Romana e também a Pax do Império atual estadunidense, a qual é garantida, sobretudo, pela dimensão que a
indústria bélica vai ter nessa estrutura. Mas ela serve tanto para a própria polícia, que estará atuando dessa forma militarizada, como também é determinante — e isso a indústria bélica compreende muito bem e todos nós compreendemos — para os inimigos, à medida que os instrumentos de militarização serão utilizados por eles também. Os inimigos não vão se
estabelecendo nesse campo de guerra meramente como passivos ao recebimento de uma estrutura militarizada, eles também vão se militarizar. Assim, as estruturas do crime hoje, sobretudo do tráfico de drogas, também terão um correlativo, que é a sua militarização a partir de armamentos oriundos da indústria bélica.
No fundo o que se tem hoje no Brasil são segmentos de classes populares, classes pobres, que compõem tanto a polícia quanto o tráfico de drogas, extremamente armados, em um processo de conflito chamado “Guerra do tráfico”, a partir do qual morrem milhares de pessoas anualmente em nome de uma pretensa segurança. O que se vive hoje é um permanente confronto e um descontrole, pois esta estrutura militarizada é incapaz de controlar, por exemplo, o tráfico de armas ou mesmo o tráfico de drogas, porque tanto um quanto o outro lida com capitais muito vultosos, nos quais a própria estrutura policial irá se inserir. Nesse sentido, a própria estrutura hierarquizada, militarizada, vive permanentemente em contato com esses capitais que se movimentam tanto pelo tráfico de drogas como pelo tráfico de armas, roubo, sequestros, o próprio jogo do bicho. Tudo isso forma um montante muito grande de dinheiro, sobretudo em cidades metropolitanas como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo.
Atualmente se trabalha com dimensões que chegam à soma dos bilhões de reais, ou seja, não é uma quantia pequena de dinheiro que está por trás disso. Logo, toda essa estrutura militarizada, montada, que é para nós uma expressão da garantia da segurança, nada mais é do que uma expressão muito mais articulada e muito mais complexa da própria presença do Estado — da lei, da justiça — nessas estruturas mais amplas do tráfico de drogas, do tráfico de armas, do jogo do bicho, da contravenção, movimentando milhões de reais.
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"É preciso uma reconfiguração dessa estrutura policial por dentro"
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Corrupção policial
Então, para nós, essa expressão militarizada é falsa, é uma farsa, porque no fundo não expressa os interesses de coletividade como um todo na sua complexidade, mas expressa cada vez mais os interesses de alguns segmentos que controlam essa estrutura militarizada. Por exemplo, no Rio de Janeiro, de seis anos para cá, todo o ‘arrego’, todo o suborno, o recurso e a grana obtida na corrupção policial se concentram nas mãos dos comandantes. Os próprios praças, os policiais já não conseguem mais ganhar dinheiro a partir daí como ganhavam antes. Então, esses próprios policiais se rearranjam em outras estruturas do crime organizado, sobretudo as milícias, que já são uma
estrutura própria só dos policiais e dos praças menores. A estrutura dos comandantes vive desse recurso obtido no ‘arrego’, no suborno, na corrupção direta que o policial exerce.
IHU On-Line – O que seria uma proposta oposta a essa polícia militarizada? A polícia pacificadora seria uma alternativa? Como o senhor avalia, nesse sentido, os casos de violência que ocorrem nas favelas pacificadas, por exemplo, no Rio de Janeiro?
José Claudio Alves – Uma polícia que não fosse militarizada seria uma polícia na qual o policial tivesse outro papel, e não um papel de ser meramente subordinado a uma hierarquia, mas um papel de diálogo dele com ele mesmo, de compreensão da sua intervenção, do seu modelo, de reflexão sobre onde ele está, de com quais grupos ele lida, para que ele tivesse sua capacidade de decisão sendo respeitada. Assim, ele seria de fato sujeito e não simplesmente alguém que obedece, alguém subordinado, alguém que se submete a uma estrutura hierarquizada de comando. Saindo dessa estrutura, ele assumiria um papel muito mais protagonista, reflexivo, amadurecido, com capacidade de discussão, de compreensão e de diálogo, do que meramente o de reprodutor de uma estrutura militarizada que tem que se perpetuar e se reproduzir e seguir da forma como ela segue hoje.
Fracasso das UPPs
Então se quebraria praticamente a espinha dorsal dessa dimensão. Isso significa que não haveria mais o policial subordinado, mas decisões tomadas institucionalmente a partir daqueles que operam e que atuam diretamente e com uma concepção dialogal com a sociedade. Claro que para fazer essa transição é muito mais complexo. As
estruturas hoje militarizadas criaram seu modus operandi, a sua cultura de funcionamento. Não adianta colocar 1/3 da polícia do Rio de Janeiro trabalhando em
UPPs e
achar que esse 1/3 irá conseguir transformar o resto dos 2/3; isso não ocorre, não é assim que funciona e, inclusive, aconteceu o contrário. O 1/3 de policiais que estão hoje nas UPPs foi transformado na mesma lógica da cultura, do modus operandi da estrutura policial anterior. Isso explica por que as
Unidades Pacificadoras são o atual fracasso de uma política de segurança. Achou-se que meramente colocando pessoas com uma formação mínima dentro dessa estrutura toda, seria possível alterar a estrutura. Mas, pelo contrário, essa estrutura toda engoliu a estrutura de
Polícia Pacificadora, reproduziu a lógica da repressão, o não diálogo com a comunidade, a crueldade e a violência em cima dessas populações, o desaparecimento crescente de pessoas nessas áreas, a composição dessa polícia pacificadora com outras facções do tráfico ou mesmo com milicianos. Não houve uma alteração significativa, não houve
UPP Social — isso nunca ocorreu, é uma balela —, nunca houve a escuta de fato das demandas que essas populações vivem, e a polícia foi colocada em uma espécie de “policização” da política social, como se fôssemos capazes de fazer isso.
Mas o policial é incapaz de refletir sobre o seu papel dentro da polícia; ele cumpre ordens na estrutura militarizada. Como você vai pedir a alguém que cumpre ordens ou que segue dentro de uma cultura ou de um modus operandi militarizado, que ele agora tenha uma dimensão de diálogo e de comprometimento com uma reflexão de uma coletividade nas suas contradições e nos seus problemas seculares que nunca foram resolvidos? É incapaz de fazer isso; não pode se exigir dele essa dimensão.
Estrutura policial
Então, é preciso uma reconfiguração dessa estrutura policial por dentro. O próprio policial vai perceber isso, ele que recebe pouco, que é militarizado em uma lógica hierárquica, que não tem capacidade de diálogo e de reflexão, que não tem autonomia de decisão, que é reprimido em qualquer demanda que faça, ele que não pode se organizar politicamente dentro da estrutura porque é proibido. Esse policial é o primeiro a querer uma transformação da estrutura militarizada da polícia. Não adianta jogar o policial em uma área ocupada por UPPs e achar que ele irá mudar a lógica de funcionamento. Ao contrário, ele irá reproduzir o modelo, porque o modelo é muito mais forte, muito mais amplo. Transformar essa estrutura em uma estrutura de diálogo com comunidades pobres é algo que não ocorre. Há a exceção de um ou outro comandante, os quais acabam se transformando em intelectuais.
"Existe uma normatização a partir do jurídico, do legal, do processo jurídico em si mesmo, e a polícia simplesmente cumpre um papel nessa estrutura toda"
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A
composição social da polícia já é formada por pessoas que vêm dos estratos sociais mais baixos. Daí você entende por que inúmeros policiais vão progressivamente se envolver com o próprio crime organizado e tomar a frente dessa organização do crime, porque isso se transforma na possibilidade de ele salvar-se a si mesmo, “de ganhar o seu” e de se estruturar economicamente de forma melhor. Esse é o último recurso para o qual ele está vendo possibilidade: ele é um PM com arma e distintivo na mão, capaz agora de ganhar dinheiro por fora da estrutura oficial. É essa a lógica que hoje predomina. É necessário
quebrar toda essa estrutura e reconfigurá-la.
Eu sei que você pode me perguntar se isso é possível. Eu não saberia te dizer de fato. O que tenho visto até hoje é que não: até hoje essa estrutura se perpetua, se reproduz, não quer ser alterada, quer manter seus interesses. É muito melhor estar em uma estrutura repressiva de guerra ao tráfico, em que se possa receber do Comando Vermelho e doTerceiro Comando milhares de reais a cada semana com a manutenção do tráfico — porque o tráfico gera esse dinheiro —, do que acabar com essa estrutura e jogar o próprio policial para uma dimensão que nem ele mesmo sabe qual é e para a qual ele não tem sequer capacidade reflexiva.
IHU On-Line – Por que crimes como assaltos, furtos e roubos apavoram tanto quando chegam a áreas mais nobres das metrópoles? O que significa a chegada desses crimes nesses locais?
José Claudio Alves – O que sabemos é que são áreas muito mais monitoradas, de muito maior interesse por parte de grupos dominantes que controlam tanto a economia como o poder político nesses locais. Há núcleos muito mais ricos, interessantes e valorizados onde a reprodução do capital e dos seus ganhos é projetada de forma muito maior do que nas outras áreas da metrópole. Logo, qualquer ato, qualquer gesto, qualquer dimensão dessa violência que atinja essas áreas ganhará uma divulgação midiática absurda e vai se reproduzindo, e começa a estabelecer um olhar dessa mídia sobre esses atos que normalmente já ocorriam anteriormente.
Normalmente agora há uma lógica de
criminalização dos menores, então se pegam esses casos de menores e se dá uma projeção midiática. Claro que se você for estudar os casos de menores que cometeram algum atendado contra a vida de pessoas, vai descobrir que, do total de menores infratores criminalizados por práticas desse tipo,
o percentual é de 0,013%, ou seja, algo inexpressivo. Mas dentro de uma lógica metropolitana, de uma lógica de interesses de grupos específicos de determinadas áreas, em uma lógica do debate crescente sobre redução da maioridade penal, matérias desse tipo vão ganhar vulto, vão vender e vão se transformar em grandes propagadoras de mentalidade, sobretudo de uma classe média que se vê também refém dessas reflexões e em pânico. É uma classe média que não tem acesso à informação, que depende também do acesso à informação que a mídia dá e que não tem outros mecanismos de reflexão, de pensamento, de questionamento, de debate. Ela está aprisionada nessa
clausura midiática totalitária que virou também o mundo metropolitano e acompanha essa onda midiática, consome e projeta mais ainda essa onda, criando assim um movimento metropolitano como este que está no Rio de Janeiro agora.
Essa onda de pânico vai criminalizar mais ainda e isso vai desaguar, com certeza, em modelos mais punitivos, agressivos e violentos que não vão, de forma alguma, favorecer a discussão sobre a segurança da metrópole, mas reforçar mais ainda a lógica militarizada, a ocupação militarizada de áreas e a estrutura militarizada que nós temos hoje, praticada tanto pela polícia quanto por grupos criminosos, como grupos de traficantes e de tráfico de armas.
"Não houve uma alteração significativa, não houve UPP Social, nunca houve a escuta de fato das demandas que essas populações vivem, e a polícia foi colocada em uma espécie de “policização” da política social, como se fôssemos capazes de fazer isso"
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IHU On-Line – Quais os maiores desafios das metrópoles brasileiras no quesito segurança pública?
José Claudio Alves – O maior desafio é, dentro da metrópole,
quebrar a estrutura de segregação, a clivagem ideológica, política e econômica sobre determinados estratos sociais, e estabelecer os fluxos culturais, sociais e econômicos desses grupos segregados, estigmatizados, enclausurados e praticamente, totalitariamente, mantidos dentro da metrópole como grupos perigosos ou como segmentos de risco. Para fazer isso teria de se fazer de fato uma revolução política, econômica e social — revolução no sentido literal da palavra. Teria de revolver os segmentos de baixo e colocá-los em cima, o que não é o caso na história brasileira atual. Atualmente não temos nenhum
processo revolucionário, até porque quem tem armas, que é o tráfico e a polícia, não está interessado em revolução, mas na manutenção do seu ganho de dinheiro a partir do crime e dos vínculos que esse crime tem com o capital como um todo.
Mas o maior desafio é encontrar uma forma de escapar de uma lógica segregada, estigmatizada, de uma dimensão fechada, preconceituosa e discriminatória em cima de populações pobres favelizadas e periféricas, estabelecer o fluxo, o diálogo, o reconhecimento desses setores e, a partir daí, estabelecer a capacidade deles de determinar também o caminho dos seus espaços, das suas vidas, da sua estrutura econômica e política, e saírem dessa dimensão. Essa, para mim, é a maior dificuldade.
Manifestações
Não adianta grandes
manifestações da classe média mostrando seu dissabor por agora estarem negativadas no crédito, não terem políticas públicas adequadas de mobilidade, de habitação, saúde, educação, ou seja lá qual for. Não adianta somente isso; isso é importante dentro da metrópole, mas outros segmentos muito mais vultosos e muito mais determinantes são absolutamente segregados e silenciados diariamente por repressões diárias, violentas e cruéis feitas pela estrutura da polícia e a estrutura da segurança pública, e eles não têm espaço de fato para se manifestarem.
A meu ver, ao romper esse muro invisível dessa maior câmara de gás sem gás do mundo, desse maior campo de concentração e de extermínio do mundo, sem arame farpado, que somos nós, romper com essas estruturas e (re)estabelecer de fato — creio que nunca foi estabelecido de fato — um diálogo com esta outra face da sociedade, é o grande dilema, é o grande desafio para qualquer metrópole hoje no Brasil.
Por João Vitor Santos e Patricia Fachin
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos