sábado, 31 de janeiro de 2015

SISTEMA CANTAREIRA.

Falta de chuvas não é única razão da crise do Sistema Cantareira

Publicado em janeiro 29, 2015 

Atual situação é um problema de governança, acentuado por questões climáticas e pela realidade socioambiental

Sistema Cantareira pode secar em quatro meses, caso as chuvas continuem abaixo da média. Foto: Divulgação/Sabesp

Pesquisa da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, avaliou, entre 2013 e 2014, a governança e o diálogo de saberes que envolvem o Sistema Cantareira, que capta e trata a água para o abastecimento de cerca de 8,8 milhões de pessoas da Grande São Paulo. O estudo de Micheli Kowalczuk Machado, que é mestre e doutora em Ecologia Aplicada, permitiu constatar que a atual situação do Sistema é um problema de governança, acentuado pelas questões climáticas e por sua realidade socioambiental. Falta de articulação e diálogo também contribuíram com o colapso do Sistema.
Atualmente, a outorga do Sistema Cantareira é da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), concedida em agosto de 2004 com o prazo de dez anos. Apesar de vencer em agosto de 2014, sua vigência foi prorrogada até 31 de outubro de 2015 (Resolução Conjunta ANA-DAEE no. 910, de 07 de junho de 2014). “É claro que a Sabesp tem enorme responsabilidade sobre esse Sistema, mas temos de considerar também a responsabilidade do governo, dos Conselhos Gestores das Unidades de Conservação, dos Comitês de Bacias Hidrográficas e da sociedade civil em geral. São todos atores que interferem diretamente na realidade do Sistema”, relata Micheli.
O Cantareira é um dos maiores sistemas de água do País e sua realidade socioambiental está envolvida com temas como gestão da água, conflitos de uso, conservação ambiental e disponibilidade hídrica. “Várias organizações e instituições que atuam no Cantareira, apesar de terem objetivos comuns, não interagem entre si”, conta.
Para além da falta de chuva
Segundo Micheli, as ações desenvolvidas geralmente estão relacionadas com obras de infraestrutura e saneamento, “isso quando elas acontecem”. Fatores como a vontade política; a demanda crescente pelo uso da água; a degradação ambiental dos mananciais; a expansão urbana desordenada; o desperdício no próprio Sistema e a falta de um real envolvimento e conhecimento da população acerca da realidade existente na área demonstram que não se trata somente de um problema de falta de chuvas.
Por essa razão, a pesquisadora decidiu avaliar como são e como devem ser a governança e o diálogo de saberes que envolvem o Sistema. A especialista em educação ambiental adotou como metodologia uma pesquisa qualitativa realizada em três fases: exploratória, trabalho no campo e análise dos resultados. Micheli se envolveu na pesquisa bibliográfica e na aplicação de questionários com perguntas abertas para os representantes de todos os 79 organismos consultivos e gestores presentes no Sistema Cantareira.
Depois, foram realizadas 18 entrevistas com representantes do Conselho da Área de Proteção Ambiental (APA) Fernão Dias, em Minas Gerais; Conselho Gestor Unificado das APAs Piracicaba/Juqueri-Mirim Área II, do Sistema Cantareira e da Represa Bairro da Usina, em São Paulo; e Comitê Federal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. Por fim, foi realizada a análise dos resultados, com apresentação de um mapa que demonstra a sobreposição das Unidades de Conservação e dos Comitês de Bacias Hidrográficas do Sistema Cantareira e a apresentação e sistematização dos dados obtidos nas fases anteriores.
Falta de interação
A pesquisa mostra que atualmente não existe nenhum tipo de mecanismo de interação entre as ações das Unidades de Conservação e dos Comitês de Bacias Hidrográficas. “Ações articuladas entre essas organizações são essenciais e cada vez mais necessárias para procurar soluções”, afirma. Segundo Micheli, a população deve estar realmente envolvida nas discussões, por isso há também a necessidade de elaborar estratégias que ampliem a participação e a mobilização social e que trabalhem o diálogo de saberes.
O estudo revela, ainda, que existe potencial para que a governança e o diálogo aconteçam, tendo em vista a existência de fóruns de debate e de instrumentos que buscam garantir a participação de diversos atores sociais nas discussões de temáticas relacionadas ao Sistema.
De acordo com a pesquisadora, “se não forem realizadas mudanças na forma como os recursos hídricos são geridos, teremos apenas medidas paliativas que terão resultados por um curto período de tempo, além de novos episódios de escassez, talvez ainda piores e que afetarão a economia, a qualidade de vida e o meio ambiente”.
A preservação e a conservação das áreas de mananciais estão entre as ações que costumam ser realizadas na busca por melhorias. “Nascentes preservadas garantem quantidade e qualidade d’água e sua conservação é fundamental para a manutenção dos recursos hídricos”, declara Micheli. Entretanto, ressalta a pesquisadora, se não houver tratamento de esgoto nos municípios, esses recursos estarão expostos à contaminação, o que prejudicaria o abastecimento. E ainda seria necessário elaborar programas de conscientização para os usuários (população, indústrias e produtores rurais) que estimulassem a conservação e o uso consciente.
O trabalho foi orientado pela professora Maria Elisa de Paula Eduardo Garavello, do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Esalq e realizada no Programa de Pós-Graduação em Ecologia Aplicada interunidades (Esalq/CENA).
Fonte: Agência USP de Notícias
Publicado no Portal EcoDebate, 29/01/2015

QUEBRA DE PROMESSA DA PRESIDENTE DO BRASIL.

Sindicatos pró e antigoverno ensaiam união contra 'medidas impopulares'

"A vaca tossiu", diziam cartazes empunhados por militantes da Força Sindical na Avenida Paulista, em meio a um protesto organizado pelas maiores centrais sindicais do país para se opor às "medidas impopulares" adotadas pelo governo recentemente.
A reportagem é de Ruth Costas e publicada por BBC Brasil, 28-01-2015.
A frase é uma referência a uma declaração feita pela presidente Dilma Rousseff em setembro, durante a corrida eleitoral, quando ela garantiu que não iria mexer no direito dos trabalhadores "nem que a vaca tussa".
Para muitos sindicalistas, a presidente quebrou sua promessa de campanha ao mudar, com duas medidas provisórias, as regras de acesso ao benefícios trabalhistas e previdenciários ─ como pensão por morte, abono salarial, auxílio doença e seguro-desemprego.
Por isso, nesta quarta-feira, as principais centrais sindicais do país organizaram protestos conjuntos em diversas cidades brasileiras para pedir a revogação dessas medidas.
Estiveram envolvidas nas marchas desde a Central Única dos Trabalhadores (CUT) até a Força Sindical, Conlutas e UGT.
Mas se parece haver um descontentamento geral entre os sindicalistas com as novas políticas adotadas pelo governo para ajustar suas contas, também há divisões importantes entre seus movimentos, como explica o sociólogo Paulo Baía, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Enquanto algumas centrais como a Força Sindical flertam com partidos de oposição, a CUT sempre foi mais próxima do governo ─ tendo, inclusive, apoiado a candidatura de Dilma ao segundo mandato. "Os sindicalistas que apoiaram a presidente agora estão em uma saia justa para explicar mudanças em direitos trabalhistas e previdenciários", diz Baía.
"A CUT ainda parece estar cuidadosa para não bater de frente com o governo ─ sua participação nos protestos parece quase um jogo de cena. Mas, se o governo continuar a anunciar essas medidas impopulares, ela vai ter de fazer uma escolha. Precisará sair de cima do muro se quiser levar as pessoas para as ruas", opina.
No protesto desta quarta-feira, os líderes sindicais filiados a CUT de fato evitaram críticas diretas a Dilma, apesar de reclamar da "falta de diálogo" com o governo. Uma militante da Central chegou a discutir com um manifestante com camisa da Força Sindical que carregava uma bandeira em que se lia:"Fora Dilma".
"Não dá para partidarizar a nossa luta. Você tem de por aí também um 'Fora Alckmin!'", disse ele.
"O problema é que os cortes (nos benefícios sociais) foram decididos com uma canetada. Não consultaram nenhum representante dos trabalhadores", opina Tião Cardoso, secretário-geral da CUT em São Paulo.
Erick Silva, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Carlos, ligado a CUT, garante que a central sindical consegue separar sua militância petista de seu trabalho como representante dos trabalhadores. "Nossa visão é que há um jogo de forças dentro governo. A administração federal está errando ao tomar medidas que favorecem mais o mercado financeiro, mas vamos trabalhar para recobrar um equilíbrio de forças a favor dos trabalhadores", explica.
Medidas
As mudanças a que as centrais sindicais se opõem fazem parte de uma série de medidas anunciadas pela nova equipe econômica para ajustar as contas do governo ─ e que incluem, além de cortes de gastos públicos também um aumento de alguns impostos (como o IOF).
Nesta terça-feira, Dilma defendeu os ajustes em sua primeira reunião ministerial do segundo mandato.
"Tomamos algumas medidas de caráter corretivo, ou seja, medidas estruturais que se mostram necessárias", disse a presidente. "Estamos diante de da necessidade de promover um reequilíbrio fiscal."
O governo prometeu sentar com as principais centrais sindicais do país para discutir o tema do seguro-desemprego ─ e não está claro se pode ceder em algum ponto.
As duas medidas provisórias que alteram o acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários também precisam ser aprovadas no Congresso.
Elas estipulam, por exemplo, que os trabalhadores precisarão trabalhar 18 em vez dos atuais 6 meses para poder receber o seguro-desemprego.
"Dilma mentiu e estamos protestando para mostrar que não vamos tolerar isso", diz Marcos Sandoval, diretor do Sindicato Nacional dos Aposentados, que segura um dos cartazes com referência à promessa supostamente quebrada da presidente.
Os sindicatos prometem mais protestos para pressionar o Legislativo a fazer mudanças. Para Baía, porém, ainda não está claro se eles conseguirão uma mobilização social significativa em torno do tema. "Eles terão de encher as ruas para sensibilizar o novo Congresso. E durante os protestos de junho de 2013, por exemplo, ficou claro que muita gente não se sentia representada pelos sindicatos", diz Baía.
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos

A CRISE HÍDRICA E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA A ECONOMIA.

Efeito dominó da seca afetará toda a economia, começando pela alface

A máxima no maior entreposto de abastecimento da América Latina diante da maior crise hídrica de que se recorda é se encomendar a Deus. Os produtores e vendedores na Ceagesp, na zona oeste de São Paulo, tentam superar as dificuldades típicas dos verões, mas a falta de água os empurra ao precipício: sem chuva, 60% dos produtores da região, dizem, desistiram de plantar suas safras e, para não comprometer os reservatórios, o Governo do Estado vai restringir a irrigação nas bacias do Alto Tietê e do PiracicabaCapivari e Jundiaí (PCJ), o que pode afetar os cultivos responsáveis por 50% do abastecimento de hortifrútis do Estado, segundo cálculos do jornal Valor.
A reportagem é de María Matín, publicada por El País, 28-01-2015.
“Se não chover até maio de Minas Gerais para cima, não vamos ter com que trabalhar”, anuncia Antônio Bernardo, pequeno produtor e vendedor de frutas. “Estamos preocupadíssimos, e já trazendo mercadorias do Chile, do Peru, da Argentina. Como vamos sustentar nossas famílias?”, questiona. “Ainda não estamos vendo as consequências, mas 60% dos produtores não estão plantando ou plantaram muito menos pela falta de água, e isso vai se sentir daqui a um mês nos preços, quando a produção vai ser muito menor”, alerta Maurício Fraga, que vende por dia quatro toneladas de hortaliças folhosas –rúcula, alface, repolho ou brócolis–, principal cultivo dos abastecidos pelas captações da bacia do Alto Tietê, hoje com 10,6% da sua capacidade.
O que os vendedores contam entre caminhões, caixas e calculadoras está sendo sentido pelos especialistas que, sem água, já preveem um aumento dos preços, especialmente dos alimentos, mas também na conta de água e de luz que, em um efeito cascata, vão acabar impactando na cadeia produtiva e na economia do país. “Parte desse aumento nós estamos percebendo nas frutas, verduras e legumes, cujos preços já acumulam alta de 8% de média no último mês”, explica André Chagas, economista da Fundação do Instituto de pesquisas Econômicas (Fipe). “Se pegarmos apenas as verduras, esse aumento chega a 10%, a alface, por exemplo, já acumula 16%, enquanto nossa expectativa oficial era que o aumento não superasse 5%”.
Marcio Salvato, coordenador da Graduação em Ciências Econômicas do Ibmec, como o resto de especialistas consultados, acredita que o impacto econômico da falta de água vai acabar afetando a economia nacional. “Os índices de inflação ao consumidor irão subir, e é claro que a medida que existe uma expectativa de subida, o Banco Central vai responder a isso com juros elevados, o que vai provocar ainda um maior desaquecimento da economia”, afirma o economista. 
“Dependendo da gravidade e as medidas a serem tomadas pode aumentar de 1 a 1,5 % e nós já estamos com uma inflação pressionada por outros ajustes de preços [como os transportes]. A inflação do Brasil já vai beirar o teto da meta, mas um agravamento da crise hídrica, significando isso um racionamento de água e energia, poderia ter consequências ainda maiores sobre a inflação. E o que é pior, seria uma inflação acelerada em um contexto de estagnação econômica e maior desemprego”, afirma Chagas.
“Nós já estamos sentindo em vários Estados, não só em São Paulo, que a conta da eletricidade está subindo. Os reservatórios das usinas hidrelétricas estão baixos e o Governo recorre às termoelétricas que têm um custo de produção mais elevado”, explica Chagas.
“Até o ano passado esse custo era bancado pelo Governo federal, mas a partir deste ano, com as novas medidas fiscais, o custo será repassado para os consumidores. O impacto é de três centavos por kilowatio, o que pode significar um aumento no Índice de Preços de Consumo (IPC) de até 0,2% em São Paulo. Isso é bastante, não é exorbitante mas é expressivo em termos de inflação”. Para Salvato, a crise hídrica está pegando o Governo em uma situação fiscal muito precária e não vai poder ajudar. "Se estivesse em uma situação boa ele poderia reduzir impostos das contas de água ou energia mas, pelo contrário, vai deixar essas contas subirem”, afirma.
A partir do mês que vem, o paulista também vai pagar o aumento nas contas de água. “A sobretaxa do Governo para quem não reduz seu consumo vai se traduzir em uma multa para até 20% dos consumidores. Esse mau comportamento dos usuários vai ter um impacto na inflação, um impacto indireto para todo o mundo”, afirma Chagas.
Diante a possibilidade de racionamento de água, o comércio também pode experimentar um alta nos preços. “A apreensão dos empresários é muito alta, muitos estão fazendo investimentos para armazenar água e isso vai ter um impacto nas contas dos clientes”, afirma o economista Jaime Vasconcelos da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio SP). “Não é alarmista, mas é natural que a crise afete na inflação no nosso Estado. A falta de água deixa o empresário na beira do precipício, porque ele tem que repassar o custo ao cliente, mas também assumir parte do investimento”.
Se a crise se agravar outras variáveis estão sendo consideradas pelos especialistas, entre elas, o aumento do preço das bebidas e, “no limite”, a possível elevação do custo de residência em São Paulo. “Seja porque o racionamento não atinja de maneira igual as residências na cidade, ou pelo interesse de morar na capital para tentar se assegurar do abastecimentos, o preço vai aumentar". Essa situação, segundo o economista, pode provocar um êxodo das pessoas que não podem pagar para outras cidades de São Paulo, "com consequências econômicas ainda difíceis de determinar”, alerta Chagas.
Fonte : Instituto Humanitas Unisinis.

COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS QUE NÃO DEVEM SER UTILIZADOS.

O Pico dos Combustíveis Fósseis deve acontecer antes do esgotamento das reservas, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

Publicado em janeiro 30, 2015 
“We should leave oil before it leaves us”
(Devemos deixar o petróleo antes que ele nos deixe)
Faith Birol (Chief economist of the IEA)

combustíveis fósseis que não devem ser utilizados

[EcoDebate] A humanidade está em uma encruzilhada, pois necessita cada vez mais de energia para tocar sua incessante máquina de produção, transporte e consumo, mas caso utilize todas as reservas de combustíveis fósseis conhecidas e com viabilidade econômica vai emitir mais gases de efeito estufa (GEE) e provocar um aquecimento global acima dos 2º graus em relação ao período pré-industrial, limite considerado minimamente seguro.
Contudo, se não forem executadas ações urgentes para reduzir as emissões, o mundo pode experimentar um catastrófico aumento de 4°C na temperatura até o final do século, aumentando a cada dia a possibilidade de efeitos climáticos extremos, como secas, tufões, inundações, ciclones e outros eventos desastrosos para as pessoas, a economia e o meio ambiente.
Trabalho recente dos pesquisadores Christophe McGlade e Paul Ekins publicado na revista Nature (janeiro de 2015), estima que, para ter pelo menos uma chance de 50% de manter o aquecimento global abaixo de 2° C durante todo o século XXI, as emissões de carbono acumuladas entre 2011 e 2050 deve ser limitada a cerca de 1.100 gigatoneladas de dióxido de carbono (CO2 Gt). No entanto, o potencial das emissões de gases GEE contidos nas reservas de combustíveis fósseis são cerca de três vezes maiores.
Os resultados dos modelos aplicados no estudo sugerem que um terço das reservas de petróleo globais, a metade das reservas de gás e mais de 80 por cento das reservas atuais de carvão deve permanecer não utilizadas entre 2010-2050, a fim de atingir a meta de 2° C. Isto quer dizer que os esforços dos governos e das empresas para explorar rápida e completamente os combustíveis fósseis são incompatíveis com os compromissos assumidos nas Conferências do Clima. Se os acordos climáticos forem respeitados, tornaria desnecessários os investimentos na descoberta e exploração dos combustíveis fósseis, pois quaisquer novas descobertas não poderia levar a um aumento da produção agregada, a não ser provocando uma catástrofe climática (Monbiot, 2015)
Grandes empresas de combustíveis fósseis podem ter um enorme prejuízo caso avancem as negociações para a Conferência de Paris (COP21), no final de 2015. Se as nações do mundo mantiverem o compromisso de combater a mudança climática, as perspectivas são sombrias especialmente para o carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis. Em 2013, as empresas de combustível fóssil gastaram cerca de US$ 670 bilhões na exploração de novos recursos de petróleo e gás. O paper publicado na Nature questiona por que eles estão fazendo isso, quando há mais no chão do que se pode dar ao luxo de queimar. As areias betuminosas do Canadá, por exemplo, simplesmente não devem ser retiradas do chão.
Para evitar a “bolha de carbono” existe um movimento pelo desinvestimento em companhias de combustíveis fósseis. Por exemplo, trezentos professores de Stanford, incluindo prêmios Nobel, estão pedindo que a universidade se livre de todos os investimentos de combustíveis fósseis, em um sinal de que o movimento pelo desinvestimento está ganhando força. Em uma carta ao presidente da Stanford, John Hennessy, os membros do corpo docente pedem a universidade para que reconheça a urgência da mudança climática e abandone os investimentos nas companhias de petróleo, carvão e gás.
Mas as emissões de GGE não se restringem à área de energia. Antes da Revolução Industrial a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera não ultrapassava 280 ppm (partes por milhão), mas atualmente ultrapassaram as 400 ppm. Todavia, o problema vai além da queima de CO2. O óxido nitroso (N2O) e o metano são gases mais potentes. De acordo com o Relatório da Convenção sobre Mudanças Climáticas, o N2O tem cerca de 300 vezes mais potencial para causar o aquecimento global do que o CO2, enquanto que o metano é em torno de 20 vezes mais forte.
A ativista ambientalista indiana, Vandana Shiva (07/01/2015), mostra que as emissões de óxido nitroso e de metano aumentaram dramaticamente devido à agricultura industrial. O óxido nitroso é emitido através do uso de fertilizantes nitrogenados sintéticos e o metano é emitido a partir das atividades pecuárias que produzem leite, carne e ovos. A Conferência da Organização das Nações Unidas de Leipzig sobre os Recursos Fitogenéticos, em 1995, avaliou que 75 por cento da biodiversidade do mundo havia desaparecido na agricultura devido à chamada Revolução Verde e ao advento da agricultura industrial. O desaparecimento de polinizadores e organismos benéficos ao solo é outra dimensão da erosão da biodiversidade devido à agricultura industrial.
Estas são lições que os estudos internacionais mostram e a ciência tem um grau de certeza cada vez maior. Aliás, o ano de 2014 registrou o recorde de temperatura e as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro vão enfrentar grande escassez de água potável em 2015.
Infelizmente, o governo brasileira está caminhando na direção contrária à proposta pelos cientistas e pelos defensores do meio ambiente. Além de ter jogado todas as fichas no pré-sal e aumentado o consumo de combustíveis fósseis, há retrocessos no controle do desmatamento e recuos nas perspectivas da Política Nacional de Mudanças Climáticas. De acordo com Daniela Chiaretti, no jornal Valor Econômico, a presidenta Dilma Rousseff, no discurso de posse, de cunho conservador na área ambiental: “fez menção anódina à participação do Brasil no acordo climático”.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação é chave na política climática brasileira. Por isto Chiaretti diz: “Mas a mais desalentadora mensagem de Dilma no tópico mudança do clima veio com a escolha do ministro da Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo. É notório o ceticismo do político do PC do B e ex-ministro dos Esportes ao fato de o aquecimento da temperatura ser agravado pelas emissões de gases-estufa antrópicas, ou seja, provocadas por atividades humanas. Em 2010, em meio aos debates do Código Florestal, Rebelo envolveu-se em polêmica com o sócio-fundador do Instituto Socioambiental, Marcio Santili. O então deputado respondeu às críticas do indigenista na carta que batizou de ‘A Trapaça Ambiental’. Afirmou que a ‘teoria do aquecimento global’ seria uma ‘doutrina de fé incompatível com o conhecimento contemporâneo’ e seguiu dizendo que ‘não há comprovação científica das projeções do aquecimento global, e muito menos de que ele ocorreria por ação do homem e não por causa de fenômenos da natureza’”.
Já Washington Novaes, no Estadão de 09/01/2015, chama atenção para outro retrocesso: “Não espanta que a nova composição do governo federal e de seus mais altos escalões tenha sido fruto não de novos planejamentos para resolver graves questões que o País enfrenta, e sim da necessidade de atender às reivindicações fisiológicas dos partidos que compuseram a aliança vitoriosa. Mas as notícias mais recentes na área ainda são surpreendentes – talvez até para parte dos membros da coligação”.
Depois de repetir as críticas ao ministro Aldo Rebelo, Novaes continua: “Pode-se passar a outro capítulo, aberto pela nova ministra da Agricultura, Kátia Abreu, para quem ‘latifúndio não existe mais no Brasil’ (Folha de S.Paulo, 5/1). Ela também defende a proposta de emenda constitucional que retira do Executivo poderes para demarcar áreas indígenas e os transfere para o Congresso Nacional. Reconhece até que ‘o Brasil inteiro era deles’ (dos índios) – mas daí a assegurar-lhes certas áreas, pensa a ministra, vai muita distância. Porque ‘os índios saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção’. Que lhe importam os direitos originários, ou o fato de que ainda existam no País mais de 900 mil desses antigos donos de todo o território, distribuídos por 305 povos, falando 274 línguas – com uma riqueza cultural extraordinária, até vivência de utopias?”
O exemplo brasileiro serve para mostrar como vai ser difícil colocar em prática acordos para reduzir a emissão de gases de efeito estufa e manter o aquecimento global abaixo dos 2º Celsius. O clima não está bom para os defensores do meio ambiente.
Referências:
MCGLADE, Christophe & EKINS, Paul. The geographical distribution of fossil fuels unused when limiting global warming to 2 °C, Nature 517, 187–190 (08 January 2015) doi:10.1038/nature14016
http://www.nature.com/nature/journal/v517/n7533/full/nature14016.html
MONBIOT, George. Why leaving fossil fuels in the ground is good for everyone, The Guardian, 07/01/15
http://www.theguardian.com/environment/georgemonbiot/2015/jan/07/why-leaving-fossil-fuels-in-ground-good-for-everyone
SHIVA, Vandana. A rota para uma mudança climática imprevisível , Eco21, 07/01/2015
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/538787-a-rota-para-uma-mudanca-climatica-imprevisivel
CHIARETTI, Daniela. O ministro cético e seu dogma pétreo, Valor Econômico, 06/01/2015
http://www.valor.com.br/brasil/3845684/o-ministro-cetico-e-seu-dogma-petreo
NOVAES, Washington. Cada um só por si; à frente, interrogações, O Estado de S.Paulo, 09/01/2015
http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,cada-um-so-por-si-a-frente-interrogacoes-imp-,1617376
February 13 and 14: Divest from fossil fuels http://gofossilfree.org/divestment-day/

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
Publicado no Portal EcoDebate, 30/01/2015

LISTA SUJA DO TRABALHO ESCRAVO CONTINUA BLOQUEADA.

Lista Suja do Trabalho Escravo continua bloqueada pelo STF

A publicação, que deveria ter ocorrido em 30 de dezembro, foi suspensa por decisão liminar emitida pelo ministro Lewandowski. Enquanto isso, o mercado fica vulnerável a fornecedores envolvidos com o crime.
A reportagem foi publicada pelo sítio Greenpeace Brasil, 28-01-2015.
A data de 28 de janeiro marca, desde 2009, o Dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo no Brasil. Mas este ano, infelizmente, não há motivo para celebrar: hoje faz 29 dias que a Lista Suja do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), está suspensa pela justiça.
O cadastro, que traz o nome de empresas e pessoas flagradas utilizando mão de obra escrava, é utilizado por compradores e instituições financeiras como ferramenta para eliminar o trabalho escravo de seus negócios. Mas, desde o final do ano passado, o mercado pode estar sendo contaminado com produtos e serviços oferecidos às custas da dignidade humana.
A publicação da nova versão da “lista suja” deveria ter ocorrido no último dia 30. Mas sua divulgação foi suspensa, graças a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin 5209) movida pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), que teve decisão liminar favorável emitida pelo ministro Ricardo Lewandowski, em pleno o recesso de Natal. Com a decisão, as portarias interministeriais que regulamentam os processos de inclusão dos nomes e de divulgação da lista, ficam suspensos até que o STF julgue o mérito da inconstitucionalidade ou que a liminar seja derrubada. O Supremo só retomara as atividades em 2 de fevereiro.
Atualmente, para ter o nome incluído na Lista Suja o empresário precisa ser flagrado com trabalhadores atuando em condições análogas a da escravidão. Os empregadores só são listados após direito de defesa administrativa e os nomes permanecem no cadastro por dois anos. “A lista em si não determina qualquer punição ou restrição às empresas do ponto de vista legal. Funciona como mecanismo de transparência, porque traz a informação sobre aqueles que insistem em adotar esta prática”, esclarece Adriana Charoux, da campanha Amazônia do Greenpeace.
Bloqueio prejudica o mercado
Como se não bastasse o bloqueio da nova lista, a última versão, publicada em julho de 2014, foi retirada do ar. Atualmente, mais de 400 companhias de diversos setores utilizam a ferramenta para cumprir o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. O material podia ser acessado por qualquer cidadão. Sem isso, não há garantias de que determinado produto não faça parte desta cadeia nefasta.
Da mesma maneira, as empresas que assinaram o Compromisso Público da Pecuária e a Moratória da Soja, que inclui as maiores empresas de soja e carne do mundo, utilizam o cadastro do MTE diariamente antes de aprovar as compras junto aos seus fornecedores, para manter este ilícito social longe de suas cadeias produtivas.
No caso da pecuária, a ausência do documento é especialmente preocupante. Segundo o MTE, a atividade pecuária é exercida por 40% dos empresários flagrados utilizando mão de obra escrava.
Até julho do ano passado, o documento continha 609 nomes. Destes, 380 eram de estados da Amazônia Legal, sendo que 10% deste total também foram multados por desmatamento ilegal nos últimos cinco anos. A nova lista traria quase 100 nomes adicionais, chegando perto de 700 empregadores que utilizam mão de obra escrava ou análoga a escravidão, segundo apurou o site Repórter Brasil.
Escravidão contemporânea
A escravidão foi oficialmente banida do Brasil em 1888. A Lei Áurea pode ter acabado oficialmente com a venda de seres humanos, mas não impediu que homens, mulheres e crianças continuassem a ser tratados como escravos ao longo da história.
De 1995 a 2013, o MTE resgatou 46.478 trabalhadores de condições de trabalho análogas a da escravidão e emitiu R$ 86,320 milhões em multas por este motivo. Números alarmantes, especialmente para um país que se vangloria por ter uma das mais modernas legislações trabalhistas do mundo.
A Lista Suja do Trabalho Escravo existe desde 2003. Criada pelo MTE e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), o cadastro é considerado um marco no combate ao trabalho escravo, pois dá transparência e acesso a informação, como previsto na Constituição Federal, por se tratar de assunto de interesse público.
A decisão do Ministro Lewandowski vai na contramão da urgência de se ampliar os mecanismos de transparência pública tão bem representados pela lista, além de ser um duro golpe ao combate da escravidão contemporânea.
No dia 15 de janeiro a Procuradoria Geral da República (PGR) entrou com um agravo regimental que busca a liberação da Lista. Na peça jurídica, a vice-procuradora da República, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, ressalta que “a suspensão da divulgação dos empregadores autuados por infrações trabalhistas gravíssimas pode reverter o efeito de desestímulo que a existência desse mecanismo gera nos agentes econômicos e fazer que empregadores tendentes a adotar tais práticas ilícitas se sintam estimulados a concretizá-las”.
Greenpeace considera a Lista Suja do Trabalho Escravo uma ferramenta essencial para que a sociedade reconheça e lute contra o problema. O Brasil não pode ficar de olhos vendados. A Lista deve ser publicada já!
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos.

TRABALHO ESCRAVO EM SÃO PAULO.

SP: agropecuária, setor têxtil e construção lideram casos de trabalho escravo

Pesquisa do governo paulista revela que a maior parte dos casos de vítimas de trabalho análogo à escravidão em São Paulo ocorre no setor têxtil, na agropecuária e na construção civil. O levantamento, feito pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, analisou 257 processos relacionados ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo, sendo 171 ações do Ministério Público Federal (MPF) e 86 procedimentos do Ministério Público do Trabalho (MPT). Os dados correspondem aos meses de agosto e setembro do ano passado.
A reportagem é de Camila Maciel e Bruno Bocchini, publicada pela Agência Brasil, 29-01-2015.
Em relação aos processos do MPF, o ramo têxtil registrou 179 pessoas exploradas pelo empregador no período analisado. Na construção civil, a projeção é que 281 trabalhadores foram vítimas. No setor de agricultura e pecuária, o número ficou em torno de 125 pessoas. Os dados são estimativas, pois os processos não têm uniformidade de informações, o que dificulta traçar o perfil dos casos de trabalho escravo no estado de São Paulo.
Normalmente, a causa geradora desse problema é a ausência de política pública na localidade onde as pessoas estão. A tendência é: eu não tenho trabalho, eu preciso trabalhar, então vou procurar trabalho onde tem. Se a oportunidade de trabalho vem de forma abusiva, provavelmente é onde vou ter que me socorrer. É uma situação de sobrevivência praticamente”, destaca a coordenadora do Núcleo de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do estado de São Paulo, Juliana Felicidade Arnede.
Os dados do MPT apontam que, dos 71 processos que identificam o ramo de exploração, 63% ocorreram na área urbana. O setor de construção civil lidera o número de casos, com 32% do total, seguido pelo ramo agropecuário, com 30% (21 ocorrências) e têxtil, com 17% dos casos.
Em relação ao número de vítimas, no ambiente rural há predominância do sexo masculino: foram 1.408 homens e 192 mulheres. O mesmo cenário é visto na construção civil, onde apenas um era mulher, dos 76 trabalhadores identificados. No setor têxtil, a proporção é diferente, com 80 homens e 45 mulheres – 36% das vítimas do sexo feminino.
O mapeamento a partir dos processos do MPF revela ainda que, nos casos em que é possível identificar a origem das vítimas, 43% vieram de outros países, sendo a maior parte da Bolívia. Os trabalhadores do país latino correspondem a 16 dos 20 casos. A maior área de exploração é o setor têxtil, com 14 ocorrências.
Em relação ao Brasil, o Nordeste é a região de origem da maior parte dos trabalhadores explorados. “Essa pode ser uma evidência de que o aliciamento de mão de obra por meio de intermediadores irregulares ainda é uma prática comum no Nordeste brasileiro”, assinala o estudo.
“Para combater isso, é importante que o Pacto Federativo funcione, que a gente tenha um comprometimento das redes sociais não só a partir do local onde a pessoa sofre o problema, mas a partir do local onde vive, onde pode criar boas oportunidades, seja para ficar, seja para ir para outro local. Mas o necessário é que você tenha uma integração efetiva de política pública em âmbito nacional. Isso não existe e é por isso que as pessoas sofrem”, ressalta Arnede.
Nos procedimentos do MPT, a maioria das vítimas (52%) nasceu na Bolívia. “Essa informação é bastante notória, porque reafirma um fluxo migratório que vem se consolidando ao longo dos anos”, diz o texto. Também foram identificados haitianos (7%), paraguaios (3%) e chilenos (0,5%).
O número de vítimas brasileiras corresponde a 38%. Os trabalhadores resgatados eram de cinco estados. O Maranhão foi o mais recorrente, com 18 trabalhadores em condição análoga à escravidão, seguido pela Bahia, com sete; São Paulo, com quatro; o Ceará e o Piauí, com uma vítima cada.
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos

A VIDA NO BRASIL NÃO É NORMAL, É SÓ TRABALHO.

A vida no Brasil não é normal, é só trabalho', conta boliviana que foi escravizada em SP

Após duas passagens pela capital paulista (uma de quatorze anos e outra de um), ela está de volta a El Alto, uma cidade satélite contígua à capital La Paz, desde 2013.
A reportagem é de Mariana Schreiber, publicada por BBC Brasil, 29-01-2015.
Com tradição no setor têxtil, El Alto é o principal pólo de emigração para São Paulo, a metrópole onde milhares de bolivianos são explorados em oficinas de costura.
Considerada a capital mundial da etnia aymara – do presidente Evo Morales –, a cidade se desenvolveu nos últimos anos, mas continua exportando mão de obra barata para o Brasil.
A presidente Dilma Rousseff desceu de seu avião no aeroporto de El Alto na última quinta-feira quando esteve por apenas quatro horas na Bolívia para prestigiar a posse do terceiro mandato de Evo Morales e reativar a relação entre os dois países.
Malena veio ao Brasil aos 20 anos de idade, em 1998, quando esse fluxo migratório começava a se intensificar. Falando com voz tímida e jeito desconfiado, ela conta que deixou a casa da sua família com objetivo de trabalhar um ano, juntar dinheiro e voltar para estudar ou abrir um negócio.
Mas a motivação econômica não foi a única razão que a levou a cruzar de ônibus os 2,9 mil km que separam as duas cidades – ela também tinha curiosidade.
"A princípio não queria, (porque) eu estava namorando e estudando. Mas depois pensei: por que não? Quem não quer conhecer outro país? Sempre gostei do idioma quando ouvia na TV", recorda.
Malena chegou a dormir, com a filha pequena, em cozinha de oficina em São Paulo
Foi seu pai que sugeriu que ela trabalhasse como babá para uma família conhecida de bolivianos. Mas a promessa de ganhar US$ 100 por mês (R$ 110 na época) não se concretizou e boa parte da sua vida nos anos seguintes foi de escravidão, segundo as leis brasileiras.
Ameaças
Em seu primeiro trabalho, numa oficina de costura em Tucuruvi (norte de São Paulo), sua jornada começava às 7h da manhã e terminava às 3h da madrugada, com apenas dois breves intervalos para refeições. Além de cuidar das crianças, ela cozinhava e arrumava a oficina.
Depois que os costureiros terminavam seus trabalhos, à 1h, Malena organizava o local: varria o chão, dobrava os tecidos e separava as peças de roupa que eram levadas por coreanos, os intermediários entre a oficina e as empresas de varejo.
Ao longo de seis meses nessa condição, tudo o que recebeu foram R$ 50. Sua patroa ameaçava denunciá-la à imigração brasileira se ela abandonasse o trabalho.
Certo dia, fugiu. "Uma noite, quando acabei de trabalhar, fui andando até Santana (também no norte de São Paulo)", lembra. Sem saber falar a língua, ficou perdida pelo bairro: "Eu chorava sem parar."
De manhã, foi socorrida por algumas pessoas na rua que sugeriram que ela deveria voltar para casa, mas não quis retornar de mãos abanando. "Eu tinha ido para juntar dinheiro e ainda não tinha conseguido nada. Então fiquei mais", lembra.

Malena havia conseguido o contato de outra oficina de bolivianos em Guarulhos. Lá, o trabalho era semelhante e ela recebia R$ 130. "(A patroa) pagava certinho, mas muitas vezes não tinha comida e a gente passava fome. E não podia sair para procurar outro emprego."
Nessa oficina, com dez trabalhadores bolivianos, ela conheceu seu marido. Depois de um ano, o casal decidiu procurar outro local para trabalhar. Quando saíram, os patrões se recusaram a pagar seu último salário.
Ainda foram costureiros em Santana, no Bom Retiro, em Itaquera e na Penha. Os patrões costumavam ser brasileiros ou bolivianos. Em um desses lugares, sem alojamento, chegou a dormir com sua filha Taina, de dois anos, no chão da cozinha. Também era comum sofrer assédio dos donos das oficinas, conta.
Escravidão
O Código Penal Brasileiro considera que uma atividade é "análoga à escravidão" se houver qualquer um desses quatro elementos presentes: trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho ou restrição à locomoção por dívida.
BBC Brasil perguntou a Malena se ela entendia que estava sendo explorada como escrava. Na sua visão, isso só acontecia quando não recebia. "No início sim, não me pagavam, a comida era muito ruim. Depois melhorou."
No início da vida em São PauloMalena mal saía na rua: além de coragem, também lhe faltavam tempo e dinheiro. "Eu demorei três anos para falar português e andar pela cidade sozinha", diz.
Em 2003, uma oficina pagou ao casal com máquinas de costura e eles decidiram trabalhar por conta própria com mais dois casais. Alugaram um apartamento de três quartos na Armênia onde todos moravam e trabalhavam juntos.
Costurando por conta própria, Malena conseguia ganhar até R$ 600, mas ela diz que a rotina era até mais pesada.
"Tínhamos que trabalhar mais para conseguir pagar as contas – aluguel, luz, água. Muitas vezes nem dormíamos para entregar o serviço."
Ainda assim, preferia esse esquema por causa da filha, que nasceu em 2000. "Na oficina em que a gente trabalhava antes, eu tinha que deixar ela trancada num quarto. Os donos reclamavam."
Retorno
Em 2011, a boliviana decidiu voltar com Taina para El Alto, após uma separação complicada do marido. Pesou em sua decisão o futuro da filha – na Bolívia ela poderia ter uma educação e um ambiente familiar melhor, perto dos avós e dos tios.
"As amiguinhas que ela tinha no Brasil eram muito precoces. Com nove anos, ela queria ir sozinha passear no shopping. Isso me preocupava."
Quatro anos depois do retorno, Taina parece adaptada, mas o início foi difícil. "Ela achava tudo feio aqui, a cidade, as pessoas", diz a mãe.
Malena ainda voltou sozinha para o Brasil por um ano em 2013. Novamente trabalhou em oficina de costura, ganhando cerca de R$ 500 por mês. Dessa vez, conseguiu cumprir seu objetivo de estudar – nos fins de semana, fez um curso profissionalizante gratuito de manicure.
Apesar da vida difícil no Brasil, ela diz sentir saudade de São Paulo. "Lá é muito bonito", diz, contrariando a fama de feia da capital paulista. "Foram 15 anos…", repete, justificando o sentimento.
Acordo
Um acordo de 2012 do Mercosul, do qual a Bolívia já é membro associado, dá direito a qualquer boliviano solicitar visto permanente para morar e trabalhar no Brasil. O governo brasileiro entende que a própria legalização dos bolivianos é uma forma de deixá-los menos vulneráveis à exploração, explica o diretor do Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça, João Guilherme Granja.
Outra prioridade, diz Granja, é melhorar o atendimento ao estrangeiro que chega ao país. Ele cita a inauguração do Centro de Integração e Cidadania do Imigrante, em São Paulo, que conta com atendimento da Defensoria Pública da União e terá em breve um posto da Polícia Federal para regularização de papéis.
O local foi construído pelo governo estadual com recursos de multas aplicadas em empresas que exploravam trabalho escravo e também com R$ 6 milhões doados pela Zara, que em 2011 foi responsabilizada por escravizar 16 bolivianos em duas oficinas de fornecedores.
"O imigrante não é um problema. Queremos que ele seja bem tratado", afirma Granja.
No último sábado, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva discursou para milhares de bolivianos em uma praça no centro de São Paulo. Um vídeo postado em sua página no Facebook mostra o momento em que, sob aplausos, ele parabeniza Morales e afirma que "os imigrantes têm que ser tratados (no Brasil) como irmãos, como brasileiros, como iguais".

A Embaixada brasileira em La Paz informou à BBC que tem atuado junto a rádios locais de El Alto para alertar a população sobre as redes de aliciamento de trabalho escravo e explicar sobre a possibilidade de emigrar legalmente para o país.
Segundo a Embaixada, estima-se que mais de um milhão de bolivianos vivam no Brasil, mas é muito difícil saber precisamente, pois muitos não são registrados ou vão e voltam com regularidade. Os números do Ministério da Justiça indicam que há 121 mil regularmente no país.
O valor crescente de recursos enviados do Brasil para a Bolívia nos últimos anos são outro indicativo da expansão da imigração. Segundo dados do Banco Central boliviano, em 2007, os reais representavam cerca de 0,6% das remessas enviadas por bolivianos no exterior ao país – que somam cerca de US$ 1 bilhão por ano. Já em 2014, eram 5% do total.
'Não quero isso para minha filha'
Malena conseguiu regularizar sua vida no Brasil ainda antes de completar um ano no país, mas nunca obteve um trabalho de carteira assinada. Apesar disso, ela diz que não se sentiu excluída do restante da sociedade. "Muitos chamavam os bolivianos de bêbados, mas eu tinha amigas brasileiras também", conta.
Sua intenção é fazer uma visita com a filha a São Paulo no fim do ano, mas voltar definitivamente não está nos planos. A maior preocupação de Malena é a educação de Taina. "Não quero que ela passe pelo sofrimento que eu passei."
Segundo a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) de São Paulo Christiane Nogueira, há milhares de oficinas de costura em São Paulo. Devido à fiscalização na cidade, o órgão tem notado o surgimento de oficinas em municípios vizinhos e também em Minas Gerais e Santa Catarina.
"É impossível fecharmos todas. Tem que ser feita uma discussão maior sobre a terceirização do trabalho pelas empresas de moda. Há uma cegueira deliberada das empresas, que fingem que não veem o trabalho escravo nos fornecedores", afirma a procuradora.
Um balanço divulgado pelo Ministério do Trabalho na quarta-feira mostra que 1,4 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão em 2014, sendo 82 deles de oficinas de costura no estado de São Paulo.
No caso mais recente, de novembro, a varejista Renner foi responsabilizada pela exploração de 37 costureiros em uma oficina terceirizada em São Bernardo (SP).
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos