O horror em um retrato
O mundo precisou da foto de um garoto sírio morto para se comover com a tragédia dos refugiados na Europa. Aylan não foi salvo. Será que ele pode nos salvar?
FLÁVIA TAVARES 05/09/2015 - 00h19 - Atualizado 05/09/2015 00h27
Fonte : Revista Época
Aylan está de bruços. Parece repousar, entregue à gravidade, à exaustão. A beirada das águas do Mar Egeu banha seu corpo miúdo. Inanimado. Morto. Aylan viveu seus 3 anos em fuga. Da guerra, da violência e da fome na Síria. Encontrou um descanso precoce na orla próxima a Bordum, na Turquia. Enquanto jaz, com a serenidade trágica de uma criança morta, é contemplado por um homem. De calça marrom, pesados coturnos pretos, um colete oficial e uma boina verde-exército, o adulto confronta a bermudinha infantil. O esguio guarda turco está em posição angular, quase em rígidos 90 graus, com o frágil cadáver de Aylan. O mar emoldura a cena sinistra – carregando tanto a metáfora da esperança de uma travessia para uma vida melhor quanto a dos perigos de um mergulho no infinito. A imagem do pequeno Aylan, sem pátria e sem pulso, comoveu os que permaneciam insensíveis à calamidade que vivem os refugiados de países despedaçados por conflitos no Oriente Médio e na África. Os indesejados fugitivos, que escapam de suas casas por medo, mas que são temidos por quem se recusa a acolhê-los.
Por que a humanidade precisa de uma fotografia como a de Aylan para se lembrar justamente de sua humanidade? Na sequência, o guarda turco ergue o corpinho de Aylan, com uma consternação e um constrangimento que deviam ser de todos nós. Nos últimos meses, uma enormidade de fotos da catástrofe invadiu as agências de notícias. Mas foi a de Aylan, um dos 12 mortos em mais um naufrágio no mar que liga a Turquia à Grécia, que estampou as capas de portais e jornais pelo mundo. E é a foto de Aylan que tem o potencial de transformar a resposta dos países europeus ao apelo dos refugiados. A começar por parar de tratar a crise como um refluxo de migrantes. Não se trata de jovens solteiros que atravessam fronteiras em busca de dinheiro, de trabalho. Aylan e sua família, incluindo seu irmão de 5 anos, não estavam procurando “melhores oportunidades” na União Europeia. Seus pais não buscavam um emprego decente. Estavam buscando sobreviver. Viver. Com exceção de seu pai, que sobreviveu, todos pereceram no mar. Essa percepção é uma das que podem ser convertidas com o túmulo de Aylan.
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Outros retratos do sofrimento dos refugiados foram pontuando a narrativa dessa tragédia. Há o registro do pai aos prantos, agarrado aos filhos, em mais um barco que se atirou na turbulenta jornada para a Grécia, como o de Aylan. Ou de famílias atravessando, com cuidado e terror, cercas de arame farpado para entrar na Hungria, um dos países europeus que mais resistem em dar abrigo a esses exilados. Mesmo a força militar foi usada para detê-los. Como naquela outra imagem que mostra um policial embarreirando a passagem de meninos e meninas desolados. A história desumana dos apátridas vem sendo descrita e retratada com o vigor que merece. Ainda assim, seguíamos anestesiados. Resignados com um destino que não nos pertencia, alheios ao sofrimento tão distante e incompreensível. No caso dos europeus, que estão próximos e envolvidos, a indiferença era uma proteção: não reconhecer a dimensão trágica da viagem dos indesejados é não precisar se responsabilizar por eles.
A perturbação causada pela cena do pequeno Aylan entregue na praia é análoga ao abalo provocado por outras imagens icônicas do tormento humano. A foto de Aylan, divulgada inicialmente pela agência turca DHA, remete ao horror da criança sudanesa, faminta, observada por um abutre. Também reverbera a solidão do estudante na Praça da Paz Celestial, enfrentando o canhão de guerra. Ou o desalento do corpo caindo do World Trade Center, instantes depois do choque dos aviões no 11 de setembro. Mas a comparação mais imediata é com a foto da garota Kim Phuc, em 1972. A menina fora vítima, segundos antes, de uma bomba de napalm, na Guerra do Vietnã. Ela tinha 9 anos. Berrava “Muito quente! Muito quente!”, enquanto sua pele se desprendia de seus ossos. Aquela imagem, a sétima no negativo do fotógrafo Nick Ut, foi publicada por jornais de todo o planeta. Quem ainda estava incrédulo sobre a crueldade que aquele conflito impunha a inocentes não tinha como escapar de uma evidência tão contumaz. Os protestos contra a guerra se intensificaram e, seis meses depois, os Estados Unidos se retiravam do Vietnã. Se a foto não foi responsável, sozinha, pelo fim da guerra, tornou-se um de seus símbolos mais nefastos. Todas essas fotos nos estraçalham porque individualizam a tragédia. Colocam sobre os ombros frágeis de um personagem a representação de todos que foram vítimas do mesmo infortúnio.
Outros retratos do sofrimento dos refugiados foram pontuando a narrativa dessa tragédia. Há o registro do pai aos prantos, agarrado aos filhos, em mais um barco que se atirou na turbulenta jornada para a Grécia, como o de Aylan. Ou de famílias atravessando, com cuidado e terror, cercas de arame farpado para entrar na Hungria, um dos países europeus que mais resistem em dar abrigo a esses exilados. Mesmo a força militar foi usada para detê-los. Como naquela outra imagem que mostra um policial embarreirando a passagem de meninos e meninas desolados. A história desumana dos apátridas vem sendo descrita e retratada com o vigor que merece. Ainda assim, seguíamos anestesiados. Resignados com um destino que não nos pertencia, alheios ao sofrimento tão distante e incompreensível. No caso dos europeus, que estão próximos e envolvidos, a indiferença era uma proteção: não reconhecer a dimensão trágica da viagem dos indesejados é não precisar se responsabilizar por eles.
A perturbação causada pela cena do pequeno Aylan entregue na praia é análoga ao abalo provocado por outras imagens icônicas do tormento humano. A foto de Aylan, divulgada inicialmente pela agência turca DHA, remete ao horror da criança sudanesa, faminta, observada por um abutre. Também reverbera a solidão do estudante na Praça da Paz Celestial, enfrentando o canhão de guerra. Ou o desalento do corpo caindo do World Trade Center, instantes depois do choque dos aviões no 11 de setembro. Mas a comparação mais imediata é com a foto da garota Kim Phuc, em 1972. A menina fora vítima, segundos antes, de uma bomba de napalm, na Guerra do Vietnã. Ela tinha 9 anos. Berrava “Muito quente! Muito quente!”, enquanto sua pele se desprendia de seus ossos. Aquela imagem, a sétima no negativo do fotógrafo Nick Ut, foi publicada por jornais de todo o planeta. Quem ainda estava incrédulo sobre a crueldade que aquele conflito impunha a inocentes não tinha como escapar de uma evidência tão contumaz. Os protestos contra a guerra se intensificaram e, seis meses depois, os Estados Unidos se retiravam do Vietnã. Se a foto não foi responsável, sozinha, pelo fim da guerra, tornou-se um de seus símbolos mais nefastos. Todas essas fotos nos estraçalham porque individualizam a tragédia. Colocam sobre os ombros frágeis de um personagem a representação de todos que foram vítimas do mesmo infortúnio.
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A foto de Aylan vai além. O registro do martírio de uma criança é estarrecedor. Da morte de uma criança, porém, é insuportável. Talvez por isso a imagem de Aylan possa ser matriz de um movimento, enfim, mais humano em direção aos refugiados que desertam de uma indignidade e deparam com outra. O garotinho de 3 anos, que só conheceu a fuga e a rejeição como modo de vida, já inspirou alemães e finlandeses a oferecer suas casas a refugiados. Aylan não foi salvo, mas seu sacrifício e o registro em imagens de seu fim podem salvar muitos.
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