sábado, 21 de agosto de 2021

ESTUDO REVELA QUE BITUCAS DE CIGARRO LIBERAM SUBSTÂNCIAS TÓXICAS EM PRAIAS E NO OCEANO.

 Lixo vindo do mar

Lixo vindo do mar coletado na areia da praia de Botafogo, RJ. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Estudo revela que bitucas de cigarro liberam substâncias tóxicas em praias e no oceano

Análise comprovou alta incidência do lixo tóxico nas praias de Santos (SP)

Não é novidade que a bituca de cigarro é um resíduo que se configura entre os maiores contaminantes dos oceanos. De acordo com um relatório da ONG Cigarette Butt Pollution, de 2018, ao longo de 32 anos o item foi o mais coletado nas praias em todo o mundo, somando aproximadamente 60 milhões de unidades.

Um estudo inédito do Instituto do Mar, da Universidade Federal de São Paulo (IMar/Unifesp) – Campus Baixada Santista, publicado no periódico científico Waste Management , identificou a ocorrência e analisou a toxicidade das bitucas de cigarros nas praias de Santos (SP).

Os resultados comprovam que esses filtros representam um risco potencial aos ambientes onde são descartados e, por isso, os pesquisadores concluem que a adoção de políticas públicas que visem minimizar esse problema é fundamental.

Passo a passo

O trabalho foi publicado pela pesquisadora Christiane Freire Lima, aluna de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Ecologia Marinha e Costeira, do IMar/Unifesp. Com a orientação principal do docente e vice-diretor do instituto, Prof. Ítalo Braga Castro, o estudo foi conduzido a partir da preocupação com o descarte inadequado de lixo no mar em Santos e seus impactos sociais, econômicos e ambientais.

A pesquisa se dividiu em três grandes etapas:

Primeira etapa – O passo inicial foi constatar a ocorrência de bitucas de cigarro nas praias de Santos. A operação foi realizada por meio de mutirões de limpeza em parceria com ONGs. Após contabilizar a quantidade de lixo recolhido, os pesquisadores identificaram que as bitucas estão em primeiro e segundo lugares entre os itens mais encontrados na praia – representando 51% e 34% do lixo nas coletas de verão e inverno, respectivamente.

Segunda etapa – O passo subsequente consistiu em caracterizar as bitucas que foram encontradas. Para tanto, o grupo identificou as marcas de cigarro mais frequentemente descartadas nas praias. Este passo foi fundamental para entender que empresas seriam eventualmente responsáveis por esse tipo de contaminação. Essas informações do estudo podem contribuir para a implantação de uma política de logística reversa.

Terceira etapa – Na etapa final, foram realizados os estudos laboratoriais de sedimentação. Nesse processo, foi possível verificar o tempo de permanência das bitucas na coluna d’água: ou seja, se os resíduos, quando caem no mar, permanecem na água ou afundam para os sedimentos no fundo do oceano. A análise foi feita através de experimentos, usando provetas contendo água do mar em diferentes condições (agitação ou estático). Foi verificado que, em média, a partir do terceiro dia, as bitucas deixam de flutuar e atingem o fundo do mar, portanto contaminando também os sedimentos.

“Essa etapa foi importante para entender que as bitucas liberam substâncias tóxicas tanto para a água quanto para os sedimentos do fundo, e, desse modo, os resultados confirmaram a necessidade de aplicação dos ensaios ecotoxicológicos nos dois compartimentos do ambiente”, explica o vice-diretor do IMar.

Políticas públicas

Ainda segundo Castro, os resultados da pesquisa demonstraram que a bituca de cigarro é um problema sério, que leva a muitos compostos químicos perigosos ao ambiente e que podem matar ou causar danos reprodutivos graves nos organismos aquáticos – tanto para os habitantes da água quanto para os que vivem enterrados nos sedimentos do mar.

“É importante ressaltar que o cigarro tem mais de sete mil substâncias tóxicas. Quando ocorre o ato de fumar, muitas dessas substâncias ficam retidas nas bitucas que, ao serem lançadas no ambiente, funcionam como verdadeiras bombas químicas com várias substâncias perigosas retidas naquele filtro, e que acabam sendo liberadas e contaminando o ambiente”, complementa o professor.

Os cientistas ressaltam que mais estudos para compreender outros aspectos do comportamento de bitucas em diferentes compartimentos ambientais, bem como ensaios ecotoxicológicos que envolvam outros grupos tróficos, são recomendados e ajudarão a fornecer informações de amparo a políticas públicas em relação a produtos derivados do tabaco. Por isso, os próximos passos devem estudar a toxicidade das bitucas, sobre outros grupos de organismo e sobre outras condições ambientais – como, por exemplo, em água doce e no solo.

Referência:

Christiane Freire Lima, Mariana Amaral dos Santos Pinto, Rodrigo Brasil Choueri, Lucas Buruaem Moreira, Ítalo Braga Castro,
Occurrence, characterization, partition, and toxicity of cigarette butts in a highly urbanized coastal area,
Waste Management, Volume 131, 2021, Pages 10-19, ISSN 0956-053X,
https://doi.org/10.1016/j.wasman.2021.05.029

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Fonte: Instituto do Mar, da Universidade Federal de São Paulo (IMar/Unifesp)

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 22/07/2021

SOBREPESCA PREJUDICA GRAVEMENTE ÁREAS MARINHAS PROTEGIDAS EM TODO MUNDO.

pesca
Foto: Greenpeace

Sobrepesca prejudica gravemente áreas marinhas protegidas em todo o mundo

Um novo estudo da Universidade de Tel Aviv revela danos ecológicos significativos a muitas áreas marinhas protegidas (AMPs) em todo o mundo.

Os resultados do estudo apontam para um forte “efeito de borda” nas AMPs, ou seja, uma redução acentuada de 60% na população de peixes que vive nas bordas da AMP (até uma distância de 1-1,5 km dentro da AMP) em comparação com as áreas centrais.

Tel Aviv University*

O “efeito de borda” diminui significativamente o tamanho efetivo da AMP e decorre em grande parte das pressões humanas, em primeiro lugar da sobrepesca nas fronteiras da AMP.

O estudo foi conduzido por Sarah Ohayon, estudante de doutorado no laboratório do Prof. Yoni Belmaker, Escola de Zoologia, Faculdade de Ciências da Vida George S. Wise e Museu Steinhardt de História Natural da Universidade de Tel Aviv. O estudo foi publicado recentemente no Nature Ecology & Evolution Journal.

As AMPs foram projetadas para proteger os ecossistemas marinhos e ajudar a conservar e restaurar as populações de peixes e invertebrados marinhos, cujos números estão cada vez mais diminuindo devido à sobrepesca. A eficácia dos AMPs foi comprovada em milhares de estudos realizados em todo o mundo. Ao mesmo tempo, a maioria dos estudos mostra apenas o “dentro” e “fora” das AMPs, e ainda há uma lacuna de conhecimento sobre o que acontece no espaço entre o núcleo das AMPs e as áreas abertas à pesca ao seu redor.

Ohayon explica que, quando uma AMP funciona bem, a expectativa é que a recuperação das populações marinhas nas AMPs resulte em um spillover, processo em que peixes e invertebrados marinhos migram para fora das fronteiras da AMP. Desta forma, a AMP pode contribuir não só para a conservação da natureza marinha, mas também para a renovação das populações de peixes fora da AMP que diminuíram devido à sobrepesca.

Para responder à pergunta qual é o padrão espacial dominante das populações marinhas de dentro de AMPs para áreas abertas para pesca ao seu redor, os pesquisadores realizaram uma meta-análise que incluiu dados espaciais de populações marinhas de dezenas de AMPs localizadas em diferentes partes dos oceanos.

“Quando vi os resultados, compreendi imediatamente que se tratava de um padrão de efeito de borda”, enfatiza Ohayon. “O efeito de borda é um fenômeno bem estudado em áreas protegidas terrestres, mas surpreendentemente ainda não foi estudado empiricamente em AMPs. “Este fenômeno ocorre quando há distúrbios humanos e pressões em torno da AMP, como caça / pesca, poluição sonora ou luminosa que reduzem o tamanho das populações naturais dentro das AMPs próximas às suas fronteiras”.

Os pesquisadores descobriram que 40% das AMPs proibidas ao redor do mundo (áreas onde a atividade de pesca é totalmente proibida) têm menos de 1 km 2 , o que significa que toda a área provavelmente sofrerá um efeito de borda. No total, 64% de todas as AMPs proibidas no mundo são menores que 10 km 2 e podem conter apenas cerca de metade (45-56%) do tamanho esperado da população em sua área em comparação com uma situação sem efeito de borda. Essas descobertas indicam que a eficácia global das AMPs proibidas existentes é muito menor do que se pensava anteriormente.

Deve-se enfatizar que o padrão de efeito de borda não elimina a possibilidade de transbordamento de peixes, e é bastante plausível que os pescadores ainda desfrutem de peixes grandes vindos de dentro das AMPs. Isso é evidenciado pela concentração da atividade pesqueira nas fronteiras das AMPs. Ao mesmo tempo, o efeito de borda deixa claro para nós que as populações marinhas perto da fronteira das MPAs estão diminuindo a um ritmo mais rápido do que a recuperação das populações ao redor da MPA.

Os resultados do estudo também mostram que naquelas AMPs com zonas tampão ao redor, nenhum padrão de efeito de borda foi registrado, mas sim um padrão consistente com transbordamento de peixes fora da AMP. Além disso, um efeito de borda menor foi observado em AMPs bem fiscalizadas do que aquelas onde a pesca ilegal foi relatada. “Estas descobertas são encorajadoras, pois significam que ao colocar zonas tampão, gerir a atividade de pesca em torno das AMPs e melhorar a fiscalização, podemos aumentar a eficácia das AMPs existentes e muito provavelmente também aumentar os benefícios que podem proporcionar através do transbordamento de peixes”, adiciona Ohayon. “Ao planejar novas AMPs, além da implementação de zonas de amortecimento regulamentadas, recomendamos que as AMPs de não-captura destinadas à proteção sejam de pelo menos 10 km 2e o mais redondo possível. Essas medidas irão reduzir o efeito de borda nas AMPs. Os resultados da nossa pesquisa fornecem diretrizes práticas para melhorar o planejamento e a gestão das AMPs, para que possamos fazer um trabalho melhor na proteção dos nossos oceanos. ”

Referência:

Ohayon, S., Granot, I. & Belmaker, J. A meta-analysis reveals edge effects within marine protected areas. Nat Ecol Evol (2021). https://doi.org/10.1038/s41559-021-01502-3

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Henrique Cortez *, tradução e edição.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 02/08/2021 

ENTENDA A RELAÇÃO ENTRE A COVID-19 E A PRESENÇA DE TROMBOSES.

Covid-19

Entenda a relação entre a COVID-19 e a presença de tromboses

Trombose: o perigo silencioso de mãos dadas à COVID-19 – Especialista explica qual a relação entre as duas doenças e o que fazer para se prevenir

Com o avanço da pandemia, cerca de um ano e meio após o surgimento dos primeiros casos, já é de amplo conhecimento que o SARS-CoV-2 é causador de problemas agudos no sistema respiratório. No entanto, o que pouco se discute é o grande número de casos envolvendo coágulos de sangue em pacientes infectados pela COVID-19. Estima-se que de 5% a 10% dos pacientes internados em enfermaria tenham apresentado algum evento trombótico durante o tratamento de coronavírus, podendo chegar a 30% para pacientes internados em UTI – taxas muito altas se comparadas ao período pré-pandemia. A trombose é uma obstrução causada por coágulos de sangue em veias e artérias, podendo resultar em quadros graves, como Acidente Vascular Cerebral (AVC), Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) e embolia pulmonar – podendo levar, em casos extremos, à parada cardíaca.

A infecção causada pela COVID-19 não afeta somente os pulmões, mas também pode lesar a camada interna da parede dos vasos sanguíneos. “Essa camada, chamada de endotélio, é parte responsável por não permitir que o sangue coagule, então se o vírus danifica essa camada, a deixa mais propensa à formação de trombo”, explica Dr. Marcelo Melzer Teruchkin, cirurgião vascular do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, e membro da Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular (SBACV) e da Sociedade Brasileira de Trombose e Hemostasia (SBTH). “A trombose é causada pelo que chamamos de Tríade de Virchow, que envolve a estase, a hipercoagulabilidade e o dano vascular. O vírus gera lesão no vaso e ativa a cascata inflamatória, que são questões relacionadas à coagulação. Isso acaba levando algumas pessoa a ficarem prostradas e acamadas, como é o caso de pacientes com necessidade de suplementação de oxigênio, com pouca mobilidade e gerando a estase”.

A trombose pode atingir qualquer paciente diagnosticado com COVID-19, inclusive casos leves, domiciliares e que não apresentaram síndrome respiratória. “Logo nos primeiros casos, na China, os médicos perceberam a elevação de um elemento identificado no sangue, que está relacionado à trombose: o D-dímero”, comenta o cirurgião. Quando temos um trombo, nosso organismo tenta desfazê-lo e, nesse processo, libera substâncias no sangue que acabam funcionando como marcadores. Um desses marcadores é o D-dímero. “No início da pandemia, logo que os colegas identificavam essa elevação do D-dímero, solicitavam a avaliação vascular. Parecia certo exagero, pois muitos pacientes não apresentavam nenhuma manifestação clínica de trombose, mas quando fazíamos avaliação com ultrassom (ecodoppler) em muitos desses casos achávamos um trombo. Assim, percebemos que não se tratava de uma situação comum”.

A relação entre a COVID-19 e a presença de tromboses gerou, no meio médico, discussões, não somente acerca das consequências da infecção, mas também sobre qual seria o tratamento mais adequado, já que o paciente infectado além de apresentar risco aumentado de trombose, também tem risco de sangramento. “Até o momento, um paciente com diagnóstico de infecção pelo coronavírus que necessita internação e não tem diagnóstico de trombose vai receber uma dose menor de anticoagulante, preventiva, chamada de dose profilática. Agora se ele tem diagnóstico confirmado de trombose durante o tratamento, vai receber a dose de anticoagulante terapêutica, que é aproximadamente o dobro da dose de prevenção”, afirma Teruchkin, que completa que, a cada mês, novos estudos são lançados e novos paradigmas quebrados.

As vacinas causam trombose?

Logo que as vacinas começaram a ser utilizadas em escala populacional, na Europa e na América do Norte, no início de 2021, foram relatados alguns casos de tromboses graves em vasos cerebrais e viscerais, associados à redução do nível de plaquetas, após a vacinação com os imunizantes AstraZeneca e Janssen, o que gerou muita polêmica acerca da sua segurança.

No entanto, Dr. Marcelo explica que esses são casos bastante raros. No início dos relatos, a trombose induzida por vacina era tratada com heparina, uma medicação anticoagulante de uso consagrado, mas que, especialmente nesses casos, resultava em uma reação imunológica que piorava o quadro do paciente. “Hoje, passados alguns meses, já sabemos qual a melhor forma de tratar essa trombose atípica relacionada à vacina. Se usa a imunoglobulina, uma substância para diminuir a resposta imunológica, e anticoagulantes não relacionados à heparina”, completa.

Contudo, ele ressalta: “O risco de ocorrer uma trombose grave por COVID é muito maior que o risco de uma trombose rara pela vacina. A vacina, salvo raras exceções, sempre vai ser benéfica. É a melhor solução para a retomada de uma vida normal!”.

Prevenção

Apesar do cenário, existem pequenas e simples ações que podem contribuir para que o paciente se previna de desenvolver uma trombose em meio a um caso de coronavírus. Pacientes em síndrome gripal (casos leves) devem se manter bem hidratados e, mesmo em isolamento, buscar se movimentar e evitar a restrição ao leito. Aqueles que já passaram para síndrome inflamatória com baixa oxigenação (casos mais graves), devem agir somente sob recomendação médica, com medicação profilática para trombose. “O paciente deve evitar, a todo custo, a automedicação, porque, caso ele tenha algum risco aumentado de sangramento, o uso de anticoagulantes por conta própria pode ser extremamente arriscado”, explica o médico.

Os sintomas da trombose podem variar de acordo com o local atingido. Trombose nas veias das pernas podem ocasionar inchaço, dor e mudança de coloração. Para as artérias dos membros inferiores, dor, ausência de pulso, palidez, resfriamento e formigamento do membro. Trombos no sistema pulmonar causarão falta de ar, dor torácica e tosse. Na circulação dos rins, o paciente pode sofrer de insuficiência renal. Além disso, coração e cérebro podem ser atingidos. “O trombo pode se formar em vaso único, como em vários sítios. É muito relativo e tem correlação com a gravidade da doença”, relata o especialista.

À medida que o processo infeccioso e inflamatório vai se resolvendo, o risco de trombose vai, progressivamente, diminuindo – um processo que pode durar alguns meses até se normalizar. “É vital que todo o paciente que se recupera da COVID marque um checkup clínico. Pelo menos cardiológico, pulmonar e vascular. Ele vai ter orientações para que os seus riscos de complicações sejam amplamente reduzidos”, finaliza.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 03/08/2021

DEGELO DO PERMAFROST LIBERA GASES DE EFEITO ESTUFA DO SUBSOLO.

Degelo do permafrost libera gases de efeito estufa do subsolo

Após onda de calor de 2020, as concentrações de metano no ar da Sibéria apontam para a emissão de gás do calcário

Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn*

Quais os efeitos da onda de calor do verão de 2020 na Sibéria? Em um estudo conduzido pela Universidade de Bonn, geólogos compararam a distribuição espacial e temporal das concentrações de metano no ar do norte da Sibéria com mapas geológicos. O resultado: as concentrações de metano no ar após a onda de calor do ano passado indicam que o aumento das emissões de gases veio de formações calcárias abaixo do permafrost em degelo.

O estudo foi publicado na revista Proceedings of National Academy of Sciences (PNAS).

Esquerda: Imagem de satélite do Norte da Sibéria. - Duas áreas de calcário paleozóico são marcadas com linhas tracejadas amarelas. Superior direito: concentração de metano medida por satélite em maio de 2020; inferior direito: em agosto de 2020. © N. Froitzheim & D. Zastrozhnov, usando dados do GHGSat (https://pulse.ghgsat.com/)
Esquerda: Imagem de satélite do Norte da Sibéria. – Duas áreas de calcário paleozoico são marcadas com linhas tracejadas amarelas. Superior direito: concentração de metano medida por satélite em maio de 2020; inferior direito: em agosto de 2020. © N. Froitzheim & D. Zastrozhnov, usando dados do GHGSat (https://pulse.ghgsat.com/)

 

Solos permafrost permanentemente congelados cobrem grandes áreas do hemisfério norte, especialmente no norte da Ásia e na América do Norte. Se eles descongelarem em um mundo em aquecimento, isso pode representar perigos, porque CO2 e metano são liberados durante o descongelamento – e amplificam o efeito antropogênico de gases de efeito estufa. “O metano é particularmente perigoso aqui porque seu potencial de aquecimento é muitas vezes maior do que o do CO2”, explica o Prof. Dr. Nikolaus Froitzheim do Instituto de Geociências da Universidade de Bonn.

Os pessimistas, portanto, já falavam de uma “bomba de metano” iminente. No entanto, a maioria das projeções anteriores mostrou que os gases do efeito estufa do degelo do permafrost contribuirão com “apenas” cerca de 0,2 graus Celsius para o aquecimento global em 2100.Essa suposição foi agora contestada por um novo estudo de Nikolaus Froitzheim e seus colegas Jaroslaw Majka (Cracóvia / Uppsala) e Dmitry Zastrozhnov (São Petersburgo).

A maioria dos estudos anteriores tratou apenas das emissões da decomposição de restos de plantas e animais nos próprios solos permafrost. Em seu estudo atual, os pesquisadores liderados por Nikolaus Froitzheim fizeram uma comparação entre as concentrações de metano no ar da Sibéria, determinadas por espectroscopia baseada em satélite, e mapas geológicos. Eles encontraram concentrações significativamente elevadas em duas áreas do norte da Sibéria – o Cinturão de Dobra de Taymyr e a borda da Plataforma Siberiana. O que é surpreendente nessas duas áreas alongadas é que a rocha-mãe é formada por formações de calcário da era Paleozoica (período de cerca de 541 milhões de anos a cerca de 251,9 milhões de anos atrás).

Em ambas as áreas, as concentrações elevadas apareceram durante a onda de calor extrema no verão de 2020 e persistiram por meses depois. Mas como o metano adicional ocorreu em primeiro lugar? “As formações de solo nas áreas observadas são muito finas ou inexistentes, tornando improvável a emissão de metano a partir da decomposição da matéria orgânica do solo”, diz Niko Froitzheim. Ele e seus colegas, portanto, sugerem que os sistemas de fratura e cavidade no calcário, que haviam sido obstruídos por uma mistura de gelo e hidrato de gás, tornou-se permeável com o aquecimento. “Como resultado, o gás natural, sendo principalmente metano de reservatórios dentro e abaixo do permafrost, pode atingir a superfície da Terra”, diz ele.

Os cientistas agora planejam investigar essa hipótese por meio de medições e cálculos de modelo para descobrir quanto e com que rapidez o gás natural pode ser liberado. “As quantidades estimadas de gás natural na subsuperfície do norte da Sibéria são enormes. Quando partes disso forem adicionadas à atmosfera após o degelo do permafrost, isso poderá ter impactos dramáticos no clima global já superaquecido”, enfatiza Niko Froitzheim.

Instituições participantes:

A Universidade de Bonn, a Universidade de Uppsala e a Universidade de Ciência e Tecnologia AGH em Cracóvia, bem como o Instituto Russo de Pesquisa Geológica Karpinsky em São Petersburgo, estiveram envolvidos no estudo.

Referência:

Methane release from carbonate rock formations in the Siberian permafrost area during and after the 2020 heat wave
Nikolaus Froitzheim, Jaroslaw Majka, Dmitry Zastrozhnov
Proceedings of the National Academy of Sciences Aug 2021, 118 (32) e2107632118; DOI: 10.1073/pnas.2107632118

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Henrique Cortez *, tradução e edição.

O QUE O MANGUE PODE ENSINAR ÀS CRIANÇAS.

homem mau lobo mau

O que o mangue pode ensinar às crianças, artigo de Rosângela Trajano

Vamos incentivar as crianças a adotarem um pedaço da natureza para que possam ter responsabilidades e cuidados para com ela

Moro perto de um mangue bonito desde a minha infância. Foi nele onde aprendi a tornar-me mulher, sim porque como disse a nossa filósofa Simone de Beauvoir ninguém nasce mulher é preciso uma força exterior, algo além de si, algo que vem do desconhecido, algo que surge do inquieto para tornar-se mulher além do que está escrito no registro civil. O mangue me fez ser assim meio mulher desobediente às regras de uma sociedade que todos os dias me cobrava uma beleza física da qual eu não dispunha. Nunca aprendi a andar de salto alto porque meus pés cheios de calos e cortes se acostumaram a pisar na lama do mangue.

O meu mangue ainda resiste às ações humanas. Apesar das construções desenfreadas, do desmatamento, do aterramento e do lixo jogado todos os dias nas suas águas, ele resiste e me proporciona horinhas felizes onde eu posso poetizar vendo um caranguejo passear pelas suas raízes vermelhas, um chama-maré vir me desejar boa sorte ou um peixinho vir brincar comigo. O meu mangue ainda tem vida e é nele onde renasço todos os dias quando o sol surge e corro para vê-lo se ainda está feliz, sim, porque ser feliz hoje em dia para o meu mangue é uma questão externa e vai além do que ele sente. O homem tem a felicidade do meu mangue nas suas mãos.

No mangue, as crianças podem aprender muitas coisas bacanas e serem instigadas a pensarem de forma reflexiva sobre o cuidado com o planeta e a natureza. É preciso uma educação de respeito ao meio ambiente. As nossas crianças precisam urgentemente saberem que não se devem jogar lixo nas ruas e nem poluir os rios e mares com garrafas plásticas. Fico triste quando preciso entrar no meu mangue para tirar tanto lixo que as pessoas da minha comunidade jogam dentro dele. Tiro sacos e mais sacos de lixo todos os dias. Vejo o mangue chorar com tanto lixo. Vejo a vida dos bichinhos serem perdidas por causa da poluição do lixo. Não podemos permitir que continuem invadindo o mangue dessa forma.

É importante que professores, pais e responsáveis ensinem às suas crianças que os mangues são ecossistemas que trazem muitas vidas frágeis. A fauna e a flora do mangue são importantes para a sustentabilidade da natureza. Devemos educar desde cedo às crianças que moram próximas do mangue a não pescarem caranguejos fêmeas, também, pois poderemos contribuir para a extinção desses bichinhos. Também devemos ensinar às crianças que moram longe do mangue e até mesmo para aquelas que nunca conheceram um sobre a sua importância para as populações que moram em seu entorno de onde retiram os seus alimentos todos os dias.

Chamo atenção dos professores para conscientizarem os seus alunos a preservarem os mangues, pois são lugares onde existem muitas vidas e que se houver um desequilíbrio ambiental corremos o risco de nunca mais vermos esses bichinhos passeando pela lama que hoje é suja e fétida devido a poluição que se instalou nesses locais onde antes eu podia passear de canoa com os meus pés descalços sem me preocupar de que me cortaria num caco de vidro. Sim, o mangue está cheio de garrafas de vidro, de vasos sanitários velhos, de escombros e restos de materiais de construções. Quem está sujando o mangue? Nós, os humanos que reclamamos do calor, do tempo que ora esquenta ora esfria e nunca sabemos direito como vai ficar o dia. Por quê? Porque mexemos desenfreadamente na natureza.

Na infância, quando saía da escola a primeira coisa que eu fazia era correr para o meu mangue junto com o meu tio amado que me levava para passear de canoa. Havia muitos caranguejos naquele tempo no meu mangue, muitos camarões, muitos gaviões e urubus, alguns guaxinins e dezenas de chama-marés, lembro-me bem do tesoureiro que cortava as folhas do mangue para se alimentar. Naquela época o mangue era enorme, parecia um outro mundo. Era um mundo só meu onde eu podia ser a sua princesinha. A coisa que eu mais gostava de fazer naquele passeio com o meu tio era cuidar dos caranguejos pequenos que não conseguiam subir nas raízes das plantas e eu, cuidadosamente, os ajudava a chegar lá no alto perto dos seus pais. Eu era a menina mais feliz do mundo no meu mangue.

Os professores podem ensinar aos seus alunos a como cuidarem do mangue através de vídeos, aulas passeio, ilustrações, poesias e tantos outros materiais que podem se tornar didáticos e ensinarem de uma forma lúdica a preservação desse ecossistema tão importante ao meio ambiente. Sei que tem poucas poesias sobre o mangue para as criancinhas poderem assimilar com mais facilidade esse conhecimento, mas podemos mostrar para elas através de figuras dos bichinhos que vivem no mangue o quanto eles são importantes às nossas vidas. Do mangue muitas pessoas tiram os seus alimentos, e isso deve ser mostrado às crianças através da contação de histórias que envolvam marisqueiras e catadoras de caranguejos.

Tudo o que tem vida merece respeito. No mangue há uma diversidade de vidas. Os professores podem ensinar aos seus alunos através de vídeos como essas vidas surgem no mangue e o que elas significam para as nossas vivências. Muitas vezes a criança não sabe que o camarão que ela come nasceu num mangue ou que um bom goiamum comido numa barraca de praia veio do mangue também. É preciso educar a criança para preservar o mangue das ações humanas que cada vez mais estão o afetando. Se a criança puder fazer algo em prol da sua preservação já estará contribuindo para um mundo melhor e todos nós queremos que o mundo se torne melhor mesmo aqueles que acham fazerem algo quando na verdade só nos causam problemas desflorestando os nossos mangues para construírem casas dentro deles.

Na minha meninice eu tinha um lugar na canoa do meu tio e um pequeno remo. Eu remava a canoa com os meus bracinhos frágeis e ia entrando mangue adentro à procura de dragões e unicórnios, mas me dava conta que ali existiam bichinhos mais especiais que precisavam da minha ajuda. Vi, certa vez, um cardume de Tainhas pularem à frente da nossa canoa e quis pegar umas para mim. Eu sentia fome naqueles tempos, pois não tinha comida em casa. E o meu tio muito gentil pegou três Tainhas para eu almoçar naquele dia maravilhoso. Depois daquele dia, descobri que podia trazer comida para casa e alimentar a minha mãe e os meus três irmãozinhos menores. Eu tinha apenas oito anos e uma responsabilidade enorme pela frente.

No mangue, as crianças aprendem que se sujar faz bem à saúde. Aquela criança que vive presa dentro de casa e nunca brinca na areia corre sérios riscos de ter a sua imunidade baixa, ao contrário da criança que mora perto do mangue e se suja de lama, nada nas águas do rio, enfrenta o sol e a chuva para catar os seus caranguejos que se escondem dentro de buracos profundos. A mãozinha vai lá dentro do buraco e com jeito traz o bichinho para fora que servirá para o alimento do dia. Não estou dizendo aqui que toda criança deva se sujar de lama para ser saudável, mas que um pouco de contato com a natureza propicia o desenvolvimento de um sistema imunológico muito mais forte para o corpo.

Crianças devem conhecer de perto a natureza. Se desde cedo as crianças aprenderem que os mangues são locais de onde muitas famílias tiram os seus alimentos e precisam deles para continuarem vivendo claro será que elas terão cuidado de os preservarem, porque é desde a tenra idade que formamos o nosso espírito para o bem, ou seja, atentamos para as coisas que precisam de nós, da nossa compreensão e respeito. Respeitar o mangue é uma questão de ética e não só ambiental, por isso esse respeito deve ser trabalhado de forma interdisciplinar.

Os professores que adotam nas suas aulas materiais didáticos de preservação ao meio ambiente também podem incluir nesses materiais novas formas de ensino-aprendizagem sobre a preservação dos nossos mangues e a importância dos mesmos para o meio ambiente. É o que peço. É o que espero de um ensino muitas vezes que é pautado em currículos que nunca servirão à vida prática da criança e até mesmo da sua vida adulta.

Muitas vezes vi o sol de pôr no mangue. Eu sabia que era hora de voltar para casa, mas queria colocar o mangue para dormir antes de deixá-lo sozinho. Depois de amarrar a canoa junto com o meu tio num tronco de árvore, sempre dava um último olhar para o mangue para saber se ele estava dormindo mesmo e como via os caranguejos, siris, ostras, chama-marés e goiamuns tudo quietos sabia que podia ir pra casa feliz.

Ah! Se toda criança tivesse um mangue pertinho da sua casa assim como eu tenho. Àquelas que vivem em prédios e condomínios fechados podem ser presenteadas pelos seus professores, pais ou responsáveis com um passeio por esse ecossistema maravilhoso com tanta coisa linda para se conhecer! Vale a pena conferir o que o mangue tem de bonito pra nos mostrar! Eu sou a princesinha do meu mangue… você, professor, não quer tornar os seus alunos príncipes e princesas de um mangue também?

Vamos incentivar as crianças a adotarem um pedaço da natureza para que possam ter responsabilidades e cuidados para com ela, pois cada um de nós devemos desde cedo aprendermos a cuidar das coisas ao nosso redor e termos deveres para com o nosso planeta.

A vida nos mangues pede passagem. Eu cresci, mas nem por isso deixei de ser a princesa do meu mangue. Seja você, o príncipe ou princesa da natureza mesmo que ela só possa ser vista pela tela do computador. Há formas de transformarmos bits e bytes em grama verde e lama de mangue. Tente descobrir uma. Ame o mangue.

Rosângela Trajano, Poeta, escritora, filósofa e ativista ambiental

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 03/08/2021 

AQUECIMENTO - DEGELO DO ÁRTICO RUSSO RESULTA EM GRANDE PERDA DE ÁGUA DERRETIDA.

Aquecimento – Degelo do Ártico Russo resulta em grande perda de água derretida

As geleiras e calotas polares em dois arquipélagos no Ártico russo estão perdendo água derretida suficiente para encher quase cinco milhões de piscinas olímpicas a cada ano, mostram pesquisas.

University of Edinburgh*

Vista aérea de Severnaya Zemlya, no Ártico Russo
Vista aérea de Severnaya Zemlya, no Ártico Russo (crédito: zerskar via Getty Images)

Dados de satélite sugerem que a quantidade de gelo perdida entre 2010 e 2018 colocaria uma área do tamanho da Holanda sob dois metros de profundidade.

O aquecimento do Oceano Ártico parece desempenhar um papel fundamental na aceleração da perda de gelo de dois grandes grupos de ilhas que fazem fronteira com o Mar de Kara, dizem os pesquisadores.

Dados de satélite

A equipe de Edimburgo mapeou os dados coletados pelo satélite de pesquisa CryoSat-2 da Agência Espacial Europeia para monitorar as mudanças na altura da superfície e na massa das calotas polares e geleiras.

A comparação destes com dados climáticos para o mesmo período revelou uma ligação clara entre o aumento da temperatura atmosférica e oceânica e o aumento da perda de gelo de dois arquipélagos.

A análise da equipe mostra que os arquipélagos Novaya Zemlya e Severnaya Zemlya – que cobrem uma área combinada de cerca de 50.000 milhas quadradas – perderam 11,4 bilhões de toneladas de gelo a cada ano entre 2010 e 2018.

Aquecimento ártico

O afinamento do gelo já teve um grande impacto na estabilidade de algumas das geleiras e calotas polares da região, o que pode aumentar ainda mais a perda de gelo no futuro, diz a equipe.

Comparadas ao tamanho relativamente pequeno das geleiras, as calotas polares são grandes corpos de gelo com várias centenas de metros de espessura que cobrem áreas de até 8.000 milhas quadradas na região. Alguns deles armazenam gelo de até 12.000 anos, o que fornece aos cientistas valiosos registros de longo prazo do clima ártico.

Previsões aprimoradas

As descobertas do estudo se somam a um conjunto de pesquisas que sugere que as condições no Oceano Ártico estão se tornando mais parecidas com as do Atlântico Norte, que é muito mais quente.

O estudo pode ajudar a prever a futura perda de gelo em regiões com padrões semelhantes de mudança de temperatura atmosférica e oceânica e melhorar as previsões globais do nível do mar, diz a equipe.

A pesquisa, publicada no Journal of Geophysical Research: Earth Surface, foi apoiada pela Agência Espacial Europeia.

Uma versão de acesso aberto do documento está disponível aqui: https://www.research.ed.ac.uk/en/publications/accelerating-ice-mass-loss-across-arctic-russia-in-response-to-at

Referência:

Accelerating Ice Mass Loss Across Arctic Russia in Response to Atmospheric Warming, Sea Ice Decline, and Atlantification of the Eurasian Arctic Shelf Seas
Paul Tepes, Peter Nienow, Noel Gourmelen
Journal of Geophysical Research: Earth Surface, Volume 126, Issue 7, July 2021, e2021JF006068
https://doi.org/10.1029/2021JF006068

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Henrique Cortez *, tradução e edição.

NOSSAS NEGATIVAS TROUXERAM O PLANETA TERRA À BEIRA DA EXAUSTÃO.

insustentável

Nossas negativas trouxeram o planeta Terra à beira da exaustão, artigo de Cristiana Nepomuceno

Até quando as negativas das governanças globais e da população, como um todo, continuarão ocultando um problema latente na vida dos seres humanos?

No dia 19 de julho de 2019 a Terra entrou no “cheque especial”, esgotando sua capacidade de renovação de recursos daquele ano, depois de uma série de maus tratos, excesso de poluição, desmatamentos, uso excessivo de agrotóxicos e tantos outros problemas que prejudicam a saúde do habitat humano.

O planeta nos deu o sinal de que, se não mudássemos nossa forma de interagir com a natureza, estaríamos em perigo.

Mas, não e não! Isso era bobagem, afinal a Terra sempre se reinventa, seus recursos são inesgotáveis e ela suporta tudo. Afinal, serve para nos servir e nada mais.

Daí em diante, nada mudou, e no final daquele mesmo ano tomou-se conhecimento sobre o coronavírus, na China. Mas, poderia um vírus do outro lado do mundo chegar até aqui? Não e não.

Em março de 2020, o mundo “fechou”. Todos se viram isolados e o vírus tão temido chegou até aqui, afinal, vivemos em uma cadeia que conecta todos os seres vivos e também o meio ambiente.

Com o mundo parado, o céu ficou mais bonito, no silêncio das ruas, podíamos ouvir novamente o cantos dos pássaros, e as espécies voltaram a aparecer nas nossas janelas, como carcarás, canarinhos, jacus e outros. E assim, percebeu-se que com as ruas vazias e a redução de gases poluentes, o ar ficou mais leve. Como consequência, conseguimos aumentar a sobrevida dos nossos recursos naturais e tivemos o marco do Dia de Sobrecarga da Terra apenas em 22 de agosto daquele ano.

Mas, por que o mundo parou? Deveríamos voltar a produzir, e assim o fizemos, afinal, a natureza daria conta do recado, já que ela serve justamente para isso. Não?!

Com o tempo, acreditou-se que o vírus não existia, não era preciso usar máscara e, no Brasil, ele nem era tão agressivo assim… Chegamos ao número de mais de 550 mil mortos.

Mas, não! Isso ainda não era o suficiente.

E, de nossas casas, vimos que o desmatamento e as queimadas clandestinas se intensificaram, mesmo durante uma crise sanitária global, com a esperança de que a Terra se reinventaria e suportaria todos os danos causados. E, assim, continuamos vivendo nos excessos, consumindo muito, gerando muito lixo e causando uma sobrecarga irreversível em nosso ecossistema.

Não e não! Ainda está tudo bem.

E, continuamos seguindo nossas vidas, ignorando que o caos em que nos encontramos é consequência de tudo que temos plantado até aqui. Desmatamos florestas, retiramos o habitat natural de animais, que passam a invadir as cidades, e depois reclamamos dos vírus que eles trazem até nós.

A Terra deu e está dando sinais claros de cansaço.

O clima mudou, temos o maior frio dos últimos anos e até mesmo a neve chegou ao Brasil, um país tropical. A água, um recurso abundante e considerado infinito em nosso país, resolveu ficar esgotável e com isso também enfrentamos uma das maiores crises hídricas vistas por aqui.

Não, não e não!

Até quando as negativas das governanças globais e da população, como um todo, continuarão ocultando um problema latente na vida dos seres humanos? Retrocedermos a data do Dia de Sobrecarga da Terra, justamente no período em que voltamos a ocupar as ruas, só mostra o quão grande são nossos impactos na vida e na renovação de recursos em nosso planeta.

A Terra chegou em sua exaustão, mudanças climáticas estão acontecendo a todo momento e o que acontece com um, pode acontecer com todos. Nada nos difere do “todo”, somos conectados e dependemos dos animais, da água e das plantas para sobrevivermos.

Não é a Terra que precisa se renovar, mas sim nós, como sociedade, para pararmos de caminhar rumo à própria extinção.

Dra. Cristiana Nepomuceno de Sousa Soares – É graduada em Direito e Biologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Pós-Graduada em Gestão Pública pela Universidade Federal de Ouro Preto- MG. Especialista em Direito Ambiental pela Universidade de Alicante/Espanha. Mestre em Direito Ambiental pela Escola Superior Dom Helder Câmara.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 04/08/2021

GAIA, ANTROPOCENO E NATUREZA - TRÊS CONCEITOS PARA COMPREENDER A TRANSIÇÃO EM CURSO.

antropoceno

Gaia, Antropoceno e natureza – três conceitos para compreender a transição em curso

O primeiro ponto que temos de imaginar é que Gaia não é natureza; Gaia é um sistema integrado de geosfera, biosfera, antroposfera e tecnosfera

Gaia, Antropoceno e natureza: três conceitos para compreender a transição em curso. Entrevista especial com Rodrigo Petronio

“A crítica que Latour faz à modernidade não diz respeito a uma tentativa de retomar uma “ciência integral”, mas simplesmente entender como o processo moderno leva a uma purificação dos saberes, que vão se separando”, afirma o pesquisador

IHU

Bruno Latour, antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência francês, figura entre os chamados “colapsologistas”, um grupo de biólogos, antropólogos, engenheiros ou climatologistas que investigam a mudança de época em curso a partir da inter-relação de três conceitos centrais: Gaia, Antropoceno e natureza.

Em Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno, traduzido e publicado no Brasil no ano passado, o autor reúne conferências proferidas em EdimburgoGaia, explica Rodrigo Petronio, é o “conceito que conduz todas as conferências” e tem uma influência direta do pensador James Lovelock. “A ideia básica de Lovelock na teoria Gaia é que Gaia seria um sistema, mas um sistema que tem uma espécie de auto-organização extremamente sofisticada, nuançada e instável. O primeiro ponto que temos de imaginar é que Gaia não é natureza; Gaia é um sistema integrado de geosferabiosferaantroposfera e tecnosfera“. A natureza, por sua vez, pontua, “não é algo dado, mas construído pelas diversas naturezas que determinam aquilo que a natureza possa vir a ser ou aquilo que ela é. Sempre que falamos de natureza, estamos falando de uma noção que é sócio-construída e não algo dado. Os agentes não-humanos também produzem a necessidade de os humanos descreverem os seus ‘comportamentos’, ‘atividades’, ‘propriedades’, porque o humano está sendo convocado pelos não-humanos a definir isso que depois ele vai naturalizar como ‘natureza’”.

Já o conceito de Antropoceno, mais recente na literatura e bastante incipiente no debate científico, leva em conta as evidências sobre o impacto do ser humano no planeta. “Essas evidências, é sempre importante demarcar, não são hipóteses; elas já são comprovadas no nível empírico. Existe algo que Latour chama de mutação climática, que decorre de alterações atmosféricas, climáticas, nos diversos estratos da Terra, entendida como um sistema. Essas alterações já estão dadas. Reuniões periódicas da sociedade estratigráfica internacional, composta por químicos, biólogos e geólogos que fazem cruzamentos de dados, tentam aferir qual é o impacto dessas alterações na Terra“, explica.

A seguir, publicamos, em formato de entrevista, a conferência virtual de Rodrigo Petronio no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, durante o Ciclo de Estudos A (in)existência de um mundo comum. Pensamento vivo e mudanças possíveis à luz de Bruno Latour.

Rodrigo Petronio é escritor e filósofo e atualmente é professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital – TIDD/PUC-SP sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. Ainda é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Possui dois mestrados: em Ciência da Religião, pela PUC-SP, sobre o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada, pela UERJ, sobre literatura e filosofia na Renascença. Entre suas publicações de poemas, destacamos História Natural (São Paulo: Gargântua, 2000), Assinatura do Sol (Lisboa: Gêmeos R, 2005), Pedra de Luz (Lisboa: A Girafa, 2005), entre outros. Atualmente divide com Rodrigo Maltez Novaes a coordenação editorial das Obras Completas do filósofo Vilém Flusser pela Editora É.

Confira a entrevista.

IHU – Com quais autores Latour dialoga em Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno e quais são os macroconceitos fundamentais para compreendê-la?

Rodrigo Petronio – Essas são as lectures [palestras] que Latour proferiu em Edimburgo em 2013. Essas conferências foram reunidas numa edição francesa de 2015 e, depois, publicadas no Brasil aos cuidados da Editora Ubu no ano passado (2020), com tradução da Maryalua Meyer e revisão técnica do sociólogo André Magnelli. Apresento essas informações para mostrar que este é um debate bastante recente. E temos a oportunidade de ter essa edição traduzida com poucos anos de defasagem do original francês.

Quando abordamos a obra de Latour, a primeira sensação que temos, principalmente nas conferências, não em outros livros, é que ele é um autor relativamente fácil, por causa da oralidade. Mas logo o leitor percebe que essa facilidade vai se complexificando ao longo da leitura.

Conceitos

Vou fazer uma introdução aos macroconceitos que estão no próprio título do livro para entendermos como Latour está dialogando com alguns autores e para compreendermos o cerne do livro.

GaiaAntropoceno e natureza são três conceitos imensos, a começar pelo conceito de natureza, que é um dos mais vastos da história da filosofia. Mas Latour, como um antropólogo e filósofo da ciência, se restringe a lhe dar uma abordagem mais específica, dentro do campo dos estudos das ciências (science studies), área na qual ele é mundialmente conhecido.

Gaia

Gostaria de começar falando de Gaia porque este conceito conduz todas as conferências. Na verdade, é um conceito criado e estabilizado pelo pensador James Lovelock. Ele aparece em diversos momentos da obra e, mesmo quando Lovelock não é nomeadamente referido, situa-se o tempo todo no pano de fundo das conferências porque todas estão trazendo questões sobre o humano a partir desse conceito.

Antropoceno

Antropoceno é um conceito que está começando a ser estabilizado e conta com um debate bastante incipiente, tendo em vista a sua centralidade. Esse conceito foi cunhado pelo químico Paul Crutzen há pouco mais de uma década, tendo em vista diversas evidências científicas sobre o impacto do ser humano no planeta. Essas evidências, é sempre importante demarcar, não são hipóteses; elas já são comprovadas no nível empírico. Existe algo que Latour chama de mutação climática, que decorre de alterações atmosféricas, climáticas, nos diversos estratos da Terra, entendida como um sistema. Essas alterações já estão dadas. Reuniões periódicas da sociedade estratigráfica internacional, composta por químicos, biólogos e geólogos que fazem cruzamentos de dados, tentam aferir qual é o impacto dessas alterações na Terra. Por isso, é sempre importante deixar claro que não estamos lidando com hipóteses, mas com evidências.

 

Por que o Antropoceno ainda não foi oficializado dentro do debate científico, como, de fato, uma nova época da Terra? Porque ainda não se tem uma quantidade de informações para se propor qual, exatamente, é a parcela humana nessa transformação e nessa mutação. Mas que a mutação existe, existe. Entretanto, talvez a estabilização do termo Antropoceno seja apenas uma questão de tempo, como acredito.

Quando falamos de épocas humanas, estamos falando de recortes de tempo de milhares de anos. Estaríamos saindo do Holoceno, uma época de estabilização da vida na Terra, que dura de 10 a 12 mil anos, e ingressando nessa nova época humana, que está prestes a vir e já está sendo anunciada. Para alguns, ela já existe e já estamos nessa nova época. A bibliografia especializada sobre o Antropoceno sempre enfatiza o aspecto de que, embora isso possa resvalar sobre o humano e tenha uma participação humana, o Antropoceno é uma mutação de profundas e abissais transformações em todo o sistema Terra, em todas as estruturas e, principalmente, nos quatro grandes níveis: geosfera, biosfera, antroposfera e tecnosfera. É uma mutação não apenas do clima e da atmosfera, mas da vida como um todo, do humano, uma alteração da biota, que é a camada de vida que circunda a Terra e, também, uma alteração geológica e fisioquímicaLatour está tentando imaginar como podemos contornar esse conceito. Apenas assim poderemos trazer o maior número de subsídios para compreender esse nível de complexidade.

Quando se fala de complexidade, também há um debate largo para a compreensão do Antropoceno. No entroncamento desse debate ocorre a convergência de duas grandes matrizes teóricas. Uma é a teoria dos sistemas, de meados dos anos 1940, de Ludwig von Bertalanffy, Niklas Luhmann e outros teóricos sistêmicos, cuja prerrogativa seria uma ideia de que os sistemas poderiam ser unificados a partir do conceito de metassistema e que todos os processos vivos e não-vivos podem ser entendidos do ponto de vista sistêmico. A ambição da teoria sistêmica é praticamente correlata à ambição da cibernética, que também se desenvolveu paralelamente, mas acabou tomando outros rumos.

A outra é a teoria da complexidade. Esse é um assunto que sempre surge quando debatemos o Antropoceno. Só que a teoria da complexidade é referida quase sempre ao pensamento e à obra de Edgar Morin, que é brilhante, mas é importante frisar que a complexidade não se reduz às linhas estabelecidas por ele. Existem diversos autores que trabalham a noção de complexidade em diversas linhas, ou seja, existe um pluralismo do que podemos chamar de complexidade, assim como também um pluralismo sistêmico.

Separação entre ciências da vida e ciências físicas

Como Latour se posiciona diante disso? Para responder a esta questão, temos que circunscrever Gaia. Recuar e entender qual é o horizonte conceitual com o qual Latour está dialogando. O horizonte conceitual é o de Gaia, de James Lovelock. A proposta de Lovelock é criar uma teoria que seja uma dinâmica planetária e celular capaz de compreender a Terra como um todo. O problema tratado é extremamente delicado e vem da teoria do conhecimento, da epistemologia, da filosofia da ciência desde o século XVIII, mas é no século XIX que ele adquiriu um contorno mais difícil de ser delineado. O problema básico é a separação entre ciências da vida e ciências físicas. Esse problema é posto como uma das bases da chamada ciência contemporânea ou ciência da complexidade, e há algumas investigações históricas brilhantes, dentre as quais a de Isabelle Stengers e a do químico russo Ilya Prigogine, Prêmio Nobel, que tentam entender como seria possível a junção desses dois grandes campos do conhecimento.

Todos os critérios que definiram a vida desde o século XIX, como teleonomia, autorreplicabilidade, toda a biologia, que irá culminar na biologia sintética, fazem uma grande demarcação entre orgânico e inorgânico, entre sistema vivo e meio inorgânico e não-vivo. Essa demarcação, a partir do século XIX, começa a sofrer alguns abalos, principalmente com a segunda lei da termodinâmica e todas as perspectivas que colocam em xeque a noção de que o universo é regrado por leis absolutas, eternas e imutáveis, como está na premissa newtoniana e na premissa moderna einsteiniana. Seria preciso, então, pensar a partir de vetores e, sobretudo, do vetor-tempo. Segundo essa perspectiva, não são apenas os sistemas dissipativos, como a vida, que estão vetorizados. O próprio universo, por meio da entropia, está vetorizado e é preciso um vetor temporal para compreendê-lo a contento, como proposto por Prigogine e Stengers. Essa é uma aporia, um dilema que vai atravessar o século XX, porque com a biologia sintética esse problema da heterogeneidade entre orgânico e inorgânico continua sendo posto e mesmo se aprofunda. Essa questão continua atual porque é preciso unificar os campos: por que a vida seria algo totalmente heterogêneo e distinto dos demais processos da natureza? E por que ainda não é possível criar uma teoria unificada?

 

teoria darwiniana tem muitas interpretações, mas, majoritariamente, é entendida como uma sobrevivência da espécie ou uma luta da espécie pela adaptabilidade – sempre como uma resistência ao meio. Esse meio é entendido como algo dado ou previamente existente, enquanto a vida vai se diversificando em busca da sobrevivência. Gera assim maior diversidade e um virtual potencial aumento de complexidade, sempre em confronto ou contraste com o meio. A teoria Gaia de Lovelock é uma tentativa de dirimir essa dicotomia, esse dualismo. Do meu ponto de vista, os dualismos são sempre a fonte de todo o mal. Então, toda teoria que tenta superar os dualismos é uma teoria bem-vinda, mas, ao mesmo tempo, é difícil de ser instituída. Os motivos para essa dificuldade de institucionalização são diversos, não cabem nesta exposição.

IHU – Como Lovelock compreende Gaia?

Rodrigo Petronio – A ideia básica de Lovelock na teoria Gaia é que Gaia seria um sistema – voltamos para a teoria dos sistemas –, mas um sistema que tem uma espécie de auto-organização extremamente sofisticada, nuançada e instável. O primeiro ponto que temos de imaginar é que Gaia não é natureza; Gaia é um sistema integrado de geosferabiosferaantroposfera e tecnosfera. Essa é a hipótese básica de Lovelock. Aliás, como curiosidade, Lovelock tem mais de cem anos e acaba de publicar um livro [Novaceno: o advento da era da hiperinteligência] sobre a vida artificial, que ele tem definido como “Novaceno”, que seria uma alternativa ao termo Antropoceno para se pensar uma nova etapa da vida e da Terra a partir da artificialização da vida.

É preciso ter muito cuidado: Gaia não é natureza e não é natureza entendida a partir do binarismo de gênero extremamente nefasto, segundo o qual se imagina a natureza como feminina, como uma natureza que está o tempo todo correndo riscos, uma natureza frágil. Essa associação binária é extremamente perniciosa. Lovelock não defende a natureza como algo frágil; ela é potente e é muito mais fácil nós nos extinguirmos do que os demais seres vivos da Terra. Quando falamos de Antropoceno, estamos falando de um paradoxo: é uma época da Terra cujo protagonismo é humano, mas que poderá nos conduzir à extinção – extinção dos humanos e não das outras formas de vida, porque elas existem há bilhões de anos. Quando falamos de Gaia, tentamos pensar nesses equilíbrios instáveis.

 

IHU – Qual é a leitura de Latour dessa teoria?

Rodrigo Petrônio – Latour lê essa teoria Gaia e a teoria da instabilidade constante, que já estão na primeira conferência, “Notas sobre a instabilidade do conceito de natureza”, na qual ele está demarcando a questão da instabilidade. Como eu disse, isso vem de um problema epistemológico que permeia diversas ciências desde o século XIX, que é o problema das chamadas leis lineares, causalidades lineares, que começam a não dar mais conta da explicação de fenômenos termodinâmicos, de fenômenos ligados a processos de calor, transformação, mutação, antropia. Essa instabilidade começa a ser vista em diversos pontos observacionais de diversas ciências. Isso dá ensejo à tentativa de se construir os chamados sistemas não lineares que seriam baseados em uma lógica causal não clássica e, por isso, contemporânea, ou seja, complexa, e também à noção de estar fora do equilíbrio – sistemas fora do equilíbrio. Gaia é um sistema fora do equilíbrio ou uma tentativa de homeostase de equilíbrio dos diversos atores – pensando a partir de Latour – que estão envolvidos nesse sistema que podemos definir como a Terra em todas as suas dimensões e não apenas no sentido biológico, físico ou humano.

Uma última prerrogativa muito importante de Lovelock é que a biologia transforma a física ou as propriedades geológicas. O sistema Terra existe até nas suas implicações químicas, atmosférica e geológica porque a vida transforma e concorreu também para a transformação geológica do planeta. Essa é uma tese importante porque entra na questão de Latour da própria centralidade do conceito de ação e fazer ou aquilo que Latour define como “fazer fazer”, ou seja, o que nos faz fazer algo? Estamos dentro de uma filosofia e de um pensamento latouriano extremamente pragmático, que tem a ver com os agentes, com as agências, com os atores humanos e não-humanos e essa “natureza”, esse sistema, ou essa rede – para usar o termo de Latour – está conduzindo diversos atores a fazerem algo, ou fazendo diversos atores fazerem algo. Isso parece uma tautologia porque a própria noção de feito, de fazer, de performar, em Latour, é uma noção bastante específica, central. Pela etimologia e pelos jogos que ele estabelece acerca do fazer, do feito, o termo tem essa noção que é socioconstrutivista que não implica apenas uma ressignificação global do conceito de natureza, mas implica também uma ressignificação total do conceito de cultura, de agência, de humanos e não-humanos.

 

IHU – Como Latour compreende a modernidade?

Rodrigo Petronio – Jamais fomos modernos – que é quase um manifesto – é uma obra importante para compreendermos a premissa de Latour e a definição dele de modernidade. A premissa dele é a da depuração, da purificação: os saberes são constantemente purificados e isso é nocivo porque perdemos a noção não de um todo – porque na teoria Gaia não existe necessariamente uma totalidade, e em Latour também não existe uma totalidade, assim como não existe na obra de Peter Sloterdijk, um dos autores seminais para o livro das oito conferências –, mas isso gera uma espécie de rasgo ou processo de desarticulação da rede por meio da qual teríamos que entender todos os saberes. Essa rede não é apenas um esforço transdisciplinar das ciências entre si, mas é uma teoria vasta que envolveria agentes e atores econômicos, sociais, políticos, científicos, ideológicos, produtivos, meramente não-humanos, tanto no sentido tecnológico e tecnocientífico envolvidos nos milhares de interfaces dos humanos com os animais, os vegetais e os processos biológicos de um modo geral.

teoria do ator-rede (TAR) de Latour se desenvolve nesse horizonte de tentativa de lidar com esse impacto promovido pelos processos de purificação. É uma crítica à modernidade entendida como grande agente das purificações. As purificações seriam o grande problema nuclear do século XXI para que se possa pensar a ciência para além da ciência. Existe um debate em filosofia da ciência sobre externalistas e internalistas, aqueles que veem a ciência a partir de motivações externas, ideológicas, pressões econômicas, ou aqueles que veem a ciência simplesmente como uma imanência de processos laboratoriais autônomos. Quando nos deparamos com essa dualidade, temos que recorrer a Latour porque ele está tentando dissolver as dualidades.

 

A crítica que Latour faz à modernidade não diz respeito a uma tentativa de retomar uma “ciência integral”, mas simplesmente entender como o processo moderno leva a uma purificação dos saberes, que vão se separando. Nessas conferências, o principal problema a ser superado seria a dualidade matricial que Latour identifica como natureza/cultura. Para que definamos a natureza como um todo, é preciso que haja uma separação do humano em relação a esse todo natural, porque há um processo de homogeneização do que chamamos de natureza.

Uma das principais contribuições do biólogo estoniano Jakob von Uexküll, que é importante para Latour, para a biologia existencial é imaginar os diversos meios circundantes dos diversos seres vivos. A crítica que ele faz à taxonomia da biologia clássica é que ela teria homogeneizado a natureza como natureza, ou seja, como se houvesse um pano de fundo comum, comunitário, ou seja, um mundo comum. Para ele, não haveria um mundo exatamente comum dos diversos seres vivos, mas uma mundaneidade ou um processo de proliferação de mundos. Justamente porque o humano se acredita como portador ou habitante de uma plataforma especial, ele consegue produzir a plataforma geral, a qual cria diversos problemas epistemológicos porque ela nos impede de perceber a pluralidade de mundos dentro do mundo homogêneo que chamamos de natureza. Uexküll é um autor que percorre essas conferências de um modo um pouco mais sutil.

 

IHU – Como Latour trata o conceito de natureza a partir dessa perspectiva?

Rodrigo Petronio – Latour é um autor que parece simples, mas tem vários níveis de complexidade e a própria noção de rede está implícita na escrita latouriana, como uma escrita em rede, no sentido de que ele está mobilizando esses autores para dirimir esses problemas. Todas as alternativas infernais, como diz Stengers, todas as oposições são dissolvidas por Bruno Latour: natureza e cultura, matéria e mente, humano e a natureza não-humana que seria homogênea. Essas conferências estão gravitando em torno disso e por isso a insistência de Latour em criticar o conceito de natureza. Essa é uma crítica que percorre todas as conferências, e que precisa ser vista com lupa, com muitas nuances. A crítica que ele faz ao discurso ecológico não quer dizer que não vejamos como grande necessidade a preservação de certos biomas ou certos seres vivos. A crítica que ele faz diz respeito ao fantasma da natureza, desse conceito hegemônico que resvala sobre certos discursos que entendem a ecologia como meramente natural. Esses discursos têm uma dupla inscrição e também promovem um problema político, ideológico e antropocêntrico porque evitam que pensemos a partir da rede. O próprio discurso ecológico está dentro da modernidade purificadora, que produz a separação dos diversos saberes e rasga a rede dos diversos atores e agências e produz esse problema.

Na primeira conferência, Latour menciona a instabilidade da noção de natureza. Ele está o tempo todo pensando, como desenvolve em Políticas da Natureza, que a natureza não é algo dado, mas construído pelas diversas naturezas que determinam aquilo que a natureza possa vir a ser ou aquilo que ela é. Sempre que falamos de natureza, estamos falando de uma noção que é sócio-construída e não algo dado. Os agentes não-humanos também produzem a necessidade de os humanos descreverem os seus “comportamentos”, “atividades”, “propriedades”, porque o humano está sendo convocado pelos não-humanos a definir isso que depois ele vai naturalizar como “natureza”.

 

A questão dele é propor uma mutação da nossa relação com o mundo. Essa mutação passaria pela contemplação ou pela hipótese de haver essa pluralidade de mundos possíveis. Esse pluralismo ontológico está em Uexküll, em Gabriel Tarde, no conceito de associação, que é importante para Latour porque as associações podem ser humanas ou não-humanas – e com isso fugimos da metáfora antropocêntrica de sociedade e de como projetamos metáforas antropocêntricas de sociedades para a sociedade das abelhas, a sociedade das formigas, ou projetamos antropocentricamente o conceito de cultura. As associações são modos pelos quais esses mundos convergem e convivem, e precisamos de uma mutação em relação ao nosso conceito e nossa relação com o mundo. Isso está implicado numa divisão que Latour estabelece entre os humanos e os terrestres. Os terrestres são aqueles que têm alguma sensibilidade para a questão antropocênica, ou seja, da mutação climática – Latour sempre faz questão de usar o termo “mutação” porque o termo “crise”, para ele, não serve. Crise nos dá a impressão de algo passageiro: estamos em crise e, depois de resolvê-la, tudo vai voltar ao que era antes. É como pensar a pandemia como uma crise, que depois tudo vai voltar ao normal, mas não vai. Estamos passando por transformações e a mutação é uma mudança de grande envergadura, uma mudança de grande narrativa de, no mínimo, dez, 12 mil anos. É isso que estamos vivendo.

Latour faz uma desconstrução do conceito de natureza. Como a ecologia pode enlouquecer? Ela pode enlouquecer quando ela tenta se haver com um conceito de natureza não natural. Ou seja, com um conceito de redes de agentes de atores e não necessariamente com algo dado. Outro ponto importante é o recurso ao mundo natural que acaba sendo uma faca de dois gumes porque ele gera reivindicações que podem ter uma pragmática específica e até uma ação que é legítima e que todos podemos endossar, mas que continua mantendo o processo de purificação da modernidade, o qual é o cerne de todo o problema porque nos inviabiliza de ver a rede e a complexidade de todos esses agentes, agências e processos.

Pseudocontrovérsia contra o clima

Latour fala da pseudocontrovérsia contra o clima. O que é uma pseudocontrovérsia? É óbvio que não existe controvérsia. Latour nos atenta que os ecocéticos acabam tendo uma visão bastante realista de alguns processos e isso pode dar ensejo a uma maior reflexividade por parte daqueles que estão pensando seriamente o Antropoceno. Os ecocéticos não são obscurantistas, mas uma parcela de cientistas e intelectuais que participa do debate público e acredita que não existem referências ou indícios suficientes para colocar o humano no protagonismo dessa mutação. Então, ele traz essa questão da “pseudocontrovérsia” do clima. E essa é uma questão que também me coloco: se temos a evidência de que a mutação existe, o fato de [o protagonista] ser o humano ou o não-humano não nos evita de termos que enfrentar o problema. Então, a ideia de ser uma “pseudocontrovérsia” é evidente. Se isso vai minimizar o processo desenvolvimentista, então alguns críticos do Antropoceno podem dizer que isso poderia gerar um processo de refugo e de fluxo de desenvolvimento econômico por diversos motivos, mas a questão é que a Terra, os ativos “naturais”, ou seja, o sistema Terra já é um ativo econômico. O Antropoceno, haja vista o debate climático entre todas as nações e potências do mundo, já é um ativo econômico e isso faz parte da “pseudocontrovérsia”, porque é impossível imaginar que não se possa debater algo que já está cotizado na bolsa. Isso também traz esses contornos que Latour nos expõe tão bem.

Noção de mundo

Uma frase dele, num dos subcapítulos, me chama atenção: “Onde se busca passar da ‘natureza’ ao mundo”. A noção de mundo é mais policêntrica, o mundo não é necessariamente natural, o mundo, pensando heideggerianamente, está o tempo todo se construindo dentro de meios circundantes e também de esferas. Por isso, “natureza” está sempre entre aspas para que consigamos suspender a contento esse conceito; essa é a grande luta de Latour nesse livro. Um dos traços estilísticos das conferências é a ambiguidade que ele trabalha nos conceitos. A noção de “natureza”, como desanimar e não desanimar a “natureza”, a figura profana da (natureza), como invocar os diferentes povos (da natureza). Esse recurso quase que fenomenológico e suspensivo dos conceitos é bastante rico porque nos coloca o tempo todo o dilema, ainda que ele não apresente a solução. Essa é uma das formas mais produtivas de se pensar hoje em dia para fortalecermos a interrogação, aliás, a filosofia não é aquela que fornece respostas, mas a que formula as melhores perguntas. Então, muitas vezes, é melhor nos atermos às perguntas, às questões e multiplicá-las do que produzir falsas soluções, tendo em vista o solucionismo, que é o modelo de negócios do Vale do Silício, que é um mundo de produção de milhares de soluções todos os dias, mas, como sabemos, esse solucionismo não toca o cerne do problema pelo qual estamos passando.

questão da religião, para Latour, é bastante importante. Ele tenta entender uma nova religião da Terra, ou um religamento ou discursos religiosos que invoquem a “natureza” e como isso tem um caráter paradoxal e contraditório. No fundo, ele vai recorrer à inviabilidade dessa religião da natureza. Ela produziria um impacto negativo e por isso ele coloca a questão: estamos indo rumo a uma “natureza” que não seria mais uma religião? Ele já coloca de saída o problema de definição de religião – que é complexo na epistemologia. Seria preciso profanar a “natureza”? Isso é paradoxal, ou seja, é preciso profanar o conceito de “natureza” para salvar os processos – incluindo a “natureza” – para salvar todos os agentes da rede.

Geo-história

Um ponto que acho importante e que entra no cerne do que eu havia comentado no início, e que diz respeito à conferência três, na qual Latour esmiúça um pouco mais a teoria do Lovelock, é a analogia que ele faz entre Galileu e LovelockGalileu, por meio da observação astronômica, conseguiu compreender uma certa unidade dos planetas do universo. É como se ele tirasse a centralidade da Terra, do sistema ptolomaico, e como se produzisse uma espécie de simetrização – para usar um termo de Latour – da Terra em relação às demais unidades astronômicas do universo. Lovelock teria feito o movimento contrário e, de certa forma, complementar. Ao observar a Terra de um satélite, a partir de Marte, ele pode definir a imensa e surpreendente singularidade da Terra em relação ao universoLatour simetriza essas duas conquistas da ciência – e diria até complementares –, porque cada vez mais o horizonte se expande num universo de trilhões de galáxias e, ao mesmo tempo, cada vez mais, compreendemos a singularidade da vida e a especificidade da vida, porque a Terra é uma só. Isso nos ajuda a pensar, como Latour diz, não a partir da pós-história, mas de uma geo-história, ou seja, sermos convocados a pensar a história implicada nos processos geos, bios, antropos e técnicos. Então, temos a possibilidade de coimplicação e de pensar a singularidade, isto é, pensar os processos como sendo contínuos.

Há uma frase de William James que acho incrível e que diz mais ou menos assim: para se pensar a consciência é preciso pensar num contínuo da consciência na formação do universo. Pensadores processuais, da filosofia processual, estão pensando a partir de movimentos processuais, que têm uma determinada continuidade. No pragmatismo de William James, ao qual Latour também tem recorrido cada vez mais nos seus escritos, a consciência não emergiu do humano; ela é uma emergência contínua e inacabada dos diversos processos cósmicos e se materializa de modos distintos em diversos seres. Esse é um modo de pensar a consciência distribuída, é um modo de pensar a partir desses processos contínuos que seriam internos ao modelo-rede, ao modelo latouriano, e ao modelo de pensamento de Lovelock, da teoria instável e sistêmica, cheio de explosões e atritos e controvérsias justamente porque a TerraGaia, é isso.

Qual é um dos eixos principais por meio do qual Latour permeia esses dois conceitos, Antropoceno e Gaia? Sobre Gaia, ele rola uma bibliografia crítica ao Lovelock e faz um trabalho meticuloso de entender os limites e as controvérsias. O próprio Lovelock, assim como Morin, assumem as críticas e trabalham dentro da esfera crítica às suas próprias teorias – isso é algo que sempre deveria ser feito no ambiente intelectual científico. Na quarta conferência, o diálogo maior de Latour é com Sloterdijk, para pensar o que Latour chama de imagem do globo.

IHU – Em que consiste essa imagem e como ela é utilizada por Latour em sua teoria?

Rodrigo Petronio – O globo é um conceito de Sloterdijk. A quarta conferência se chama “O Antropoceno e a destruição (da imagem) do globo” – de novo com esse caráter suspensivo de interrogação, de indecidibilidade. Essa é a questão que Latour vai trazer. Para entender um pouco essa questão do globo, vou fazer um discurso muito rápido a partir da teoria das esferas, de Sloterdijk.

Na esferologia, esse é um projeto em três volumes, que contempla Bolhas, Globos e Espumas. Essas três morfologias estão dentro de um conceito matricial que é o de “esfera”. Ao longo desses três volumes, Sloterdijk dá diversas definições do que são as esferas, mas elas são relações sistema-meio, ou ontologias diádicas, ou seja, ontologias de dois, e esses dois são inextrincáveis, não são separáveis, ou as esferas também são ontologias relacionais, dentre outras definições. De um modo geral, na minha leitura, Sloterdijk cria uma espécie de exponencialização do princípio do mundo heideggeriano fenomenológico e uma exponencialização do meio circundante (Umwelt) do Uexküll, dentro de uma premissa metabiológica. Ou seja, Sloterdijk está pensando os sistemas a partir dos sistemas metabiológicos, com o acréscimo de se pensar na chave relacional.

Essas três morfologias são morfologias específicas, que decorrem das relações que Sloterdijk define como interior-exterior e sistema-meio. Essas relações são ontológicas, mas pressupõem uma espécie de relacionalidade com a teoria da relacionalidade infinita: todos os seres de todas as gradações e reinos e enquadramentos ontológicos que possam existir estão em relação. E o nível em que essa relação se dá é o que caracteriza essas morfologias. Estritamente na conferência quatro, Latour está tratando da destruição da imagem do globo – e Latour está pari passu com Sloterdijk.

 

As bolhas são o que Sloterdijk chama de sistemas imunológicos microesféricos ou relação de intimidade forte desses seres que habitam o sistema e o meio. Essas relações decorrem de muitas coisas que não vou conseguir explicar aqui, mas a primeira delas é o que ele chama de filosofia mamífera, que é um modo metabiológico de transferência por meio do qual os seres vivos, incluindo principalmente os mamíferos, domesticam seu meio exterior, transformam esse meio exterior e são transformados pelo meio exterior. A base da teoria da autopoiesis, que está em Humberto Maturana, em Niklas Luhmann, em Sloterdijk, também paira como uma teoria base da teoria Gaia no sentido de que a vida não apenas se adapta e não apenas transforma, mas também é transformada por aquilo que ela transforma – é o “fazer fazer” de Latour. Então, a transformação do meio pode gerar diversas morfologias, mas quando ela está no nível microesferológico, é aquilo que Sloterdijk chama de bolhas. Essas bolhas podem ser exponencializáveis e podem gerar o que Sloterdijk chama de ontologias imperiais: grandes regimes de sentido, que se exponencializam e se expandem para todas as direções, e dão ensejo a estruturas imperiais e políticas de grande duração.

Os globos têm uma relação muito forte com o processo imperial, que é a formação dos impérios desde a antiguidade: o babilônico, o mesopotâmico, o assírio, o chinês, o medieval cristão, o grego, o romano, o mongol. Todos esses imperialismos estão “globalizando” a Terra. Estou usando “globalizando” entre aspas porque a acepção de globo de Sloterdijk é totalmente contraintuitiva. Ela é praticamente o oposto do que chamamos de globalização. A globalização no sentido corrente é aquilo que as sociedades e as tecnologias produziram, aquilo que o capitalismo produziu, uma certa uniformidade comunicativa, que uniu todos os pontos da Terra e produziu a hegemonia e expansão do capitalismo. A globalização é o modo de ser do capital, do fluxo de dinheiro e da informação no mundo a partir dos anos 1980 e 1990.

Para Sloterdijk, o globo forma um princípio imunológico, ou seja, é a maneira pela qual pequenas bolhas, grupos, crenças, tribos, famílias, etnias e religiões, conseguem exponencializar seus sistemas de crenças e dominar, quase sempre com violência, outras bolhas e construir uma imagem do mundo. Teríamos muito que discorrer sobre isso, porque só o volume de Sloterdijk sobre o globo tem mais de 800 páginas. Ele faz uma grande cartografia da formação do planeta Terra a partir dos mapas-múndi, que são muito curiosos de serem analisados do ponto de vista morfológico. O globo é a construção de uma totalidade hipotética, feita por uma não totalidade dominante de uma bolha ou mais bolhas que estão domesticando determinado território, crenças, no sentido de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Essas bolhas que chegam ao poder começam a desterritorializar as diversas crenças, etnias, religiões, populações, cidades, para poder homogeneizar, de certa maneira, nessa imagem relativamente unívoca, que é a imagem do globo.

 

Globalização

Então, o processo da globalização, para Sloterdijk – e isso Latour segue pari passu –, começou na antiguidade e a globalização terrestre, que é como ele a define, termina no século XVII e mais tardiamente no século XVIII, porque é o momento em que a cartografia da Terra é, em certa maneira, mapeada em seus escrutínios. Existe a emergência de uma nova morfologia a partir do século XVI – que é praticamente sinônimo de modernidade para Sloterdijk –, que é a morfologia da espuma”, que tem a ver com o que ele define como catástrofe dos globoscolapso esferológico dos globosSloterdijk está trabalhando com sistemas imunológicos, pensando a partir de imunização. O que é a catástrofe do globo? É a inviabilidade de uma macro imagem capaz de produzir a imunização dos seres humanos.

Ele lê Nietzsche, por exemplo, e a “morte de Deus” não é apenas uma crítica à religião cristã, porque isso seria uma banalidade. A “morte de Deus” é a morte dos sistemas imunológicos baseados em um centro emissor de sentido e de poder, que é o que define o globo enquanto globo. A catástrofe dos globos gera essa nova morfologia, que não vai dar tempo de explicar aqui. Mas é como se houvesse a inviabilidade da reconstrução dessa morfologia, porque a espuma, espuma, ou seja, ela vai multiplicar rizomaticamente todos os centros de poder, de enunciação e de informação, e vai capilarizar mais. É uma morfologia em que há uma multiplicação quase que indeterminada e uma virtualização da vida a partir de sistemas orgânicos e inorgânicos, depois informacionais, tecnológicos, nanotecnologia e tudo que estamos vivendo. No fundo é uma vertigem de aprofundamento da espuma, se é que podemos dizer que a espuma tem profundidade, ou se ela é uma pura superfície, como diz Vilém Flusser em O elogio da superficialidade: O universo das imagens técnicas, que é o mundo de superfícies em que nós vivemos, é o mundo da inviabilidade de reconstrução do globo. Isso é bastante importante nessa conferência e no livro todo, porque Latour está usando Sloterdijk para dizer que quando falamos de “natureza”, ou quando homogeneizamos a “natureza” ou a Terra, estamos tentando reconstruir um globo como se ele fosse uma unidade, mas essa unidade não é mais possível por causa do fim do globo, da catástrofe do mundo. Ou seja, os conceitos de globo e de globalização são defasados há muito tempo e não nos ajudam a retificar ou a articular os pontos necessários para evitar as mutações ou as catástrofes do Antropoceno.

No livro Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno, que Latour publicou quase concomitantemente com essas conferências, ele chega a mencionar aquelas teorias do local e do global, mas esse livro é brilhante porque fala de todas as nuances e mutações de toda a bússola e de todo o norteamento ideológico: esquerda-direita, progressivos, reacionários, conservadores. O desafio que estamos tendo hoje – não quer dizer que essas categorias não existam ou não existam divisões – é que essas categorias começam a se embaralhar justamente ou porque estamos pensando a partir do globo, ou seja, a partir de uma tentativa de unificação, mas essa unificação vai ser sempre abstrata, ou uma tentativa de unificação a partir da “natureza”. Mas o recurso à “natureza” como uma espécie de bote salva-vidas mais ajuda a afogar do que a salvar.

 

Há uma imagem nas conferências da qual gosto muito, que é do pintor romântico alemão Caspar FriedrichLatour faz questão de transcrever essa imagem. Caspar Friedrich era muito conhecido por representação de paisagens, só que ele traz uma coisa que é muito interessante para a teoria dos sistemas, que é uma recorrência de personagens de costas para o espectador e que observam a paisagem natural, a “natureza”: grandes landscapes, paisagens, tomadas aéreas de montanhas, paisagens bucólicas. O meu querido mestre Hans Ulrich Gumbrecht, no livro chamado Atmosfera, Stimmung, faz uma análise do conceito de atmosfera desde a literatura medieval até Thomas Mann e, em um dos capítulos, ele analisa Caspar Friedrich como um precursor da teoria sistêmica, porque temos ali, materializado na pintura, a noção de observador de segunda ordem.

Não estamos vendo a paisagem junto com aquele que vê a paisagem – estamos vendo alguém ver a paisagem. Essa estrutura metassistêmica, ou seja, a noção de observadores metassistêmicos de segunda ordem que vão se proliferando é central para se entender a teoria do ator-rede de Latour e para entendermos esse pintor de modo geral. Essa pintura que Latour descreve é uma paisagem em que no chão parecem existir poças d’água ou pequenos filamentos de água de um rio, mas vemos, na verdade, a imagem de um globo terrestre.

hipótese latouriana é: o globo está enterrado na terra. A metáfora do globo explodiu e não existe unidade global possível. A crítica à globalização, independentemente do espectro ideológico, é eficiente porque também está mostrando as contradições do modelo global de se pensar o mundo. Essas costuras entre o glo-cal (global e local) são totalmente insuficientes, segundo Latour. Então, para fechar, eu termino com esta imagem de Caspar Friedrich: como é possível pensar a Terra para além da imagem da unificação da “natureza” e para além da imagem da unificação do globo? Talvez pensar assim seja fornecer uma saída para os impasses e para o problema gigante que está batendo à porta: o problema do Antropoceno. Um dos meios é pensar esferologicamente, outro meio é pensar a partir de Gaia e das teorias de Gaia e das teorias da complexidade.

 

(EcoDebate, 05/08/2021) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]